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02-06-2020 

Transação tributária e recuperação judicial – O plano de recuperação fiscal

Por Rodrigo Jacobina e Jamille Medeiros

 

No último dia 28 de abril tivemos a oportunidade de apresentar um webinar sobre a lei federal 13.998, de 14 de abril de 2020, norma que regula a transação tributária, e seus importantes possíveis efeitos para as empresas em recuperação judicial.

Com a aprovação da referida lei, norma de conversão da MP 899/2019, consolida-se a tentativa de inauguração de uma nova cultura nas relações entre a União e suas autarquias e fundações e os contribuintes. Até hoje assistimos a sucessivas oportunidades de refinanciamento das dívidas tributárias e não tributárias que, nos últimos anos, alcançaram aproximadamente umas quatro dezenas de medidas diferentes (REFIS, PAES, Refis da Copa etc....). O paradigma que se tenta modificar agora é a regulamentação do instituto da transação tributária, já há muito previsto no Código Tributário Nacional como modalidade de extinção do crédito tributário, conforme artigo 156, inciso IV. Dessa forma, ao que parece, não mais seriam privilegiados parcelamentos extraordinários e sim negociações, com critérios definidos, a serem examinadas, com responsabilidade, legalidade, impessoalidade e demais princípios próprios impostos à administração pública, pela União Federal.

Em termos gerais, podemos dizer que a transação importará na assunção de obrigações num plano macro e num plano micro. Estão no plano macro aquelas obrigações que decorrem da própria lei e seus regulamentos, impostas a todos os contribuintes que desejem a transação, tais como: (a) não utilizar a transação como instrumento de abuso concorrencial, (b) não valer-se de interposta pessoa, (c) não reduzir seu patrimônio de forma a afetar sua capacidade de pagamento e (d) desistir de recursos e impugnações referente a questões transacionadas e que já estejam sendo objeto de discussão administrativa ou judicial. Outras obrigações – as que aqui chamamos do plano micro – são aquelas que poderão ser negociadas e inseridas nos termos individuais de transação; são cumulativas com as do plano macro e, acaso descumpridas, qualquer delas, de qualquer dos dois planos, a transação poderá ser rescindida em todos os seus termos e com consequências indesejáveis para o contribuinte.

Comecemos, então, pelo o que pode ser transacionado. Pela norma federal, podem ser transacionados créditos de titularidade da União, suas autarquias e fundações, de natureza tributária ou não, desde que de responsabilidade de cobrança da Receita Federal do Brasil, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ou da Procuradoria Geral Federal. Não podem ser transacionados valores relativos às multas de natureza penal, relativas ao Simples Nacional (pendente de autorização veiculada em lei complementar), de titularidade de devedores contumazes e não podem ser cumulados benefícios. No que tange o FGTS importante registrar que o contribuinte pode apresentar proposta que, no entanto, além de exame da PGFN, responsável por sua cobrança, fica a depender de análise e manifestação do Conselho Curador que disporá de 20 dias úteis para se manifestar, caso contrário será tida a proposta como aprovada tacitamente.

Quanto à regulamentação, a PGFN saiu na frente e foi a primeira a regulamentar a transação tributária. Em 16 de abril de 2020, dois dias após a edição da lei, a PGFN editou a portaria 9.917/2020 que dispõe sobre a transação tributária em caráter individual por proposta do contribuinte ou da própria PGFN e a transação por adesão. Essa última impositiva para os devedores com débitos até 15 milhões de reais e cujos critérios serão definidos por edital público, aplicável a todos os contribuintes, e efetivada pelo sistema REGULARIZE.

Como estamos focando aqui na Recuperação Judicial, vamos nos debruçar mais atentamente sob o método da transação individual por proposta do contribuinte, mas sempre com o registro de que a transação aqui tratada é aplicável em diversas situações e não só para empresas em recuperação judicial ou extrajudicial. Mesmo para empresas que não estão inseridas nesse grupo, a transação é aplicável e representa importante instrumento de gestão do passivo tributário.

Nos casos de transação individual por proposta do contribuinte, este na prática irá elaborar um Plano de Recuperação Fiscal e vai negociar esse plano com a PGFN. Esse plano, embora sujeito à negociação, não está totalmente livre de parâmetros mínimos impostos pela lei e pela portaria.

Os parâmetros mínimos impostos pela lei são quanto aos descontos possíveis e sua proporcionalidade, número de parcelas e outorga de eventual moratória.

