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01-03-2021 

Supressão das garantias fidejussórias e reais em face da recuperação judicial

Um tema dramático na recuperação judicial diz respeito às garantias prestadas à empresa devedora e a situação do credor com garantia real ou fidejussória perante o processo de soerguimento empresarial. A questão é crucial e batizada de relevante interesse público, social e econômico, por isso, sem embargo, imprescindível a uniformização do entendimento a fim de emprestar segurança jurídica principalmente às relações judiciais, comerciais e econômicas.

Fora de dúvida que a lei de recuperação, tanto a Lei n°11.101/2005 como a nova legislação revisionista (Lei n°14.112/2020), veio para proteger o devedor em crise de modo a superar as dificuldades e facilitar o soerguimento (artigo 47), mas também não é menos verdade que não pode desamparar dramaticamente o credor, muito menos fomentar procedimento autofágico por ocasião da votação do plano de recuperação judicial na assembleia geral de credores.

Falo isso porque a jurisprudência do STJ, de modo majoritário, tem se inclinado, a meu juízo equivocadamente, em confirmar a possibilidade da supressão das garantias reais e fidejussórias oferecidas pelo devedor ao credor no momento de tomar o crédito, mas, quando o devedor pede recuperação, uma das medidas bem corriqueira que ele adota é a de postular, via plano de recuperação, a supressão dessas mesmas garantias, deixando o credor com o seu crédito totalmente a descoberto, mudando completamente a realidade do negócio celebrado originariamente.

Não obstante as modificações da Lei n°11.101/2005 pela novel redação que lhe emprestou a Lei n°14.112/2020, o disposto no artigo 49 e seus parágrafos, que tratam diretamente do assunto, não sofreu qualquer alteração, de modo que a insegurança jurídica por ele trazida ao mundo dos negócios perdura, mormente no tocante a possibilidade inaudita de alteração da situação jurídica do título creditício em caso de concessão da recuperação judicial, que pode sofrer mutações e modificações por parte da assembleia geral de credores (AGC) quando da análise do plano de recuperação, segundo orientação predominante no STJ.

Com efeito, conforme reza o §1º do artigo 49, os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. Há, pois, conforme a norma legal, a despeito da concessão da recuperação judicial ao devedor, a manutenção, em favor dos credores, dos direitos creditícios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, limitando-se, destarte, os efeitos da recuperação, ao devedor em suas relações diretas.

Então, em princípio, consoante expressa prescrição legal, o credor que exigiu garantias pessoais ou reais do devedor, que teve a seu favor a recuperação judicial, não sofreria nenhum prejuízo na persecução do seu crédito, quer contra os coobrigados, fiadores e/ou obrigados de regresso. Resguardada, então, a segurança jurídica das relações, pois não se duvide que a concessão de crédito em favor do devedor pode/deve ter sido facilitada em face a concessão de garantias de sua solvabilidade e adimplência, quer diretamente pelo devedor, mas, sobretudo, pelos seus garantidores. O credor, então, ao emprestar crédito ao devedor, blindou a operação creditícia de segurança e garantia, resguardando-se dos riscos supervenientes e a lei recuperacional o contemplou expressamente.

Contudo, aparentemente em sentido oposto, o §2º do mesmo dispositivo legal (artigo 49) possibilita que o plano de recuperação judicial, a ser votado na AGC, possa dispor de modo diverso a respeito das obrigações e encargos do devedor em recuperação.

Portanto, a relação jurídica de garantia conservada e mantida intacta por conta da recuperação judicial do devedor à luz do §1º do artigo 49, agora, por força do §2º do mesmo dispositivo, segundo exegese do STJ, pode ser mutilada, modificada e suprimida, se tal constar do plano de recuperação e ele for aprovado em AGC.

Com efeito, o STJ foi chamado a decidir a questão, qual seja: deliberar se as garantias fidejussórias e reais podem ou não serem modificadas ou suprimidas pela AGC quando da votação do plano de recuperação. Decorre disso que a jurisprudência do STJ parece estar dividida, mas com sensível predominância do entendimento de que as garantias (reais e fidejussórias) podem ser suprimidas desde que tal situação seja objeto do plano de recuperação e, mais, que o plano tenha sido aprovado, sem oposição no ponto, em assembleia geral de credores. A esse propósito, essa mesma orientação advoga, também, modo consequente, que o plano de recuperação aprovado pode suprimir igualmente o direito de o credor cobrar dos terceiros garantidores e/ou perseguir seu crédito dos coobrigados e obrigados de regresso.

