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20-10-2023 

Recuperação judicial, um remédio amargo, mas eficaz

A conta da pandemia chegou à mesa das empresas. As ameaças de quebradeira geral no mundo dos negócios anunciada como decorrências das restrições da atividade econômica e da circulação de pessoas impostas pela crise sanitária veio com três anos de atraso.

De acordo com o Indicador de Recuperação Judicial e Falências da Serasa Experian, que monitora empresas e consumidores endividados desde 1991, entre janeiro e junho de 2023, foram protocolados 593 pedidos de recuperação judicial, número 52% maior que no mesmo período de 2022. Já os pedidos de falências tiveram aumento de 36% em relação ao mesmo período: foram 456 solicitações em 2023 contra 401 no primeiro semestre de 2022.

E a onda vem aumentando, segundo o relatório da Serasa. Em junho de 2023, foram registrados 92 pedidos de recuperação judicial, 61%, a mais do que em junho de 2022. A análise revela que o setor de Serviços é o que, historicamente, mais vem demandando por recuperação judicial, seguido do Comércio, da Indústria e do setor Primário, que contempla agricultura, pecuária, extrativismo, entre outras.

O ano de 2023 começou com uma sequência de notícias dando conta das dificuldades de grandes corporações para pagar suas contas. O caso mais espetacular foi o da Americanas, gigante do comércio eletrônico, que entrou com pedido de recuperação judicial diante de inconsistências contábeis no balanço que apontaram um rombo de R$ 40 bilhões.

Também enfrentaram problemas de caixa a rede de lojas de vestuário Marisa, a de lojas de móveis Tok & Stok, a Cervejaria Petrópolis e a centenária concessionária de energia Light, do Rio de Janeiro. Nesse caso, paira a dúvida se concessionária de serviço público pode pleitear recuperação judicial. O mesmo ocorre com a empresa de telefonia Oi, que entrou com um segundo pedido de recuperação antes de cinco anos do encerramento do primeiro pedido, contrariando o que dispõe a lei.

Os primeiros resultados de 2023 indicam a reversão de uma tendência de queda no número de pedidos de recuperação judicial e de falências que se desenhava desde 2018. A Lei 11.101, que regulamenta a recuperação judicial, entrou em vigor em 9 de fevereiro de 2005.

O pico dos casos aconteceu em 2016, quando houve 1.852 pedidos de falência e 1.863 de recuperação. Vivia-se o auge do “lavajatismo”, com a consequente crise no setor de construção civil (grandes alvos da força-tarefa, como OAS, Camargo Corrêa, Odebrecht e UTC, entrariam em recuperação judicial posteriormente), além do impeachment da presidente Dilma Rousseff. A partir daí, a curva se inverteu. A pandemia criou um fato novo. Como lembra o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, os grandes credores – entenda-se, os bancos – enxergaram a gravidade do momento e postergaram a execução de seus devedores. O efeito de retardo desta estratégia de sobrevivência realizou-se agora.

Advogados da área de insolvência e reestruturação de empresas confirmam. “Identificamos, nos últimos dois anos, que o número de casos de falência em nosso escritório nunca foi tão alto. Encerramos 20 casos de falência”, conta Ana Beatriz Moroni, advogada em insolvência há mais de dez anos, com mais de 150 casos por todo o Brasil, sócia da Deloitte Brazil.

“Houve aumento de casos de recuperação agora por conta do cenário pós-covid-19. Os bancos estavam sensíveis ao momento. O efeito está vindo agora. Na verdade, no final do segundo semestre já começou”, diz a advogada Luiza Oswald, sócia-gestora e head de produtos estruturados da JGP, que atua com foco em recuperação de crédito, reestruturação de dívidas e fundos de investimento. Ela conta que o cenário de juros altos impacta duramente as empresas. “Difícil de apostar numa reviravolta, mesmo com a nova lei. Quando as companhias entram em recuperação, já estão muito machucadas”, diz.

De acordo com Roberto Politi, head de estratégias de investimentos do banco BTG Pactual, a situação econômica não é boa porque os juros brasileiros acabam seguindo a política fiscal norte-americana, que também não está bem. “Quando falamos em juros, temos que olhar não só o contexto do Brasil, mas como o cenário internacional nos afeta. A base para formação de preços no mundo são os juros americanos, que estão altos. Como aqui, o presidente do Federal Reserve briga com o mercado para combater a inflação e definir expectativas de juros”, diz.

