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10-08-2023 

Sujeição dos créditos da "família do futebol" aos efeitos da recuperação judicial

Para além de um mero jogo amador, o futebol se transformou numa complexa atividade econômica, com diferentes stakeholders envolvidos e com certas peculiaridades que devem ser mais bem compreendidas, para que os instrumentos previstos na Lei 11.101/2005 possam ser adequadamente aplicadas a este mercado.

A recuperação judicial, uma das principais soluções jurídicas para o soerguimento da atividade empresária em crise, tem atraído cada vez mais a atenção dos clubes de futebol, sobretudo, após a positivação da legitimidade ativa dessas entidades para requererem a RJ com o advento da Lei nº 14.193/21 (Lei da SAF).

Por se tratar de algo relativamente recente no mercado nacional, é necessário que haja uma adequação do instituto da RJ ao mercado do futebol, a fim de garantir maior segurança jurídica e, consequentemente, sua plena eficácia. Para isso, é necessário examinar a lógica que movimenta a atividade econômica do futebol, de modo a realizar uma análise sob a luz do Direito Falimentar e do Direito Esportivo.

A Fifa, principal responsável pela regulação da modalidade no mundo, por ser uma entidade de direito privado, sujeita ao ordenamento jurídico da Suíça, não tem competência para sobrepor suas normas às leis e princípios jurídicos dos países.

Todavia, com vistas a assegurar a unificação da modalidade, ela atua, assim como as federações internacionais de outras modalidades esportivas, a partir de um sistema hierárquico e associativo, no qual seus membros e filiados (leia-se: as demais entidades de administração do futebol de abrangência continental, nacional e local; clubes e jogadores) se comprometem a respeitar seus regulamentos, estatutos e suas decisões.

Neste sentido, a entidade estabelece um rol de sanções para os casos de violações de suas regras ou descumprimento de suas decisões por parte de algum associado. Aos clubes, em especial, são designadas punições como 1) advertência; 2) multa; 3) anulação do resultado da partida; 4) dedução de pontos; 5) transfer ban; dentre outras [1]

Cabe destacar que, seguindo a lógica associativa e hierárquica supracitada, as associações nacionais acabam por reproduzir algumas das normas e princípios estabelecidos pela entidade máxima do futebol, a Fifa. Assim, no âmbito brasileiro, a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), órgão sob a jurisdição da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), cuja competência é atuar nos litígios envolvendo os chamados "participantes do futebol brasileiro", também prevê sanções aos clubes, incluindo a proibição de registrar novos atletas nas competições nacionais (transfer ban).

Por sua vez, a recuperação judicial é um procedimento no qual o devedor e seus credores negociam, de modo coletivo, novas condições e formas de pagamento de todos os créditos sujeitos aos efeitos da RJ, vencidos ou vincendos, existentes à data do pedido de recuperação judicial.

No âmbito da RJ, é concedido ao devedor, um período (stay period) de 180 dias a partir do deferimento do seu processamento, no qual ele deverá elaborar o plano de recuperação judicial. O referido plano deve conter a proposta de pagamento das dívidas referentes a cada classe, cabendo aos credores deliberarem, em assembleia geral de credores (AGC), se concordam ou não com os novos termos propostos. Cabe destacar que o stay period também pode ser obtido no âmbito da recuperação extrajudicial, a partir de uma tutela antecipada.

Aprovado o plano e concedida a recuperação judicial, opera-se a novação creditícia, com a extinção de todos os créditos sujeitos aos efeitos da RJ, substituídos pelas novas obrigações aprovadas pela AGC.

Dessa maneira, o stay period garante a oxigenação da atividade empresária em crise, uma vez que não poderá ser operado nenhum ato expropriatório em face dos ativos do devedor, oportunizando seja elaborado o plano de recuperação judicial, por meio do qual irá discriminar pormenorizadamente os instrumentos econômicos, administrativos e financeiros que o devedor disporá para se soerguer.

Neste ínterim, são inexigíveis os créditos sujeitos à recuperação judicial, bem como suspensas as execuções, penhoras, arrestos e outras formas de constrição patrimonial sobre os bens do devedor. Ou seja, tais dívidas só poderão ser adimplidas nos termos do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, sob pena de seus administradores incorrerem, inclusive, em crime falimentar de favorecimento de credores, com pena prevista de reclusão de dois a cinco anos e multa, nos termos do artigo 172 da LRF.

Eis aqui a grande polêmica: mesmo com a inexigibilidade do direito de crédito, por força do pedido de recuperação judicial, os clubes podem sofrer sanções desportivas em razão de débitos com outros membros pertencentes à "família do futebol". Como conciliar uma determinação da Fifa, entidade privada estrangeira, que colida com uma lei nacional? Vive-se, pois, um dilema.

Ao ser denunciado junto à Fifa, pelo credor esportivo, o clube passa a ser julgado pela entidade, que pode determinar que o pagamento da dívida dentro de determinado prazo. No entanto, conforme asseverado previamente, o devedor está compelido a adimplir seus créditos nos termos do plano de recuperação judicial, não podendo favorecer determinados credores, o que acaba por acarretar o descumprimento da decisão da Fifa.

