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07-02-2024
Teoria do adimplemento substancial e sua aplicação no âmbito dos processos de recuperação judicial
A teoria civilista do adimplemento substancial fora inicialmente desenvolvida para ser aplicada aos casos que envolvem contratos de alienação fiduciária e promessas de compra e venda inadimplidos, cuja finalidade consistia em evitar que o devedor fosse surpreendido com a propositura de ação de reintegração de posse ou de busca e apreensão naqueles casos em que tenha “quase” cumprido as obrigações referentes ao adimplemento do contrato firmado.
Este entendimento doutrinário surgiu devido às disposições previstas no artigo 475, do Código Civil, em que consta a possibilidade de resolução contratual no caso de inadimplemento por parte do devedor. De acordo com o artigo, “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.
Ocorre que a aplicação do dispositivo citado acima, utilizado como exercício de um direito, pode representar uma motivação ilegítima e até mesmo ofensiva à função para a qual fora concedida pelo ordenamento, uma vez que o titular de um direito que excede os limites impostos pela boa-fé comete ato ilícito, conforme dispõe o artigo 187, do Código Civil [1].
A doutrina também inclui o disposto no artigo 475, como hipótese de “função limitadora do exercício de posições jurídicas ativas”, tal como a supressio [2], tu coque [3] e o venire contra factum próprio [4], que, diga-se de passagem, não serão objeto de análise específica no presente trabalho [5].
O adimplemento substancial surgiu, portanto, para impedir o exercício de um direito potestativo de resolução contratual por parte do credor em face de um mínimo descumprimento da obrigação, uma vez que o desfazimento do negócio jurídico acarretaria em sacrifício desproporcional quando comparado à sua manutenção. Desse modo, a teoria jurídica propõe que o credor busque uma tutela adequada e proporcional à percepção das prestações inadimplidas [6].
É o caso do exemplo citado acima, em que a teoria é utilizada nas hipóteses de descumprimento contratual no âmbito de contratos de alienação fiduciária e de promessa de compra e venda para evitar a perda do bem, objeto do respectivo contrato, por parte daquele devedor que fora adimplente durante boa parte da vigência contratual e que passou a dever uma quantidade mínima de parcelas.
Ao analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a partir do Recurso Especial nº 1.051.270 [7], nota-se que a aplicação da teoria civilista é corolário dos princípios da boa-fé e da função social do contrato, que faz com que o artigo 475, do Código Civil, seja analisado sob uma ótica menos privatista, que considera o adimplemento da avença durante a vigência do contrato e não apenas a inadimplência de forma isolada.
Assim, de acordo com o julgado utilizado como exemplo, a faculdade que o credor tem de, simplesmente, resolver o contrato respaldado no inadimplemento do devedor, prevista no artigo 475, do Código Civil, deve ser verificada com cautela e à luz da boa-fé e da função social, para evitar o desequilíbrio contratual entre as partes envolvidas [8].
A decisão proferida pelo STJ ainda faz menção aos ordenamentos jurídicos de Portugal e da Itália que, diferentemente do Brasil, estabelecem legalmente o impedimento para resolução contratual dos casos em que o inadimplemento é de “escassa importância” ou “insignificante”.
Apenas para fins de elucidação, importa mencionar que no caso julgado no REsp nº 1.051.270, a Corte entendeu que o meio judicial utilizado pela parte autora — ação de reintegração de posse — não era apropriado quando comparado à extensão do inadimplemento e que podia ter sido resolvido por outro meio, citando como exemplo a ação de execução de título.
Embora se trate de uma teoria criada no âmbito da doutrina civilista, entendemos ser plenamente possível a sua aplicação no âmbito dos processos de recuperação judicial no Brasil; e explicamos o porquê.
Ainda que o direito empresarial tenha autonomia com relação ao direito civil, tal autonomia não é sinônimo de desarmonia ou contraposição jurídica. Sendo assim, o direito empresarial, esfera especial do direito, pode utilizar-se do direito civil, enquanto regime jurídico geral das atividades privadas, para suprir lacunas encontradas em suas disposições [9].
A recuperação judicial é um procedimento destinado à viabilização das empresas em crise econômico-financeira, por meio da vontade legítima dos credores e em observância ao princípio da preservação da empresa, mantendo sua atividade econômica, os postos de empregos e conservando o ativo social por ela gerado [10], por meio de todos os meios disponíveis.
A partir da decisão que defere o processamento da recuperação judicial, a empresa fará jus aos benefícios que lhes auxiliarão no processo de soerguimento econômico-financeiro, e em 60 dias deverá apresentar o plano de recuperação judicial com a descrição pormenorizada da sua proposta para superar a crise.
