NOTÍCIAS
14-10-2024
Regularidade fiscal e recuperação judicial
Uma breve análise à luz da Lei 11.101/2005 e dos entendimentos do STJ
A recuperação judicial é um mecanismo essencial para a reestruturação de empresas em crise, mas a exigência de comprovação de regularidade fiscal na fase final do processo pode se tornar um obstáculo.
A comprovação da regularidade fiscal, por meio da apresentação das certidões negativas de crédito tributário (CNDs), ocorre após a análise do plano de recuperação judicial (PRJ). O art. 57 da Lei 11.101/2005 estabelece que essa comprovação é um requisito essencial para a concessão da recuperação judicial.
Sobre a disposição, no julgamento do REsp 1955325-PE, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu um importante precedente: a partir da vigência da Lei 14.112/2020, tornou-se necessário apresentar as CNDs como requisito para a homologação do PRJ, nos termos dos arts. 57 da LREF e 191-A do CTN. No entanto, para as homologações anteriores à vigência da referida lei, as certidões continuam sendo dispensáveis.
Anteriormente às alterações da Lei 14.112/2020, prevalecia o entendimento de que a apresentação das CNDs não constitui requisito obrigatório para a concessão da recuperação judicial ante a incompatibilidade da exigência com a relevância da função social da empresa e o princípio que objetiva sua preservação.
Todavia, a normativa introduzida pela Lei 14.112/2020 trouxe nova interpretação, notadamente diante da previsão do art. 68 de que “as Fazendas Públicas e o INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros e estabelecidos no CTN”.
O art. 3º da Lei 14.112/2020 alterou a Lei 10.522/2002, introduzindo novo parcelamento de débitos com a Fazenda Nacional para empresas em recuperação judicial, abrangendo débitos tributários ou não, inscritos ou não em dívida ativa. Além disso, a LC 147/2014 estabeleceu prazos 20% maiores para ME e EPP.
Com a introdução de ferramentas para a renegociação de passivos tributários, as empresas em recuperação judicial não precisariam mais se isentar da apresentação das CNDs. No entanto, surge a dúvida sobre a exigência de CNDs para processos iniciados antes da Lei 14.112/2020, considerando o direito intertemporal.
Em análise, a jurisprudência nas Turmas de Direito Privado do STJ é uníssona na esteira de que, com a entrada em vigor da Lei 14.112/2020, é imprescindível à concessão da recuperação judicial a comprovação da regularidade fiscal, com a apresentação das CNDs, na forma expressa do art. 57 da LREF.
Não obstante, não se verifica essa exigência em momento anterior à vigência da norma supra, pois não se tratava de pressuposto obrigatório para a concessão da recuperação judicial.
Assim, trazendo os ensinamentos do REsp 1955325-PE[1], na hipótese de decisões homologatórias do PRJ proferidas anteriormente à vigência da lei supra, “aplica-se o entendimento jurisprudencial pretérito no sentido da inexigibilidade da comprovação da regularidade fiscal, forte no princípio tempus regit actum (art. 5º, XXXVI da CF e art. 6º da LINDB), de forma a não prejudicar o cumprimento do plano".
O fundamento é que o direito recuperacional, como microssistema, visa a reestruturação de empresas, equilibrando a preservação da empresa com o interesse social na arrecadação de ativos fiscais. O princípio da preservação da empresa deve considerar não apenas o benefício da empresa em si, mas também os interesses sociais mais amplos, incluindo o direito ao parcelamento do crédito tributário.
Em igual vertente cognitiva, REsp 2127647-SP, foi decidido que, nos processos de recuperação judicial em andamento na vigência da Lei 14.112/2020, mas sem concessão ainda, é permitido conceder um prazo razoável para a empresa se adequar às novas exigências, conforme o art. 218, §1º do CPC e o art. 189 da LREF.
Portanto, em todos os cenários processuais, a solução legal não é a convolação em falência, mas a suspensão do processo, interrompendo benefícios à empresa em recuperação, como a suspensão de execuções e pedidos de falência, até o cumprimento das exigências legais.
É importante destacar que, no tocante aos débitos estaduais e municipais, é necessário que exista uma legislação específica para o parcelamento desses débitos, conforme orientação da 3ª Turma do STJ no REsp 2053240-SP[2].
O STJ concluiu que a aplicação subsidiária de dispositivos legais (art. 57 da LREF e o art. 191-A do CTN) não foi suficiente para garantir a equalização das dívidas fiscais na prática. Assim, até que houvesse uma lei específica sobre parcelamento de créditos tributários, não seria viável exigir a regularidade fiscal para a concessão.
Em semelhante orientação, o Enunciado 55 da I Jornada de Direito Comercial do CJF dispõe: “O parcelamento do crédito tributário na recuperação judicial é um direito do contribuinte, e não uma faculdade da Fazenda Pública, e, enquanto não for editada lei específica, não é cabível a aplicação do disposto no art. 57 da Lei 11.101/2005 e no art.191-A do CTN”.
Nesse sentido, o direito ao parcelamento consubstancia um direito subjetivo do devedor (o qual não pode ser recusado no caso de cumprimento das condições impostas), que somente pôde ser implementado, no âmbito federal, em razão da edição de lei específica a esse propósito.
Por conseguinte, em relação a débitos fiscais de titularidade dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, a exigência de regularidade fiscal, como condição à concessão da recuperação judicial, somente poderá ser implementada a partir da edição de lei específica dos referidos entes políticos.
Assim, revelam-se dois cenários: (I) exigência das certidões para entes políticos com programas de parcelamento para empresas em recuperação judicial; e (II) dispensa das certidões nos locais em que o ente não implementou lei tão favorável quanto a Lei 14.112/2020.
Em acórdão proferido em 19 de julho deste ano, o TJMG manteve a dispensa da CND para empresa em recuperação judicial, sob o argumento de que o estado não editou uma lei tão benéfica quanto a Lei 14.112/2020, e que as condições impostas pela Lei Estadual 21.794/2015 não são tão favoráveis que justifiquem a exigência[3].
Na mesma linha, em 19 de agosto, o TJGO decidiu no AI 5619561-74.2024.8.09.0011 que a exigência de CNDs estaduais e municipais deve ser afastada. A decisão considerou que, no estado e nos municípios onde a empresa tem sedes e filiais, os programas de parcelamento não são tão favoráveis quanto os da Lei 14.112/2020, que permite o parcelamento em até 120 prestações mensais com percentuais mínimos definidos. Portanto, aplicar a mesma exigência em níveis estadual e municipal seria excessivamente oneroso.
Em conclusão, embora ainda seja cedo para afirmar se esse movimento se tornará uma tendência, a reforma da LREF fortaleceu a posição do fisco no contexto das empresas em crise, destacando a preocupação com o equacionamento do passivo tributário. No entanto, resta aguardar como o Judiciário interpretará essas mudanças legislativas e como os entes políticos responderão com normas que assegurem condições tão favoráveis quanto as previstas na Lei 14.112/2020.
[1]REsp: 1955325 PE 2021/0254007-6, R.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 12/03/2024, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: 22/04/2024.
[2]REsp: 2053240 SP 2023/0029030-0, R.: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 17/10/2023, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: 19/10/2023.
[3]TJ-MG - AI: 11272242720248130000 1.0000.24.112722-4/000, Relator: Des. José Eustáquio Lucas Pereira, Data de Julgamento: 17/07/2024, 21ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 19/07/2024.
Fonte: Jota.