O economista Álvaro Frasson, também do BTG Pactual, diz que está ocorrendo um movimento não usual. “A Selic americana está em torno de 5%, a mais alta dos últimos 15 anos, reflexo do que aconteceu na economia, com expansão da parte fiscal e monetária para que as pessoas ficassem em casa sem trabalhar. O assistencialismo também ajudou a pressionar a inflação”, afirma. “Se o Brasil tem essa taxa elevada, não significa que ela não deveria estar onde está. O Banco Central é bastante criterioso e técnico em suas decisões, assim como os EUA”, avalia. Para ele, os juros só caem em 2024.

“Quando a água bate no rosto das grandes potências, os pequenos já se afogaram. Uma potência econômica como os Estados Unidos está em recessão; imagina os países menores, os países de terceiro mundo”, compara o advogado e professor da USP Oreste Laspro, experiente administrador judicial. Ele projeta que o ano de 2023 tenha, de fato, uma grande quantidade de processos de recuperação e falimentares.

“O que aconteceu nos últimos três anos foi que, entre as partes, credores e devedores, não se negociou pagamento, mas a suspensão parcial de exigência de crédito. Quando a situação está ruim para todo mundo, a tendência é as pessoas jogarem o problema para frente. Mas agora os bancos vão ter que buscar o recebimento do seu crédito”, diz Laspro.

Marcelo Moraes Santiago, sócio da Jive Investments, especializada em “investimentos estressados”, cresce os olhos justamente para cenários de crise acentuada, onde pode cavar boas oportunidades de negócio (sua área ficou pejorativamente conhecida como de “fundos abutres”). Ele alerta que a manutenção de taxas muito altas de juros gera aumento de especulação de crédito e falta de pagamento. “Os investidores precisam de certeza de recuperação de crédito. O dinheiro arriscado fica ainda mais caro”, diz. “Crises geram oportunidades e é nesse cenário que gostamos de atuar. Mas não pode ser um mercado tão estressado assim.”

Recuperação judicial é uma criação recente no ordenamento jurídico brasileiro, tendo sido instituída em 2005 pela Lei 11.101: “Art. 1º – ‘Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor’”.

Substituta da antiga Lei de Falências – na verdade Decreto-Lei 7.661 – de 1945, a Lei 11.101/2005 pretendeu promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, além de dar conta da nova dinâmica de negócios do século XXI. “A partir da década de 1990, com a globalização, as estruturas empresariais ficaram cada vez mais complexas e a Lei 11.101, bem como sua reforma, regulamenta a forma como a empresa vai poder se recuperar ou, se isso não for possível, de que forma sua falência tem de ser feita, sempre da maneira mais eficiente possível”, explica o advogado Laspro.

Em 2021, em plena epidemia, entrou em vigor a Lei 14.112, que alterou a Lei 11.101. As mudanças visam a dar fôlego para a recuperação de empresas, permitindo sua manutenção no cenário econômico, além de aumentar a eficácia e a celeridade do processo.

Daniel Carnio Costa, juiz da 1ª Vara de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo que integrou a comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de lei, diz que a reforma de 2020 deixou bem claro o vetor de aplicação da lei: a prevalência da preservação da função social diante dos benefícios que decorrem da atividade empresarial. “A ideia é preservar a empresa, porque gera empregos, produtos, serviços, enfim, faz circular riquezas. O objetivo do sistema de insolvência, seja na recuperação, seja na falência, é preservar os benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial. A reforma consertou aquela ambiguidade que existia anteriormente”, afirma o juiz que hoje integra o Conselho Nacional do MP.

“A recuperação judicial está no horizonte do empresário. Ele olha para ela como o último recurso, em caso de dificuldade, para não encerrar as atividades, não falir. Essa mudança é importante”, diz Carlos Alberto Garbi, desembargador aposentado do TJ-SP e que hoje advoga também na área, em parceria com escritórios maiores. Para Garbi, também os credores têm a recuperação judicial em seu horizonte de negócios. “Os credores profissionais, caso dos bancos, preparam-se para a eventualidade da recuperação, usam os controladores ativos das companhias e pegam garantia. Então, eles se cobrem.”

Tanto a recuperação judicial como a extrajudicial visam a promover a preservação da empresa e a reestruturação de suas atividades econômicas. Para tanto, a empresa em recuperação apresenta um plano em que informa como vai obter recursos para saldar seus débitos. No caso do procedimento judicial, a empresa negocia o passivo com os credores por meio do Judiciário, com nomeação de um administrador judicial.

Já pelo caminho extrajudicial, a recuperação é estabelecida diretamente entre a devedora e os credores, por meio de acordo entre as partes, que pode ou não ser homologado judicialmente. O número de recuperações extrajudiciais tende a crescer com as reformas implementadas. É o caso do Grupo Amaro.

