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28-10-2025 

RJ da incorporadora: O patrimônio de afetação em xeque

Analisa o dilema do patrimônio de afetação na RJ: Flexibilizar a proteção do comprador para salvar a empresa? A discussão traz uma nova perspectiva sobre o tema.

Introdução: O desafio da recuperação de incorporadoras

A recuperação judicial de empresas no Brasil representa um pilar fundamental para a economia, buscando preservar a fonte produtora, o emprego e os interesses dos credores, em consonância com a função social da empresa. Contudo, quando o cenário envolve o setor de incorporação imobiliária e o peculiar instituto do patrimônio de afetação, a complexidade jurídica e econômica atinge um novo patamar. O presente artigo propõe-se a analisar a intrincada relação entre a recuperação judicial e a proteção do patrimônio afetado, investigando a possibilidade de flexibilização dessa proteção sem comprometer os direitos dos adquirentes e credores, e ponderando sobre os desafios doutrinários e jurisprudenciais que emergem desse debate.

A função social da empresa e a proteção do patrimônio no setor imobiliário

No contexto do Direito Empresarial brasileiro, a função social da empresa transcende a mera busca pelo lucro. Como bem salienta Marcelo Barbosa Sacramone, ela se manifesta na promoção da oferta de bens e serviços, no aumento da concorrência, na geração de empregos e no desenvolvimento econômico nacional. Marcelo Barbosa Sacramone (2022, p. 249) reforça que:

"a função social da atividade empresarial é justamente se desenvolver e circular riquezas, de modo a permitir a distribuição de dividendos a sócios, mas também de promover a oferta de bens e serviços aos consumidores, aumentar a concorrência entre os agentes econômicos, gerar a oferta de postos de trabalho e o desenvolvimento econômico nacional."

Nesse prisma, a legislação de recuperação judicial, especialmente a lei 11.101/05, modificada pela lei 14.112/20, atua como um instrumento de defesa das empresas em dificuldade financeira, visando seu soerguimento e a continuidade de sua função social.

Paralelamente, o setor de incorporação imobiliária, impulsionado pela demanda por moradias, viu surgir mecanismos específicos de proteção aos adquirentes, especialmente após experiências traumáticas como a falência da Encol S/A. A lei 4.591/1964, complementada pela lei 10.931/04, introduziu o conceito de patrimônio de afetação. Este instituto visa segregar o terreno e as acessões de um empreendimento, bem como os bens e direitos a ele vinculados, do patrimônio geral do incorporador. A finalidade primordial é garantir que os recursos destinados àquele empreendimento sejam utilizados exclusivamente para sua conclusão, blindando-o de crises financeiras da incorporadora.

Conforme o art. 31-A da lei 4.591/1964:

"a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes."

O parágrafo primeiro do mesmo artigo complementa que:

"o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva."

Este mecanismo reforça a confiança no mercado imobiliário, assegurando aos adquirentes que seus investimentos estão protegidos. Contudo, a ausência de previsão legal expressa na lei de recuperação judicial sobre o tratamento do patrimônio de afetação gerou uma lacuna interpretativa, dando origem ao complexo debate sobre a mitigação de sua proteção no processo recuperacional.

A (im)possibilidade de mitigação da proteção do patrimônio afetado na recuperação judicial

A controvérsia central reside em conciliar a rigidez do patrimônio de afetação - que garante a segregação e a incomunicabilidade de bens para proteger os adquirentes - com a flexibilidade necessária a um plano de recuperação judicial, que muitas vezes exige concessões e reestruturações para viabilizar a empresa como um todo.

O debate doutrinário

Diferentes correntes doutrinárias se formaram para tentar preencher essa lacuna. Uma das visões mais influentes é a de Sheila Cerezetti, que, em pareceres e escritos, defende a possibilidade de submeter as SPEs - Sociedades de Propósito Específico com patrimônio de afetação à recuperação judicial, inclusive em consolidação substancial. Para Cerezetti, a lógica liquidatória da falência é distinta da lógica preservacionista da recuperação judicial. Ela argumenta que o art. 31-F da lei de incorporações Imobiliárias, que prevê a execução independente do patrimônio de afetação, deveria ser interpretado de forma restritiva, aplicando-se apenas aos casos de falência, e não de recuperação. Sheila Cerezetti (2012) sustenta que:

"Se, na falência, é a sua lógica liquidatória a justificar a previsão de uma execução independente do patrimônio de afetação quando da insolvência da incorporadora (art. 31-F da Lei 4.591/1964), o objetivo de manter a atividade produtiva, que marca a recuperação judicial, impede que a mesma norma seja a ela aplicada."