Os descontos não podem ser impostos sobre o principal, mas podem reduzir juros, multas não penais e encargos legais, desde que de forma proporcional sobre essas três parcelas da dívida. Ao final da aplicação dos descontos, o resultado a pagar não pode representar em percentual inferior a 50% do total devido – esse percentual cai para 30% no caso de pessoas físicas, empresas de pequeno porte, microempresas, Santas Casas de Misericórdia e instituições de ensino.

No caso de proposta envolvendo parcelamento, esse poderá ser precedido de moratória de no máximo 180 dias e o número total de parcelas não poderá ser: (a) maior que 60 parcelas se contribuição previdenciárias; (b) em não sendo contribuição previdenciária e se o devedor for pessoa física, empresa de pequeno porte, microempresa, Santas Casas de Misericórdia e instituição de ensino, o parcelamento poderá alcançar 145 parcelas; ou (c) 84 parcelas se o devedor não se enquadrar no rol de pessoas listadas no item 'c' anterior e não estivermos tratando de contribuição previdenciária.

Entretanto, há que se frisar o fato de que tais parâmetros não são impositivos para a PGFN, ou seja, eles são parâmetros de benefício máximo ao contribuinte, o que significa que, eventualmente, a PGFN pode entender que eles não se aplicam, naquele caso, no número máximo previsto para moratória ou para o número de parcelas. Vale a mesma observação para a imposição de descontos – uma análise caso a caso será efetuada.

A PGFN para formação do seu entendimento quanto aos descontos, moratória e parcelamento aplicáveis a cada caso concreto, deverá seguir um sistema de classificação de recuperabilidade dos créditos sujeitos a transação. A própria lei e a portaria criam esse sistema de classificação dos créditos, sistema esse que vai de recuperáveis a irrecuperáveis. Assim, quanto maior a dificuldade da recuperação, o credor pode impor mais benefícios para poder conseguir receber algo. Será, em conjunto com a recuperabilidade, analisada também: (a) o tempo da cobrança; (b) suficiência e liquidez de garantia eventualmente prestadas; (c) parcelamentos ativos; (d) perspectivas de êxito das estratégias de cobrança; (e) custo da cobrança judicial; (f) histórico de parcelamentos (e reparcelamentos); (g) tempo de eventual suspensão por decisão judicial; e (h) situação econômica e capacidade de pagamento. Muitos dos elementos para definição e análise da recuperabilidade de créditos serão retirados do banco de dados da própria União, formado a partir de informações do contribuinte, tais como DCFT, ECF, GFIP, dentre outras.

No caso das empresas em recuperação judicial, a recuperabilidade é sempre tida como improvável e, portanto, esses são créditos classificados como D (irrecuperáveis), o que autoriza maiores possibilidades de benefícios (descontos, moratória e parcelamento).

A PGFN, em regra, exigirá que a proposta de transação abranja todas as inscrições possíveis, sendo que, caso a inserção de algum crédito torne o Plano de Recuperação Fiscal inviável economicamente, poderá o contribuinte demonstrar tal condição e requerer que a PGFN exclua tal crédito da transação. Outro ponto relevante é que casos que já estejam judicializados não são suspensos pelo simples fato da apresentação da proposta de transação individual; em verdade, há de constar da proposta um requerimento de ajuste preliminar entre o proponente e a PGFN para que, enquanto a proposta estiver sob análise e negociação, casos judicializados sejam suspensos até a assinatura do termo de transação.

Uma questão interessante inserida na portaria PGFN 9.917/2020 é a possibilidade de uso de créditos líquidos e certos e precatórios. A questão aqui é benéfica para a União pois reduz a sua dívida já consolidada juridicamente em favor do contribuinte e reduz (ou extingue) a dívida do contribuinte com a União. Há, no entanto, um ponto sobre o qual se faz necessária uma reflexão. Vejamos a redação do artigo 57 da portaria PGFN 9.917/2020:

Como vemos, a redação parece dar azo à interpretação que tanto os créditos quanto os precatórios podem ser de titularidade do próprio contribuinte ou ele cedidos (titularidade de terceiros). O problema aqui é que a redação do artigo 8º, inciso VI da mesma portaria apresenta aparente antinomia quando diz:

Assim, nos parece que a expressão próprios ou de terceiros, na forma como utilizada no artigo 57, dá fundamento a uma eventual apresentação de crédito de terceiro, desde que devidamente reconhecido em decisão judicial transitada em julgado. E, assim nos parece, pois se temos um crédito líquido e certo reconhecido em decisão judicial transitada em julgado, estamos diante de um crédito que está em vias de ser representado por um precatório, ou seja, tal crédito, dadas duas características, está a alguns procedimentos formais e meramente orçamentários de ser classificado como precatório e, se assim for, não parece ter sentido permitir que o precatório seja de titularidade de terceiro e tal crédito, com essas características, frise-se, não possa ser de um terceiro estranho à relação existentes entre as pessoas da transação. Mas, sem dúvida, é um assunto que merece um olhar mais cuidadoso e, até, pragmático.