Importante mencionar que a legislação [11] estabelece um rol exemplificativo dos meios que poderão ser utilizados pelo empresário para reestruturação da empresa em crise e, dentre eles, a recuperanda escolherá aquelas que melhor atenda a sua necessidade, desde que não viole a lei nem acarrete um tratamento diferenciado aos credores que possuam condições semelhantes de crédito e que estejam inseridos na mesma classe [12].
Com a apresentação do plano, os credores, no prazo de 30 dias [13], poderão manifestar suas objeções à proposta de soerguimento e à viabilidade econômica apresentada pelo devedor, o que ocasionará a convocação da assembleia geral de credores para que juntos deliberem acerca de sua aprovação ou rejeição ou, até mesmo, apresente planos de recuperação judicial alternativos [14].
Após a aprovação do plano, à empresa devedora é concedida a recuperação judicial e como consequência todos os créditos submetidos ao procedimento serão novados, de modo que o crédito existente anteriormente ao pedido de recuperação será extinto e assim passam a vigorar as novas condições estabelecidas no plano [15].
O plano de recuperação judicial deverá ser integralmente cumprido pela empresa em recuperação, em especial no período em que estará sujeita à fiscalização judicial, já que, acaso não satisfeitas durante esse lapso temporal, a recuperação judicial será convolada em falência [16], com o retorno dos direitos dos credores às condições originalmente contratadas, ressalvados os atos que foram validamente praticados [17] durante a recuperação judicial.
De acordo com a Lei de Recuperação Judicial e Falência, resta evidente que o não cumprimento das obrigações convencionadas no plano de recuperação judicial externa a inviabilidade de desenvolvimento da atividade econômica por parte da empresa recuperanda e a solução legal trazida em seu artigo 73 é a imediata decretação da falência da empresa e sua consequente retirada do mercado.
A convolação em falência é, portanto, uma consequência direta do descumprimento do plano de recuperação e pode ser decretada de ofício pelo juízo ou mediante o requerimento do credor, administrador judicial, comitê de credores e, até mesmo, o Ministério Público, este na condição de fiscal da lei.
Tem-se admitido ainda a possibilidade de aditamento do plano de recuperação judicial durante o período de fiscalização e após esse momento, desde que o processo de recuperação judicial não tenha se encerrado e seja submetido e aprovado em nova assembleia geral de credores, em razão das alterações fáticas que surgirem durante o cumprimento do plano, tudo isso em observância ao princípio da preservação da empresa.
O período de fiscalização do plano de recuperação judicial é um poder-dever imposto ao Juízo da recuperação judicial, mas que pode ser dispensado e até mesmo adiado — por um período de carência — desde que devidamente negociado no plano de recuperação [18].
Após o período de fiscalização, o qual não se renova, o cumprimento das obrigações previstas no plano passará a ser fiscalizado apenas pelos credores de forma individual, para que não haja a eternização do processo de recuperação judicial. Passada esta fase, em caso de descumprimento, além da promoção de execução específica do seu crédito, o credor poderá pedir a decretação da falência da empresa [19].
Ocorre, porém, que conforme estabelecido no diploma recuperacional, o descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano acarretará a decretação da falência da empresa.
É preciso, no entanto, ter cautela quando da análise do inadimplemento específico de alguma obrigação, sobretudo quando se está diante do cumprimento de grande parte das demais previsões do plano, sob pena de se ocasionar uma consequência desproporcional e em desconformidade aos demais princípios que regem o ecossistema negocial privado.
É nesse momento em que a teoria do adimplemento substancial, própria do direito civil, pode e deve ser utilizada, uma vez que, no âmbito do direito empresarial, mormente no que se refere à Lei nº 11.101/2005, não consta outro instituto jurídico que proteja ou resguarde as consequências advindas do não cumprimento de algumas de suas obrigações previstas no plano de recuperação, ainda que seja “de escassa importância” ou “insignificante”, como fazem Portugal e Itália.
No caso da Lei de Recuperação Judicial e Falência, a situação é mais crítica, pois qualquer tipo de descumprimento poderá ensejar a convolação do procedimento em falência, resultando no encerramento da atividade empresarial que pode ter, a depender do contexto econômico em que a empresa está inserida, um impacto social e econômico considerável.
Nesse cenário, é de suma importância ressaltar que o princípio norteador da legislação recuperacional é o da manutenção da atividade empresarial; e é com base na defesa desse princípio que alguns dispositivos da LRF, que outrora impunham a pena capital da convolação em falência à empresa recuperanda, foram sendo relativizados ao longo do tempo para permitir o deferimento e a conclusão da recuperação judicial buscada.
