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26-09-2025 

Recuperação judicial: despropositada exclusão dos créditos das cooperativas

No ano em que a Lei 11.101/2005 completa 20 anos, muito já foi escrito e falado, em tom de retrospecto, sobre avanços e retrocessos no sistema de insolvência empresarial brasileiro.

pesar de haver espaço para falar de melhorias realizadas na Lei 11.101/2005 no decorrer desses 20 anos, vamos tratar de um dos pontos em que, possivelmente, houve o maior de todos os retrocessos, que é o sistema de sujeição dos créditos aos efeitos da recuperação judicial.

Sobre isso, podemos iniciar dizendo que, nas últimas duas décadas, a cada alteração legislativa são criadas mais hipóteses de créditos não sujeitos. No meio, já é comum ouvir que o processo de recuperação judicial vem sendo “esvaziado ou “desidratado” a cada reforma, às vezes até por meio de “contrabandos legislativos”.

É um fato inquestionável, portanto, que a recuperação judicial atualmente tem uma abrangência muito menor do que tinha em 2005. Contudo, também é preciso reconhecer que isso é uma escolha política, pois não é necessariamente da essência de um processo de reestruturação que a ele se submetam todos as dívidas do devedor.

Ocorre que, a partir do momento em que o país opta por ter um sistema de reestruturação, passa a ser muito questionável se esvaziá-lo seria a melhor escolha. Para isso, basta lembrarmos de um dos motivos que, talvez, tenha sido determinante para o fracasso da concordata enquanto meio processual de tentativa de evitar a falência, que era justamente sua baixíssima abrangência.

Com isso, fica nítida a incoerência observada durante esses 20 anos de vigência e de alterações na Lei 11.101/2005, pois, se ao mesmo tempo em que por meio dela se criou um mecanismo mais eficiente de reestruturação — já que, além de mais sofisticado, ele é muito mais abrangente do que a antiga concordata —, percebemos uma gradativa diminuição da amplitude dos créditos submetidos a ela.

Retrocesso

Por isso, no início do texto termos falado em retrocesso, pois, nesse aspecto, certamente nosso sistema está hoje está pior do que estava em 2005. E isso é um absoluto contrassenso, pois a escolha pela mudança de modelo se deu justamente para que se afastasse de um sistema que havia fracassado.

E essa não é apenas uma discussão teórica sobre estarmos ou não regredindo para algo — ao menos em termos de abrangência — parecido com o que tínhamos com a concordata, pois repercussões práticas já se tornam flagrantes.

Atualmente passou a ser comum verificarmos situações em que devedores que, se acessassem a recuperação judicial, teriam condições de se reestruturarem, mas que dado o perfil de seu endividamento, majoritariamente tido como não sujeito aos efeitos de uma eventual recuperação judicial, não têm como pedi-la. Não que isso não pudesse acontecer em 2005, com um devedor, por exemplo, concentrando seu passivo em cima de operações garantidas por alienação fiduciária e de adiantamento a contratos de câmbio, por exemplo. Mas o que era uma rara exceção tem sido cada dia mais corriqueiro.

A ideia aqui não é questionar a legitimidade constitucional do Parlamento brasileiro para realizar esse tipo de escolha, mas, sim, a forma sorrateira como isso tem sido realizada — muito distante de um efetivo debate democrático — e da incoerência dessa conduta, considerando que o país optou em ter um sistema de reestruturação mais amplo.

Recuperação do produtor rural

Veja-se, por exemplo, o embuste realizado em relação à recuperação judicial do produtor rural. Depois de anos de discussão nos tribunais locais sobre o cabimento ou não para produtor rural pessoa física, no final de 2019, enfim, a 4ª Turma do STJ entende que produtor rural pessoa física poderia pedi-la [1], desde que registrado no registro público de empresas no momento do pedido.

Sob o pretexto de trazer segurança jurídica, a Lei 14.112/2020 positivou o entendimento firmado pelo STJ. No entanto, não parou por aí, uma vez que provocou um enorme esvaziamento das recuperações judiciais de produtores rurais, prevendo uma série de créditos não sujeitos aos seus efeitos.