Um registro adicional importante: todo esse Plano de Recuperação fiscal deve ser elaborado em parceria entre advogados e consultores econômico-financeiros, de forma a construir uma demonstração das necessidades do proponente e fundamentar a exequibilidade do plano. Não adianta apresentar um plano sem bases teóricas jurídicas e bases concretas de lastro econômico-financeiro pertinentes ao contribuinte proponente e seu mercado. E a apresentação de tal plano, em especial para as empresas em Recuperação Judicial, deve ter em conta a sua coerência com o Plano de Recuperação Judicial e, ainda, ser apresentado nos prazos previstos: (a) se, na data da publicação da lei a proponente já tinha homologado judicialmente o seu Plano de Recuperação Judicial, ela terá até 14 de outubro de 2020 para apresentar o seu Plano de Recuperação Fiscal; (b) se ainda não houve homologação do Plano de Recuperação Judicial, deverá apresentar o Plano de Recuperação Fiscal no mesmo prazo do artigo 57 da lei 11.101/2005, ou seja, quando da juntada aos autos da Recuperação Judicial do plano aprovado pelos credores.

Nesse eito, é onde justamente se dá a intercessão entre a lei 13.988/20 e a lei 11.101/2005 que merece algumas considerações, especialmente no momento atual de crise causada pela propagação da covid-19 no cenário mundial.

Estima-se, por dados do Fundo Monetário internacional, que a economia cairá 3% em 2020, no Brasil tal retração é estimada em 5,3%, o que certamente impactará as sociedades empresárias brasileiras, em especial àquelas em recuperação judicial. Assim, considerando o art. 47 da Lei de Recuperações e Falência, que preconiza o uso do instituto recuperacional com vias a superação da crise econômico financeira, manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, teceremos breves comentários do impacto da transação tributária voltada à empresas submetidas ao instituto.

De proêmio, é preciso frisar que hoje, na forma como a lei se encontra, não há submissão do crédito fiscal ao processo de recuperação judicial, uma vez que esse é excluído por força do O artigo 6º, §7º que está assim redigido: "As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica".

Entretanto, em que pese a exclusão do referido crédito do Plano de Recuperação Judicial, de maneira controvertida o artigo 57 diz que "Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos do arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional". Em suma, o legislador estabeleceu uma forma de controle indireto sob a satisfação do crédito fiscal, visando a quitação do crédito decorrente do inadimplemento de impostos; sem que exista qualquer exigência em relação aos demais créditos titularizados pela Fazenda Pública, como as multas, pois passíveis de submissão ao processo de recuperação judicial.

Em paralelo, com fulcro de uniformizar a legislação acerca da matéria, a LC 118/05 alterou o Código Tributário Nacional e acrescentou o art. 195-A: "A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta lei. A necessidade de comprovação de quitação fiscal para concessão da recuperação judicial tem sua importância porque objetiva resguardar as garantias e privilégios do crédito tributário, que, por sua vez, não está sujeito à recuperação judicial."

Desse modo, o legislador pretendeu preservar a atividade da empresa, mas pôs a salvo o crédito público, ao estabelecer como requisito a comprovação da regularidade fiscal da empresa. A lei 11.101/05, em seu art. 68, previu, ainda, a possibilidade de concessão de parcelamento específico para a sociedade empresária ou empresário que esteja em Recuperação Judicial: "Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional."

Posto o cenário de normas que circundam a lei 11.101/2005, a realidade é que ao longo dos anos os tribunais têm decidido pela dispensa da apresentação das certidões sob seguinte fundamento: como o parcelamento previsto no art. 68 da lei 11.101/05 não foi instituído, a empresa estaria impossibilitada de atender à exigência legal.

