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26-03-2025
Recuperação judicial: perda da extraconcursalidade da CPR em razão da conversão da ação
De acordo com o artigo 1º, da Lei nº 8.929/94, a cédula de produto rural (CPR) de liquidação física configura-se como um título que confere ao credor o direito à entrega do produto rural em substituição ao pagamento em espécie – ou seja, representa a promessa de entrega de produtos rurais, podendo ser emitida com ou sem garantia [1], dependendo das condições acordadas entre as partes.
Dados recentes publicados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) no último dia 14 de janeiro de 2025, pelo Boletim de Finanças Privadas do Agro [2], mostram um crescimento de 216% no número de CPRs registradas entre 2022 e 2024.
Esse aumento sugere o uso da CPR não apenas como instrumento em prol dos produtores, mas, principalmente, como mecanismo de proteção pelo mercado. Afinal, no contexto de recuperação judicial, os créditos e as garantias cedulares vinculados à Cédula de Produto Rural (CPR), em regra, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do artigo 11 da Lei nº 14.112/2020:
“Art. 11. Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.”
Essa prática, entretanto, sobrecarrega os produtores, que, ao enfrentarem dificuldades financeiras, podem perder a possibilidade de reestruturação de suas dívidas no processo recuperacional.
CPR como mero instrumento de cobrança
O artigo 11, aludido alhures, estabelece de forma categórica que os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR, em regra, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial. Contudo, a parte final do mencionado artigo é expressa ao afirmar que “subsiste ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro”.
Constata-se, por meio deste dispositivo, que a hipótese de não sujeição se refere unicamente à pretensão de entrega do produto rural, excluindo-se, portanto, a equivalência em quantia pecuniária.
Nesse sentido, o professor de Direito da DFV, dr. Cassio Cavali [3], entende que:
“Caso não possa mais ser produzido e entregue o produto rural vendido/permutado, o crédito pela entrega do produto rural converte-se em crédito por pagamento por quantia pecuniária e, como tal, sujeita-se à recuperação judicial. Esta conclusão é reforçada pelo fato de o art. 11 da Lei 8.929/1994 dispor que, em caso de se reconhecer a não sujeição do crédito da CPR, subsiste “ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro”. Isto é, por este dispositivo, a hipótese de não sujeição refere-se apenas à pretensão de entrega do produto rural e não do seu equivalente em pecúnia. Portanto, o art. 11 da Lei 8.929/1994 trata de hipótese de não sujeição de crédito pela entrega de produto rural (isto é, correspondente à obrigação de dar coisa incerta), e não de crédito ao pagamento de quantia certa no qual se converte a obrigação de entregar coisa incerta em caso de descumprimento.”
E continua “a pretensão a que alude o art. 11 da Lei 8.929/1994 mais se assemelha a hipótese de crédito (isto é, direito subjetivo de crédito) dotado de privilégio especial, exercido sobre coisa incerta”.
A partir do momento em que o credor de uma CPR de liquidação física passa a exigir o pagamento em dinheiro, em vez da entrega do produto, o título perde a característica intrínseca que o tornaria extraconcursal. Isso ocorre porque a CPR deixa de estar vinculada à propriedade do bem e passa a representar apenas uma expectativa de recebimento pecuniário, submetendo-se, assim, automaticamente aos efeitos da recuperação judicial.
Sob essa perspectiva, no caso da CPR, a conversão implica que o título, originalmente destinado a assegurar a entrega de produtos rurais, passe a ser tratado como um mero instrumento de cobrança de valores monetários. Essa mudança pode desvirtuar seus objetivos e funcionalidades essenciais no contexto das transações agrícolas, comprometendo sua finalidade e afetando negativamente a segurança jurídica que lhe é inerente.
Nesse contexto, infere-se que, não mais subsistindo o produto rural a ser entregue, o credor pode a optar por perseguir diretamente a quantia em dinheiro e, neste caso, a natureza da sua relação jurídica é modificada. Tal alteração também impacta a finalidade e as características do instrumento firmado, pois, em vez da exigência do produto originalmente pactuado, passa a vigorar a obrigação pecuniária – a qual se sujeita à recuperação judicial.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu que a perda da extraconcursalidade pode ocorrer em razão da propositura da execução. Nesse sentido, destaca-se o seguinte julgado:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução de título extrajudicial. Recuperação judicial. Perda de extraconcursalidade em razão da propositura da presente execução. Cédula de Produto Rural. Renúncia. Precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça. Decisão mantida. Recurso improvido.” (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 22153342220248260000 São Paulo, Relator.: Décio Rodrigues, Data de Julgamento: 27/08/2024, 21ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/08/2024)
Por analogia, pode-se aplicar ao presente caso a tese que trata da renúncia à garantia fiduciária, situação em que o credor opta por buscar outros meios de penhora sobre os bens do devedor. Essa escolha acarreta na descaracterização da extraconcursalidade, conforme entendimento consolidado na jurisprudência.
“Recuperação judicial Ajuizamento de execuções individuais Renúncia à garantia fiduciária em relação a duas cédulas de crédito bancário Caracterização Créditos que devem ser habilitados como quirografários Decisão reformada – Recurso provido em parte.” (A.I. n.º 2030060-92.2018.8.26.0000, Rel. Des. Fortes Barbosa, j. em13/04/2018)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO FIDUCIÁRIA EMGARANTIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. DECISÃO QUE REJEITOU A IMPUGNAÇÃO AO CRÉDITO APRESENTADA PELAS RECUPERANDAS. HIPÓTESE DE ACOLHIMENTO. AJUIZAMENTO DE EXECUÇÃO PELO CREDOR. RENÚNCIA À GARANTIA FIDUCIÁRIA QUE É INEQUÍVOCA NO CASO CONCRETO. CRÉDITO ASSUME NATUREZA QUIROGRAFÁRIA. EXTRACONCURSALIDADE PREVISTA NO ART. 49, § 3º, LEI Nº 11.101/05, AFASTADA. ART. 66-B, § 5º, LEI Nº 4.728/65, E ART. 1.436, III E § 1º, CC. RECURSO PROVIDO.” (A.I. n.º 2100475-37.2017.8.26.0000, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, j. em 26/03/2018)
Assim, ocorrendo a conversão da CPR em dívida pecuniária, é preciso que tal mudança venha a refletir efeitos sobre o processo de reestruturação financeira previsto na Lei 11.101/05, uma vez que o credor privilegiado pela existência do produto rural futuro se torna credor comum quando a entrega deste produto rural não é mais viável.
Por fim, pode-se concluir que a conversão da ação impacta diretamente a eficácia da cédula de produto rural, fazendo com que perca sua natureza privilegiada e passe a se submeter aos efeitos da recuperação judicial na classe quirografária.
[1] “Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas.”
[2] https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/boletim-de-financas-privadas-do-agro/boletim-de-financas-privadas-do-agro-jan.2025/view
[3] https://www.agendarecuperacional.com.br/apontamentos-sobre-a-causalidade-e-a-abstracao-na-duplicata-e-a-jurisprudencia-do-stj-2/
Fonte: Conjur.