Esse entendimento tem se repetido em inúmeros julgados (v.g. REsp. 1.532.943/MT (3T), 1.700.487/MT (3T), 1.863.842/RS (3T), 1.850.287/SP (3T), entre vários outros). Nesses e em vários outros julgados têm predominado o voto, ora condutor, ora de redator, do ministro Marco Bellizze, que é seguido pelos ministros Moura Ribeiro e Paulo Sanseverino que professam o mesmo entendimento, ficando vencidos os ministros Ricardo Cuevas, Nancy Andrighi e João Noronha, que defendem posição oposta.

O argumento do ministro Bellizze é simples, sedutor e de fácil aceitação, por isso, penso, tem arregimentado seguidores. O ilustre ministro sustenta que, de regra, a despeito da novação operada pela recuperação judicial, preservam-se as garantias, no que alude à possibilidade de seu titular exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impor a manutenção das ações e execuções promovidas contra fiadores, avalistas ou coobrigados em geral, a exceção do sócio com responsabilidade ilimitada e solidária (§1º do artigo 49 da Lei n°11.101/2005). E, especificamente sobre as garantias reais, estas somente poderão ser suprimidas ou substituídas, por ocasião de sua alienação, mediante expressa anuência do credor titular de tal garantia, nos termos do §1º do artigo 50 da referida lei. Todavia, diz que sobre as garantias a lei prevê expressamente a possibilidade de o plano de recuperação judicial, sobre elas, dispor de modo diverso (§2º, artigo 49). Assim, tem como absolutamente descabido restringir a supressão das garantias reais e fidejussórias, tal como previsto no plano de recuperação judicial aprovado pela assembleia geral, somente aos credores que tenham votado favoravelmente nesse sentido, conferindo tratamento diferenciado aos demais credores da mesma classe, em manifesta contrariedade à deliberação majoritária. Com efeito, entende plenamente possível a supressão das garantias reais e fidejussórias se todos os credores, representados por suas respectivas classes, observado o quórum do artigo 45, votarem favoravelmente nesse sentido, conferindo, destarte, autonomia e independência à AGC, valendo e com plena eficácia a todos os credores, não apenas os que compareceram à assembleia e assentiram com a supressão, mas, também, aos que não compareceram ou votaram contrariamente.

Portanto, a versão adotada é a de que a AGC tem legitimidade e liberdade para deliberar, através do voto de maioria, sobre quaisquer garantias e obrigações prestadas pelo devedor em recuperação, podendo modificá-las, suprimi-las ou de qualquer modo disciplinar diversamente do que originariamente contratado.

Como decorrência dessa decisão, que assume papel de relevância, especialmente nos julgados da 3ª Turma do STJ, há, em razão dessa exegese, flagrante violação ao expressamente disposto no §1º do artigo 49 da Lei n°11.101/2005 no sentido de que os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, mas, pior, viola literalmente o enunciado da Sumula n°581 do próprio STJ, que diz: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória", extraída do Recurso Especial Representativo de Controvérsia  (REsp) nº1.333.349/SP), julgado em 2014, em que ficou assentada a tese. Nessa ocasião, ficou robusta e expressamente esclarecido pelo relator, ministro Luis Felipe Salomão, sem qualquer divergência, que a "novação prevista na lei civil é bem diversa daquela disciplinada na Lei n°11.105/2005. Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (artigo 364, CC), a novação decorrente do plano de recuperação traz, como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (artigo 59, caput) as quais só serão suprimidas ou substituídas 'mediante aprovação expressa do devedor titular da respectiva garantia', por ocasião da alienação do bem gravado (artigo 50,§1º). Daí conclui-se que o plano de recuperação judicial opera uma novação sui generis e sempre sujeita a condição resolutiva, que é o eventual descumprimento do que ficou acertado no plano, o que pode ensejar a convolação em falência (artigo 61, §2º). Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral".

Como corolário da possibilidade da supressão das garantias (reais, fidejussórias, coobrigados e obrigados de regresso), sem o consentimento expresso ou tácito do titular, consoante tem entendido a 3ª Turma Cível do STJ, é decorrência lógico-natural que o credor, cujas garantias foram suprimidas, também perca o direito de ação contra tais garantidores, pois ao subtrair o direito às garantias, também se está subtraindo o direito a exigi-las.