Essa perspectiva sugere que a exclusão do patrimônio de afetação da arrecadação de bens em favor da massa falida, prevista no art. 119, inciso IX, da lei 11.101/05, foi uma escolha deliberada do legislador para a falência, não se estendendo à recuperação judicial, que possui um objetivo distinto de reabilitação.

Em contrapartida, Eduardo Kataoka adverte que não se vislumbra distinção no tratamento do patrimônio separado na falência e na recuperação judicial. Eduardo Kataoka (2014) argumenta que:

"(...) é possível sustentar que tanto na recuperação judicial quanto na falência o patrimônio de afetação tende a permanecer intocado, sendo destinado à consecução do empreendimento imobiliário."

Essa linha de pensamento defende que as leis 4.591/1964 e 11.101/05 seriam complementares, e o instituto da afetação, criado para proteger o adquirente, não deveria ter sua finalidade desvirtuada em um processo de recuperação. O cerne da questão é que os credores das SPEs com patrimônio de afetação firmaram contratos com a expectativa de segregação de riscos, crença que seria abalada caso seus créditos fossem submetidos a um plano de recuperação unificado com o patrimônio geral da incorporadora.

O TCC, ao ponderar as posições, conclui que os créditos sobre o patrimônio de afetação podem se submeter à recuperação judicial, mas apenas desde que haja manifestação expressa dos credores do patrimônio de afetação. Essa abordagem busca um equilíbrio, reconhecendo a finalidade protetiva do instituto, mas permitindo flexibilização quando os próprios beneficiários concordam em abrir mão de seu privilégio, conforme o art. 50 da lei 11.101/05, que autoriza a utilização de quaisquer meios para o soerguimento societário.

A análise jurisprudencial: Casos emblemáticos

A jurisprudência brasileira tem se debruçado sobre a questão, buscando soluções pragmáticas para equilibrar a proteção dos adquirentes e a viabilidade das incorporadoras em crise.

Recuperação judicial do Grupo João Fortes: Este caso, que chegou ao STJ por meio da tutela provisória 3.572/RJ (STJ - TP: 3572 RJ 2021/0265210-4, relator: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Publicação: DJ 23/8/21), foi um dos primeiros a demandar a análise do STJ sobre a inclusão de SPEs com patrimônio de afetação em recuperação judicial. O Grupo João Fortes solicitou a recuperação em consolidação processual para 69 sociedades, incluindo 7 SPEs com patrimônio de afetação. Embora o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva tenha concedido efeito suspensivo aos recursos especiais, reconhecendo a plausibilidade da tese das recuperandas, ele ressalvou a inexistência de precedente direto no STJ. A decisão, portanto, sinalizou a abertura do Tribunal para o debate, mas não consolidou um entendimento definitivo sobre o mérito da inclusão.
Recuperação Judicial do Grupo PDG: Um marco importante na evolução jurisprudencial foi a recuperação judicial do Grupo PDG, iniciada em 2017 e envolvendo 512 sociedades, sendo 505 SPEs. Ciente das discussões anteriores, o Grupo PDG optou por não buscar a consolidação substancial de imediato, e as SPEs com patrimônio de afetação apresentaram planos de recuperação individuais, não pleiteando a novação dos créditos vinculados ao patrimônio de afetação. O TJ/SP manteve as decisões de primeira instância, entendendo que a medida não violava a incomunicabilidade do patrimônio afetado. Posteriormente, a 3ª turma do STJ (REsp 1.975.067/SP, 2021/0367996-0, Data de Julgamento: 17 maio 2022, Data de Publicação: DJe 25 maio 2022), por unanimidade, rejeitou a pretensão de uma incorporadora de incluir no plano de recuperação judicial os créditos vinculados a empreendimentos com patrimônio de afetação. O fundamento foi a incomunicabilidade dos direitos e obrigações segregados no patrimônio de afetação em relação ao patrimônio geral da empresa incorporadora. Este caso solidificou o entendimento de que, via de regra, os créditos do patrimônio de afetação permanecem segregados e não devem ser submetidos ao plano de recuperação judicial geral, a menos que haja um acordo específico.
Recuperação judicial do Grupo Porto Freire: A recuperação judicial do Grupo Porto Freire, na Comarca de Fortaleza, trouxe uma perspectiva interessante. Inicialmente, a decisão de primeiro grau deferiu a inclusão de patrimônios de afetação (como os empreendimentos Montserrat e Valencia) no plano, visando garantir fluxo de caixa para a reorganização econômica da empresa. O juízo argumentou que a fiscalização da Administradora Judicial e do Ministério Público asseguraria a proteção dos credores e consumidores. A Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (agravo de instrumento 0634750-05.2021.8.06.0000, relatora: desembargadora Jane Ruth Maia de Queiroga, Fortaleza, 21 fev. 2024) confirmou parcialmente essa decisão, exigindo o depósito dos valores recebidos dos empreendimentos em conta vinculada. No entanto, o caso do Grupo Porto Freire teve um desfecho revelador: culminou em sua convolação em falência. A incapacidade de renegociar dívidas, manter serviços de fornecedores e as peculiaridades do negócio, especialmente relacionadas ao patrimônio de afetação, levaram ao encerramento das operações. Este desfecho destaca a fragilidade de tentar mitigar a proteção do patrimônio de afetação em cenários de crise aguda, mesmo com intenções de preservar a empresa.
Desafios e perspectivas para o equilíbrio jurídico