A varejista de moda feminina teve prejuízos com suas lojas físicas durante a pandemia e entrou com o pedido no final de março de 2023. Chegou a um acordo com seus principais credores e definiu um plano de reestruturação com dívidas orçadas em R$ 244 milhões. Com a homologação do plano, a empresa pediu que ações judiciais, como pedidos de falência ou despejo de lojas, sejam interrompidas.

A recuperação extrajudicial é menos burocrática e mais rápida que a judicial. Não há intermediador, embora já se discuta a possibilidade de nomeação de administrador judicial na recuperação extrajudicial. Outra vantagem é a possibilidade de negociar a dívida com apenas uma categoria determinada de credores. A quarta vantagem é o custo, consideravelmente menor do que o da recuperação judicial. No caso da Amaro, o plano envolve pagamentos somente de credores quirografários. Caso não prospere, a recuperação entra na via judicial.

Samantha Mendes Longo trabalhou na recuperação judicial da Oi, que envolveu 800 mil credores. Ela conta que, até então, a busca de consenso não era muito considerada. Junto ao Wald Advogados e à PwC, buscaram ferramentas consensuais e precisaram se socorrer da 8ª Câmara Cível do TJ do Rio de Janeiro, que entendeu pela possibilidade de se mediar o conflito.

“Trouxemos um programa de acordo, todos os atores ficaram irmanados. Tentamos limpar um pouco a lista, com credores de crédito de menor valor, que eram a maior parte”, diz. Segundo a advogada, 60 mil acordos foram celebrados em uma plataforma online. “Unimos dois mundos que não se falavam. A recuperação é um processo de negociação coletiva. Precisa do apoio do credor para a recuperação seguir em frente, convencê-lo de que a empresa vai se reerguer.”

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Todas as empresas privadas de qualquer porte e com mais de dois anos de operação podem recorrer à recuperação judicial. Não podem pedir recuperação as estatais, as empresas de capital misto, cooperativas de crédito e planos de saúde. Além dessas, as que já tenham feito outro pedido há menos de cinco anos e também as companhias comandadas por empresários condenados por crime relacionado a processos de falência.

Depois de seis anos de duração do primeiro processo de recuperação judicial, a Oi entrou com um segundo pedido de recuperação em março. A 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro autorizou o processamento “por ela estar com atividade sólida, R$ 12,6 bilhões a receber, vir renegociando suas dívidas e por haver probabilidade de a empresa se reerguer”. A dívida da Oi é de R$43,7 bilhões e ela tem 35 mil credores. No caso discute-se a possibilidade de ajuizar nova recuperação judicial na pendência da primeira. O Tribunal de Justiça fluminense autorizou e o caso deve ir ao STJ.

Em maio de 2023, a 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro aceitou o pedido de recuperação da Light, concessionária de energia elétrica do Rio de Janeiro, e concedeu-lhe uma cautelar para suspender débitos financeiros em discussão. A dívida de R$ 11 bilhões está concentrada na distribuidora de energia, mas o pedido foi apresentado pela holding para contornar limitações legais.

A decisão facultou às partes usar a mediação extrajudicial, que vem sendo feita pelo Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA). Ela deve negociar com aproximadamente 30 credores. A Light atende a 4,5 milhões de consumidores em mais de 30 municípios do Rio de Janeiro. Concessionárias são expressamente proibidas pela lei de entrar em recuperação judicial. O Ministério Público discorda da manobra da Light e entrou com ação para contestá-la.

O advogado e desembargador aposentado do TJ-SP Carlos Alberto Garbi, aponta essa restrição como uma falha da lei. Ele defende a universalização da recuperação judicial para toda e qualquer atividade econômica. “Por que um colégio, uma universidade, uma associação, um clube de futebol não podem se socorrer? Eles geram riqueza tal como qualquer outra empresa. Nós aqui temos o tratamento da insolvência que não é universal, é limitada ao empresário, e o tratamento da pessoa física também é muito tímido”, critica.

O juiz Daniel Carnio discorda. “Isso foi objeto de discussão no Congresso Nacional e foi uma opção consciente (não queremos dar esse benefício). Por mais que considere injusto, esse foi o critério do legislador. Mas os argumentos em favor da concessão são argumentos importantes, fortes e essa questão deve ser decidida em 2023 ainda pelo STJ. Se disser que pode, não se discute mais, pode. No final das contas, precisamos de segurança jurídica. Não importa se acho que não é certo. Se a jurisprudência diz que pode, o mercado se organiza calculando riscos com base nessa possibilidade”, diz.

 

Fonte: Conjur.

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