Pessoalmente, não tenho nenhuma dúvida de que a exegese que melhor equaciona esse conflito de normas, aparentemente incompatíveis, que se dá entre a preservação da empresa (artigo 47) e a preservação das garantias (artigo 49, §1º) é a de que a recuperação judicial da empresa devedora não pode atingir o direito dos credores relativamente à terceiros (fiadores, avalistas, coobrigados e/ou devedores de regresso). Essa relação jurídica entre credores do devedor em recuperação e terceiros garantidores é estranha à relação recuperacional e está, pois, coberta pela eficácia do negócio jurídico perfeito e acabado e protegida constitucionalmente à luz do artigo 5º, inciso XXXVI, da CF/88 e ratificada expressamente na Lei de Regência, conforme §1º do artigo 49. Ademais, agrego ainda ao caldeirão exegético que a relação disciplinada no §1º do artigo 49 é de proteção aos credores do devedor, enquanto que a relação disposta no §2º do artigo 49 é restrita às obrigações do devedor. São situações distintas e que merecem separação hermenêutica, pena de confusão.

Vislumbro que qualquer cláusula que exista no plano de recuperação que impeça o credor do devedor em recuperação de buscar seu crédito dos garantidores, coobrigados e obrigados de regresso viola, como já destaquei, o entendimento cristalizado na Súmula n°581/STJ, mas, igualmente, de modo frontal e flagrante, o §1º do artigo 49, pois essa hipótese foi resguardada expressamente pela legislação, de modo especial. Possível, no entanto, por tratar-se de direito disponível, que o credor titular da garantia concorde expressamente com a supressão da garantia que lhe beneficia pessoalmente, a exemplo do que é permitido ao credor com garantia real forte no §1º do artigo 50. Mas essa concordância com a supressão das garantias deve constar dos autos de modo expresso, isto é, diretamente firmada pelo titular ou pelo voto confirmatório do respectivo titular da garantia na assembleia geral de credores, pena de invalidade e ilegalidade. Nem mesmo a ausência do referido credor titular autoriza a assembleia votar pela supressão da garantia, por se tratar de direito pessoal e personalíssimo do credor.

Concordo integralmente com o voto vencido do ministro Ricardo Cueva (REsp.n°1.700.487/MT), quando refere que a preponderar as razões dos votos-vencedores, criar-se-á manifesta instabilidade nas relações e inegável preocupação com "o cenário de incerteza quanto ao recebimento do crédito em decorrência do enfraquecimento das garantias, pois tal é desastroso para a economia do país, pois gera o encarecimento e a retração da concessão de crédito, o aumento do spreed bancário, a redução da circulação de riqueza, provoca a desconfiança dos aplicadores de capitais, nacionais e estrangeiros, além de ser nitidamente conflitante com o espírito da LRF". Agrego, ainda, para piorar o cenário, o próprio descrédito das decisões do Poder Judiciário, pois foi aprovada a Súmula n°581 pelo próprio STJ em 2014 (REsp.n°1.333.349/SP) e, no mínimo em 2016 (REsp.n°1.532.943/MT), esse entendimento já era olimpicamente desconsiderado, sem nenhuma ressalva ou modificação no cenário legislativo nacional. Essa instabilidade jurídica contribui para travar a economia e a circulação da riqueza, sem falar no descrédito institucional que ocasiona.

Por fim, data vênia, o erro exegético perpetrado pela 3ª Turma, de permitir a supressão das garantias sem a anuência dos credores titulares, ainda que passado pelo crivo da votação proporcional das classes de credores em assembleia geral, não tem amparo legal, viola o sistema instalado com a Lei n°11.101/2005 e conflagra diretamente com o texto da nova Lei n°14.112/2020 que, ainda que obliquamente, pois, na parte que trata da consolidação substancial, (artigo 69,K ) exige para a supressão de garantias a anuência e aprovação do credor titular.

Logo, a jurisprudência do STJ, responsável pela uniformização da interpretação da lei federal, deve novamente se debruçar sobre essa temática, a fim de pacificar o entendimento sobre a tormentosa questão da supressão das garantias.

Fonte: ConJur

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