Tal sopesamento dos interesses jurídicos tutelados, e toda a discussão que orbitam a questão não é nova no meio jurídico, e a jurisprudência, em especial o STJ, firmou entendimento ao longo dos anos acerca da possibilidade de dispensa da exigência de CND tributária, e teve reforçado o posicionamento desde do enunciado nº 55 da 1ª Jornada de Direito Comercial no ano de 2012 "55. O parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial é um direito do contribuinte, e não uma faculdade da Fazenda Pública, e, enquanto não for editada lei específica, não é cabível a aplicação do disposto no art. 57 da lei 11.101/2005 e no art.191-A do CTN."

Ocorre que, como o nascimento da lei 13.988/20 o argumento que dá supedâneo à dispensa de CND, especificamente em relação ao crédito tributário de natureza federal, poderá ser considerado superado, uma vez que a PGFN atacará justamente o argumento central que hoje beneficia as sociedades empresárias em recuperação judicial. Desta feita, alguns pontos trazidos pela nova lei merecem nossa especial atenção.

É certo que no momento atual em que a economia global agoniza com uma crise causada pela propagação do covid-19 o número de recuperações judiciais distribuídas aos tribunais irá crescer exponencialmente, em contrapartida, a preservação destas sociedades empresárias precisa estar alinhada à sustentabilidade do erário público, que sofrerá brusca queda pelos necessários investimentos na área da saúde. Neste ponto, inevitável se torna um estudo da projeção do passivo tributário fiscal de natureza federal ainda na distribuição do pedido, garantindo-se que tal recuperação judicial poderá prosperar juntamente com o tratamento do credito fiscal.

De outro giro, em que pese a recuperação da economia perpasse pelo esforço privado e público, e justamente por isso não podemos falar em recuperação de sociedades empresárias às custas de "quebra estatal", não podemos deixar de tecer em nossas conclusões algumas críticas necessárias à nova Lei de Transação Tributária que ora se apresenta.

É certo que precisamos ter, mais do que nunca, um olhar fraterno à situação de credores e devedores, sem esquecer que não existe mercado econômico financeiro saudável sem erário público que lhe dê sustentabilidade; entretanto, não podemos conceber a acomodação de legislação sem a observância das peculiaridades de cada caso a ser aplicado.

O primeiro ponto que é preocupante na lei 13.988/20 é a possibilidade de transação às sociedades empresárias que já tiveram seus planos aprovados. Impõe a lei que, na data da sua publicação, as sociedades empresárias que desejarem gozar do referido parcelamento e já tiverem homologado judicialmente o seu Plano de Recuperação Judicial, terão até 14 de outubro de 2020 para apresentar o seu Plano de Recuperação Fiscal. Não nos parece que esta seja uma realidade plausível no atual momento econômico, merecendo tal lei uma revisão de pronto acerca da data de corte inicial às recuperandas que se encontram em cumprimento do Pano de Recuperação Judicial.

Outro tema que merece atenção especial são os prazos máximos concedidos aos referidos parcelamentos e a discricionariedade conferida à PGFN quanto à classificação de recuperabilidade do crédito e seus benefícios. Restou claro que o credor classificado como irrecuperável pode impor mais condições para obter o teto máximo de benefícios, em contrapartida, ao estabelecer um sistema rígido que irá analisar suficiência e liquidez de garantia eventualmente prestadas; parcelamentos ativos; perspectivas de êxito das estratégias de cobrança; custo da cobrança judicial; histórico de parcelamentos e reparcelamentos; tempo de eventual suspensão por decisão judicial; e situação econômica e capacidade de pagamento, no parece que a referida legislação pecou ao não lançar mão dessa refinada análise para permitir a acomodação do deságio e parcelas de maneira mais ampla, com maior possibilidade de desconto e prazo já que, ao nosso ver, os tetos aqui estabelecidos não atenderão uma boa parte das sociedades empresárias em recuperação judicial.

Por óbvio não pretendíamos aqui esgotar o tema, muito menos apontar soluções imediatas, uma vez que tal desiderato só poderá ser cumprido a partir de discussões amplas advindas de embates, não só no âmbito jurisprudencial, mas, igualmente, do meio acadêmico. Nessa linha, a pequena contribuição ora expendida visou apresentar contornos dogmáticos da lei 13.988/20, com pontuais apontamentos de seus possíveis reflexos, afirmando que o manejo do crédito fiscal federal paralelamente aos créditos da recuperação judicial já é uma realidade, e a reprodução disso nos processos merece especial atenção e preparo.

Fonte: Migalhas 

 

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