Assim, o clube passa a estar sujeito às sanções administrativas e esportivas impostas pela referida entidade, o que, indubitavelmente, impacta diretamente no soerguimento da atividade empresária tutelada pelo instituto jurídico da recuperação judicial.

Buscando afastar a imputação das sanções previstas pela Fifa em razão do inadimplemento de um crédito legalmente inexigível, o caminho trilhado pelos agentes desportivos se pauta na obtenção de eventual autorização judicial para o adimplemento da dívida esportiva, fora dos termos estabelecidos e aprovados pelos credores no plano de recuperação judicial, conferindo, portanto, privilégios ao titular de um crédito que se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, fora das exceções já previstas pela Lei de Recuperação de Empresas e Falência.

Nos termos da lei, a recuperação judicial visa "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

De certo que punições esportivas como a transfer ban, a dedução de pontos, dentre outras, atingem severamente o agente econômico (clube) que já se encontra economicamente combalido, o que vai de encontro ao que a lei objetiva, que é a criação de um cenário profícuo onde esses agentes possam articular os meios de recuperação para o soerguimento da atividade empresária desenvolvida.

Dessa forma, a partir de uma interpretação teleológica da Lei, é possível formar o entendimento de que tais dívidas, quando denunciadas à Fifa, caso não adimplidas no prazo assinalado, gerarão mais um obstáculo na recuperação do agente econômico.

Na falta de regulamentação específica da recuperação judicial do clube de futebol, não se pode perder de vista que as sanções em decorrência do inadimplemento de um crédito inexigível devem ser imediatamente suspensas, sob pena de chancelar um instrumento de coação de cobrança de créditos fora das balizas legais.

Como comparação, impende mencionar a solução adotada no Reino Unido. Por lá, vigora a denominada Football Creditors Rule, que proporciona um tratamento privilegiado aos credores pertencentes à indústria do futebol, como clubes, atletas e agentes. O objetivo é garantir que esses credores sejam pagos de forma integral e prioritária, de modo a evitar que as dívidas entre os integrantes da chamada "família do futebol" gerem um colapso na atividade econômica da modalidade como um todo.

Tal regra é muito polêmica e já foi alvo de ação judicial ajuizada pela HM Revenue & Customs (HMRC) [2], autoridade fiscal e aduaneira do Reino Unido, sob o argumento de violação ao princípio de tratamento igualitário entre os credores previsto na lei regente britânica, o Insolvency Act.

De certo, tal medida não poderia ser adotada pelas entidades de administração do esporte no Brasil em razão de sua flagrante ilegalidade, mas a solução adotada naquele país indica uma possível direção a ser seguida. Além disso, demonstra a devida atenção que o tema requer, no intuito de mitigar todas e quaisquer controvérsias que possam surgir no diálogo entre as normas e princípios estabelecidos pela entidade máxima do futebol e a Lei de Recuperação de Empresas e Falência.

Tal tratamento diferenciado destinado às dívidas esportivas também pode ser negociado diretamente com os credores, na apresentação do plano de recuperação judicial, sendo certo, claro, que qualquer ilegalidade na elaboração e aprovação do plano ensejará a não homologação do plano por parte do Juiz.

Visando superar tal impasse, a CNRD publicou uma portaria [3] na qual busca regulamentar, em âmbito nacional, as situações em que os clubes apresentem um plano coletivo de pagamento de suas dívidas. Nesses casos, será possível que a entidade determine a suspensão da aplicação das possíveis sanções geradas pelo inadimplemento de uma dívida esportiva no país.

Para além da via judicial, é possível que o clube recorra junto à própria Fifa. Como informado anteriormente, a Fifa é regida pelas normas jurídicas suíças. Dessa forma, o clube recorrente deve se orientar pelas normas daquele país, mais precisamente pela Federal Act on Private International Law (Pila) [4].

Em suma, o assunto é complexo e requer a devida análise por parte dos especialistas, que não devem se ater tão somente à letra fria da lei, mas também devem conhecer a fundo as características e peculiaridades da atividade econômica do futebol. Afinal de contas, se a LRF busca a manutenção dos benefícios da atividade econômica, deve-se conhecer profundamente a lógica que impera em cada atividade.

Denota-se, portanto, uma iminente pacificação do tema, de forma a assegurar uma maior segurança jurídica a todos stakeholders, sobretudo credores e devedores, mas também aos eventuais e possíveis investidores que possam surgir, possibilitando, assim, o pleno desenvolvimento da atividade econômica e a construção de uma indústria ainda mais robusta.

 

[1] Conforme artigo 6.3 do Código Disciplinar da FIFA.

[2] Processo nº [2012] WLR(D) 163, [2012] EWHC 1372 (Ch), [2012] Bus LR 1539. Disponível em <http://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Ch/2012/1372.html>. Acesso em 26 de fevereiro de 2023.

[3] Disponível em <https://www.cbf.com.br/a-cbf/Portarias/cnrd/portaria-cnrd-no-013-2023>. Acesso em 29 de julho de 2023.

[4] Disponível em < https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/1988/1776_1776_1776/en>. Acesso em 26 de fevereiro de 2023.

 

Fonte: Conjur.

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