A análise da doutrina e da jurisprudência demonstra que a questão da mitigação da proteção do patrimônio de afetação na recuperação judicial é complexa e ainda em evolução. Se, por um lado, a finalidade da recuperação judicial é preservar a empresa e sua função social, por outro, o patrimônio de afetação foi criado para proteger um grupo específico e vulnerável de credores - os adquirentes de imóveis na planta.

A introdução de mecanismos como a consolidação processual e substancial pela lei 14.112/20 (art. 69-G e seguintes) oferece ferramentas para lidar com grupos econômicos, mas o desafio persiste na harmonização desses dispositivos com a lei 4.591/1964. A jurisprudência tem caminhado no sentido de reforçar a segregação patrimonial, limitando a inclusão de créditos afetados no plano de recuperação geral, a menos que haja consentimento específico dos credores do patrimônio de afetação, como observado no caso PDG.

O caso Porto Freire, com sua convolação em falência após tentativas de flexibilização, serve como um alerta para a cautela necessária. A busca pelo equilíbrio deve considerar a natureza excepcional do patrimônio de afetação e a confiança dos adquirentes, que não podem ser sacrificados em nome de uma recuperação empresarial que se mostra inviável, sob pena de descredibilizar o próprio instituto.

Conclusão

A recuperação judicial de incorporadoras com patrimônio de afetação representa um campo fértil para o debate jurídico. É fundamental buscar um ponto de equilíbrio entre a preservação da empresa e a irrenunciável proteção dos adquirentes. Embora a legislação atual apresente lacunas, a interpretação sistemática e teleológica das normas, aliada à análise das particularidades de cada caso, tem delineado um caminho.

A regra geral da incomunicabilidade do patrimônio de afetação deve prevalecer, admitindo-se sua flexibilização apenas com o consentimento expresso dos credores que confiaram nessa segregação. Somente assim será possível assegurar a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento do mercado imobiliário, proteger os interesses dos adquirentes e, simultaneamente, oferecer caminhos viáveis para a reestruturação de empresas em crise, em alinhamento com a função social que lhes é atribuída.

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ARAÚJO, José Francelino de. Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2009.

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BRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias [...]. Brasília, DF, Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm.

BRASIL. Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Altera a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, para aperfeiçoar o regime de recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 24 dez. 2020. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.112-de-24-de-dezembro-de-2020-294237828.

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Terceira Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento n.º 0634750-05.2021.8.06.0000. Agravante: Itaú Unibanco S.A. Agravadas: Porto Freire Engenharia e Incorporação Ltda. e outras. Relatora: Desembargadora Jane Ruth Maia de Queiroga. Fortaleza, 21 fev. 2024. Disponível em: https://esaj.tjce.jus.br/esaj..

CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial de sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa na Lei de recuperação e falência. São Paulo: Malheiros, 2012.

CEREZETTI, Sheila Neder. Parecer apresentado em 17 de outubro 2016, no âmbito do processo de recuperação judicial do Grupo Viver. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP. Processo 1103236-83.2016.8.26.0100. 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais. Juiz: Paulo Furtado de Oliveira Filho. Folhas 5134-5160.

CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora GEN, 2023.

KATAOKA, Eduardo Takemi. A recuperação judicial e o patrimônio de afetação. Revista dos Tribunais. Rio de Janeiro, v.8, p. 1-19, nov. / dez. 2014.

SACRAMONE, Marcelo B. Comentários à Lei Recuperação de Empresas e Falência. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

 

 

Fonte: Migalhas.

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