Quando se observa todo o contexto fica claro o engodo. Cabe recuperação judicial de produtor rural pessoa física registrado na véspera do pedido? Sim, mas não se submeterão a ela os créditos que não decorram exclusivamente da atividade rural, os provenientes de recursos controlados e abrangidos nos termos dos arts. 14 e 21 da Lei 4.829/1965 que não tenham sido objeto de renegociação, os créditos relativos à dívida constituída nos três últimos anos anteriores ao pedido, que tenha sido contraída com a finalidade de aquisição de propriedades rurais, os créditos decorrentes de cédula de produto rural com liquidação física, os créditos decorrentes de atos cooperativos, além de todas as demais hipóteses previstas nos §§ 3º e 4º, do artigo 49, da Lei 11.101/2005. Se somarmos a esta enormidade de exceções ao sistema de sujeição o fato de que a safra não tem sido objeto de proteção judicial por não ser considerada bem de capital, fica a pergunta: como, então, realizar a reestruturação de um produtor rural? Não seria mais honesto ter dito que não cabe recuperação para tais agentes econômicos?

Falta transparência nas alterações

Como já se disse, é óbvio que o Congresso Nacional tem legitimidade constitucional para ampliar ou reduzir o espectro do processo recuperacional, pois não parece que o sistema de sujeição esteja contido em normas constitucionais imutáveis. O que é, todavia, completamente questionável é a forma pouco transparente como isso vem sendo feito, às vezes disfarçadas de meras emendas de redação, sem o imprescindível debate. O país segue, em tese, optando por ter um modelo mais amplo de reestruturação empresarial, mas silenciosamente vai se afastando dele. É essa leviana incoerência que choca!

Entretanto, além desse esvaziamento, ao menos a mim, há um ponto que causa ainda mais espanto.

O nosso sistema de sujeição, de certa forma, sempre esteve relativamente baseado em uma determinada premissa, em que a não sujeição à recuperação judicial funciona como um mecanismo adicional a uma série de privilégios que, no geral, a legislação já atribui àquele determinado crédito.

Portanto, ela não decorre necessária e exclusivamente das previsões da Lei 11.101/2005. Ao contrário, como se disse, o sistema recuperacional acrescenta um grau a mais de benefício ao crédito em questão. É como se ele viesse a coroar todo um sistema já existente de garantias e privilégios que referido crédito já gozava.

São créditos que já estão imersos em um regime jurídico bastante privilegiado por conta de sua relevância econômica e social — e aqui estamos falando da importância do crédito e não necessariamente de seu titular. Vejam, por exemplo o crédito tributário, o qual recebe uma série de privilégios previstos no CTN. O mesmo poderia ser dito em relação ao garantido por alienação fiduciária.

Exclusão de créditos do processo

Quando se fala de não sujeição há, assim, uma relação existente entre o regime jurídico específico do crédito e a sua previsão de exclusão da novação operada pela concessão da recuperação judicial. Os créditos são não sujeitos não por acaso!

Isso não significa, todavia, que retirá-los da recuperação judicial seja uma boa opção. O que se fez acima foi apenas explicar a lógica das regras prevendo hipóteses de não sujeição existentes até a Lei 14.112/2020: retirava-se da recuperação judicial determinados créditos já tidos pela legislação como especiais.

Quando se observa os 20 anos de vigência da Lei 11.101/2005, percebe-se que, na verdade, dessa opção decorre boa parte da litigiosidade em volta das recuperações judiciais, de maneira que é certo afirmar que uma parte expressiva do trabalho realizado nesses processos versa justamente sobre a discussão do que é ou não sujeito a eles, e o reflexo disso vai muito além da eventual quantificação do volume de trabalho realizado pelos atores processuais em questão, advogados, juízes, administradores judiciais. Ao contrário, isso acaba contribuindo para que se tenha o inverso daquilo para o qual o direito empresarial deveria existir: garantir segurança, estabilidade, previsibilidade, de modo a reduzir risco e custo.

