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09-07-2016
STJ acerta rumos da alienação fiduciária em recuperação judicial
Por Renaldo Limiro
Todas as garantias são sempre bem-vindas em todas as situações. E ainda, mesmo que seja uma garantia pessoal e não represente muito em termos econômicos, subsiste para o garantidor os efeitos jurídicos negativos de uma inscrição nos serviços de proteção ao crédito, o que, de certa forma, é constrangedor, e pode induzi-lo a mexer-se no sentido de livrar-se de tal situação. A par dessas garantias pessoais ou fidejussórias (aval, fiança, caução, entre outros), existe o direito real de garantia, que, segundo Orlando Gomes, é aquele que confere ao seu titular o poder de obter o pagamento de uma dívida com o valor ou a renda de um bem aplicado exclusivamente à sua satisfação, ou seja, tem a finalidade de garantir ao credor o recebimento do débito. A garantia fiduciária é, portanto, um direito real.
O instituto sob estudos teve maior prevalência quando, a partir do ano de 1969, o Decreto-Lei número 911 alterou a redação do artigo 66 da Lei 4.728/1965, estabelecendo normas sobre a alienação fiduciária em garantia, através da qual se “transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”. Quase 20 anos depois, através da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, foi instituída a alienação fiduciária de coisa imóvel, definindo-a como sendo o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
Por fim, a Lei 10.931, de 2004, alterou o disposto na Seção XIV da Lei 4.728/1965, até então vigente sob o título “Alienação Fiduciária em Garantia”, passando, em conformidade com o criado artigo 66-B, para a denominação de “Alienação Fiduciária em Garantia no Âmbito do Mercado Financeiro e de Capitais”, em cuja redação do parágrafo 3o diz que “é admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito...”, e que, nessas modalidades, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, e que este, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial.
Ora, sendo o instituto da alienação fiduciária em suas diversas modalidades um direito real de garantia, ou seja, “aquele que confere ao seu titular o poder de obter o pagamento de uma dívida com o valor ou a renda de um bem aplicado exclusivamente à sua satisfação”, significa isto uma vinculação exclusiva do bem móvel ou imóvel, da coisa fungível, da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, assim como da cessão fiduciária de títulos de crédito à operação pactuada. E mais que isto, o credor torna-se, a partir de então, titular da posição de proprietário fiduciário dos respectivos bens.
É por isso, aliás, que o parágrafo 3o do artigo 49 da Lei 11.101/05 (LFRE), é peremptório ao dizer que “tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis... seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva”. Sim, o credor é proprietário do bem segundo a lei, pois esta lhe transfere a propriedade resolúvel daquele bem (móvel ou imóvel) , querendo com isto dizer que se a obrigação não for cumprida pelo devedor, esta – a transferência da propriedade -, se opera (cada qual obedecida a respectiva legislação, conforme acima). Numa síntese simplistas, os créditos dessa natureza (alienação fiduciária), em suas diversas modalidades, não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial.
Muito embora ser assim deste o princípio (9 de junho de 2005, data de vigência da Lei 11.101/2005), muitas discussões e opiniões divergentes, seja através de artigos doutrinários e até mesmo em obras jurídica, encheram diversas páginas de livros. O Judiciário brasileiro também se encaminhou por este trilhos pedregosos, e muitos escorregões foram cometidos por magistrados singulares e integrantes de colegiados, até que o tema chegou ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça que, finalmente, deu-lhe o correto entendimento, colocando, de vez, o trem sobre os trilhos.
Só o seguinte exemplo nos demonstra o quanto a questão sob estudos levou muitos operadores do direito a se equivocarem sobre sua correta interpretação, sendo que uns iam à frente emitindo suas opiniões e outros, atrás, seguindo-os, e, por óbvio, cometendo o mesmo erro. Referimo-nos, dentre dezenas, ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pois, o primeiro a criar Câmaras Especializadas para o conhecimento e julgamento das questões originárias da Lei número 11.101/05 (LFRE), que, decorrentemente de diversos julgamentos no mesmo sentido, criou uma súmula, a de número 60, que diz que “a propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor”. Não é esse, todavia, o correto entendimento. Já a propriedade fiduciária sobre imóvel constitui-se mediante registro do respectivo contrato no Cartório de Registro de Imóveis do Foro do imóvel alienado (art. 23 da Lei 9.514/97); e, da mesma forma, a propriedade fiduciária de coisa móvel infungível (que é regulada pelo Código Civil), é constituída pelo registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor.
Ao dizermos que o STJ colocou, de vez, o trem sobre os trilhos, referimo-nos ao seu enfrentamento do tema sob comento, oportunidade em que, literalmente, desdisse e desautorizou a aplicabilidade do inteiro teor do enunciado da Súmula 60 do TJ-SP e de outras dezenas de doutrinadores e julgadores que o seguem, ao trazer à lume o correto entendimento dos dispositivos legais correspondentes, assim como a correta e inquestionável aplicabilidade dos mesmos. A título de exemplo (e outros tantos existem na recente literatura jurisprudencial do STJ), citamos o Recurso Especial 1412529/SP, da 3a Turma (DJe de 2 de março de 2016), em que o ministro Marco Aurélio Bellizze, designado para lavrar o Acórdão em decorrência do seu voto vencedor, com extraordinária maestria e clareza solar, foi ao cerne da questão.