Um exemplo prático dessa relativização é a hipótese de cram down, ainda que não preenchidos os requisitos do artigo 58, da LRF, quando evidenciado que a recuperação judicial é o melhor caminho para o cumprimento da função social da empresa e, consequentemente, para o benefício da coletividade [20].
Outra hipótese de relativização da norma falimentar, que mostra ser possível a utilização do adimplemento substancial, consiste na rejeição dos pedidos de falência, lastreados no artigo 94, da LRF, quando utilizados como sucedâneo da execução extrajudicial específica [21], ainda que a empresa não esteja em processo recuperacional.
Para a aplicação da teoria, no entanto, é imprescindível que sejam levados em conta vários fatores: a totalidade das obrigações pactuadas pelo plano de recuperação; o percentual de cumprimento do plano de soerguimento; a possibilidade de manutenção da atividade empresarial recuperada(anda) etc.
Além, é claro, das alterações fáticas que, naturalmente, possam ter surgido durante o cumprimento do plano, motivados por inúmeros fatores externos às possibilidades da própria empresa, a exemplo de questões econômicas que impactam em seu cumprimento, e não são de sua exclusiva competência e controle.
Dessa forma, a aplicação da teoria exigiria do credor inadimplido a persecução adequada e proporcional do seu crédito ao devedor, para que seja menos gravosa e em consonância com a manutenção da recuperação judicial e soerguimento da empresa, considerando todos os benefícios da atividade empresarial no contexto em que estiver inserida.
Obviamente, aplicar a teoria do adimplemento substancial aos casos de recuperação judicial não é dar carta branca aos devedores para descumprir as obrigações consideradas de “escassa importância” ou “insignificantes”, mas seria necessária para sopesar o peso do descumprimento das obrigações de menor impacto em relação à totalidade do plano de recuperação, resguardando-a da possibilidade indiscriminada da convolação em falência.
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil 4 – Contratos. 5ª Ed. Atlas, 2015. p. 554.
[2] De forma resumida, a supressio trata-se da perda de determinado direito por não exercê-lo. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05062022-Morre-um-direito–nasce-outro-os-institutos-da-supressio-e-da-surrectio-na-interpretacao-do-STJ.aspx>. Acesso em: 16/01/2024.
[3] “O tu quoque objetiva impedir que o infrator de uma norma ou obrigação almeje valer-se posteriormente da mesma norma ou obrigação antes transgredida para exercer um direito ou pretensão”. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/297820/breves-apontamentos-sobre-a-boa-fe-objetiva-nas-relacoes-contratuais–venire-contra-factum-proprium–supressio–surrectio-e-tu-quoque. Acesso em: 16/01/2024.
[4] Trata-se da proibição de padrões de conduta distintos, a depender da vantagem que cada situação lhe oferecer. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/297820/breves-apontamentos-sobre-a-boa-fe-objetiva-nas-relacoes-contratuais–venire-contra-factum-proprium–supressio–surrectio-e-tu-quoque>. Acesso em 16/01/2024.
[5] Disponível em < https://www.conjur.com.br/2018-jun-18/direito-civil-atual-stj-avanca-delimitacao-adimplemento-substancial-parte/>. Acesso em 09/01/2024.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil 4 – Contratos. 5ª Ed. Atlas, 2015. p. 554.
[7] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=837488&num_registro=200800893455&data=20110905&formato=PDF. Acesso em 09/01/2024.
[8] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=837488&num_registro=200800893455&data=20110905&formato=PDF. Acesso em 09/01/2024.
[9] SANTA CRUZ, André. Direito Empresarial. 10ª ed. Editora Método, 2020. p. 31.
[10]Campinho, Sérgio. Curso de Direito Comercial – Falência e Recuperação de Empresa/ Sérgio Santos. – 12. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022. p. 141-143.
[11] Art. 50, da Lei 11.101/05.
[12] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, Educação, 2021. p. 313.
[13] Art. 55, da Lei 11.101/05.
[14] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, Educação, 2021. p. 314.
[15] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, Educação, 2021. p. 338.
[16] Art. 73, da Lei 11.101/05.
[17] Art. 61, § 2º, da Lei 11.101/05.
[18] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência – 2. ed. – São Paulo: Saraiva, Educação, 2021, p. 349.
[19] Art. 62, da Lei 11.101/05.
[20] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-13/vanessa-eid-cram-down-efeitos-credores-jurisprudencia. Acesso em: 15/01/2024.
[21] Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pr/1843771954> e <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-rj/1478322735>. Acesso em 15/01/2024.
Fonte: Conjur.