Demonstra o ilustre ministro que, na verdade, a propriedade fiduciária de que trata o STJ e de que deveria tratar também o enunciado da Súmula 60 do TJ-SP, é a operada sobre coisa fungível (o mútuo, por exemplo), sobre cessão de direitos e sobre coisas móveis, bem como sobre de títulos de crédito, ou seja, e conforme diz a Lei específica (10.931/2004), aquela em que “a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor”. Demonstra também que a propriedade fiduciária de que trata a Súmula nº 60 do TJSP é a prevista no Artigo 1.361 e seguintes do Código Civil, que diz que “considera-se fiduciária propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”, cuja constituição se opera com o registro do documento no registro de títulos e documentos do devedor, a partir do que, “dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa” (§ 2º do Arg. 1.361 do CC).
Pela grande acerto nesse voto do ministro Marco Aurélio Bellizze, designado para lavrar o Acórdão, e pela incontestável verdade expressa no mesmo, desautorizando, por consequência, a aplicabilidade da Súmula 60 do TJ-SP, transcrevemos parte da ementa do Recurso Especial acima mencionado:
“Recurso especial. Recuperação judicial. Cessão fiduciária sobre direitos sobre coisa móvel e sobre títulos de crédito. Credor titular de posição de proprietário fiduciário sobre direitos creditícios. Não sujeição aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do § 3º do art. 49 da lei n. 11.101/2005. Matéria pacífica no âmbito das turmas de direito privado do STJ. Pretensão de submeter aos efeitos da recuperação judicial, como crédito quirografário, os contratos de cessão fiduciária que, à época do pedido de recuperação judicial, não se encontravam registrados no cartório de títulos e documentos do domicílio do devedor, com esteio no § 1º do art. 1.361-a do código civil. Insubsistência. Recurso especial provido.
1. Encontra-se sedimentada no âmbito das Turmas que compõem a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça a compreensão de que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de créditos (caso dos autos), justamente por possuírem a natureza jurídica de propriedade fiduciária, não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do § 3º do art. 49 da Lei n. 11.101/2005.
2. O Código Civil, nos arts. 1.361 a 1.368-A, limitou-se a disciplinar a propriedade fiduciária sobre bens móveis infungíveis. Em relação às demais espécies de bem, a propriedade fiduciária sobre eles constituída é disciplinada, cada qual, por lei especial própria para tal propósito. Essa circunscrição normativa, ressalta-se, restou devidamente explicitada pelo próprio Código Civil, em seu art. 1.368-A (introduzido pela Lei n. 10.931/2004), ao dispor textualmente que "as demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições desse Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial".
2.1 Vê-se, portanto, que a incidência subsidiária da lei adjetiva civil, em relação à propriedade/titularidade fiduciária sobre bens que não sejam móveis infugíveis, regulada por leis especiais, é excepcional, somente se afigurando possível no caso em que o regramento específico apresentar lacunas e a solução ofertada pela "lei geral" não se contrapuser às especificidades do instituto por aquela regulada.
3. A exigência de registro, para efeito de constituição da propriedade fiduciária, não se faz presente no tratamento legal ofertado pela Lei n. 4.728/95, em seu art. 66-B (introduzido pela Lei n. 10.931/2004) à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito (bens incorpóreos e fungíveis, por excelência), tampouco com ela se coaduna.
3.1. A constituição da propriedade fiduciária, oriunda de cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis e de títulos de crédito, dá-se a partir da própria contratação, afigurando-se, desde então, plenamente válida e eficaz entre as partes. A consecução do registro do contrato, no tocante à garantia ali inserta, afigura-se relevante, quando muito, para produzir efeitos em relação a terceiros, dando-lhes a correlata publicidade.
3.2 Efetivamente, todos os direitos e prerrogativas conferidas ao credor fiduciário, decorrentes da cessão fiduciária, devidamente explicitados na lei (tais como, o direito de posse do título, que pode ser conservado e recuperado 'inclusive contra o próprio cedente'; o direito de 'receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente', a outorga do uso de todas as ações e instrumentos, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos, entre outros) são exercitáveis imediatamente à contratação da garantia, independente de seu registro.
3.3 Por consectário, absolutamente descabido reputar constituída a obrigação principal (mútuo bancário, representado pela Cédula de Crédito Bancário emitida em favor da instituição financeira) e, ao mesmo tempo, considerar pendente de formalização a indissociável garantia àquela, condicionando a existência desta última ao posterior registro.
3.4 Não é demasiado ressaltar, aliás, que a função publicista é expressamente mencionada pela Lei n. 10.931/2004, em seu art. 42, ao dispor sobre cédula de crédito bancário, em expressa referência à constituição da garantia, seja ela fidejussória, seja ela real, como no caso dos autos. O referido dispositivo legal preceitua que essa garantia, "para valer contra terceiros", ou seja, para ser oponível contra terceiros, deve ser registrada (...). REsp 1.412.529/SP, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator para Acórdão ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 17/12/2015, DJe 02/03/2016)” (todos os grifos são nossos).
Vale ressaltar, ao fim, que esta lição do ministro Marco Aurélio Bellizze, seguido pela maioria, a exemplo mesmo de outras decisões do STJ em suas 3ª e 4ª Turmas e 2ª Seção, dá novos rumos, ou melhor, dá os corretos rumos ao instituto ora sob estudos, constituindo-se mais um acerto para a sua correta aplicação à Lei 11.101/05 (Falências e Recuperação de Empresas). É um brinde que o STJ dá a todos os operadores do direito no Brasil.
Por Renaldo Limiro - advogado especialista em Recuperação Judicial
Fonte: Consultor Jurídico