Assim, se fôssemos partir de uma visão idealista, o correto seria que todos os créditos fossem atraídos para o ambiente recuperacional. Porém, a realidade tem mostrado que no Brasil ainda seguimos com dificuldade em lidar com a especialidade desses créditos dentro das recuperações judiciais. Ou seja, por mais que a não sujeição não seja o melhor dos mundos, o fato é que ainda não criamos algo melhor do que ela.

De qualquer forma, mesmo não sendo esse o modelo ideal, o fato é que as hipóteses de não sujeição sempre estiveram apoiadas em um pilar comum: a proteção do crédito. Daí afastá-lo dos efeitos da moratória e da novação inerentes aos processos recuperacionais.

Evidentemente, de maneira reflexa isso também alcança o seu titular, mas a tutela sempre foi voltada primeiramente ao crédito, tanto que é muito comum nos processos verificar-se credores que têm uma parte de seu crédito submetido à recuperação e parte fora. A proteção, repita-se, sempre foi do crédito, independentemente de quem seja o seu titular.

O crédito do poder público, por exemplo, o tributário fica de fora, já o que não tem essa natureza, não. Então, não é o fato de o crédito fiscal ser titularizado por uma pessoa jurídica de direito público que o faz não sujeito, mas sim o seu privilégio enquanto crédito tributário e o regime imposto a ele pelo CTN, o qual é diverso, por exemplo, daquele destinado às multas impostas pelas agências reguladoras. Então, de novo, o crédito tributário fica de fora pela condição do seu titular? Não, mas pela sua natureza e pelo regime que lhe é conferido pelo CTN. Portanto, bem ou mal, até a Lei 14.112/2020 se tinha um sistema baseado em uma premissa. Era até possível questionar se ele funcionava bem, se produzia os efeitos desejados, mas ao menos havia um fundamento para tanto.

Problemas do sistema de sujeição

Contudo, com a reforma realizada pela Lei 14.112/2020 — que acrescentou o § 13 ao artigo 6º, da Lei 11.101/2005 —, o sistema de sujeição, que por si só já gerava problemas e, por vezes, até inviabiliza a reestruturação oferecida por meio da recuperação judicial, perdeu o próprio pilar no qual ele se assentava, na medida em que passou a prever, com outras palavras, que as cooperativas não mais se submeteriam à recuperação judicial.

Quanto a isso, alguém poderia vir a questionar: “ah, mas não é a cooperativa, mas sim o crédito decorrente do ato cooperativo que fica de fora da recuperação judicial”. Será, mesmo?

Precisaríamos de muito esforço para buscarmos situações em que fossem possíveis verificar uma cooperativa constando no rol de credores de uma determinada recuperação judicial, sem que o crédito em questão não decorresse de ato cooperativo (típico ou atípico). Com bastante esforço certamente conseguiríamos encontrar algum furtivo exemplo, mas por óbvio excepcional e não replicável cotidianamente.

Ao fim e ao cabo, a expressão “contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos” acaba funcionando como uma bala de prata para retirar das recuperações judiciais as cooperativas, subvertendo por completo o eixo que até então existia em volta da não sujeição. A partir da Lei 14.112/2020, passou-se ter um flagrante caso de privilégio outorgado não a um determinado crédito, mas sim a um sujeito, independentemente do tipo e da natureza do crédito que ele titularize.

Acima, quando foi falado sobre eventual ampliação do rol de créditos não sujeitos, questionou-se a maneira sorrateira como isso vinha sendo realizado desde 2005 e o contrassenso dessa conduta, que é oposta à opção que o país fez em ter um mecanismo processual de reestruturação empresarial. Não se questionou, todavia, a legitimidade constitucional do Congresso para esse tipo de mudança. Porém, a exclusão das cooperativas das recuperações judiciais parece ter extrapolado essa fronteira.

Se formos à Constituição, não vai ser difícil verificar o quão incompatível é o seu texto com a previsão do § 13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005. Quando ela trata do microempresário e do empresário de pequeno porte ela expressamente fala em “tratamento favorecido”, em seu artigo 170, IX, com regime tributário “diferenciado e favorecido” (artigo 146, III, ‘d’). Convenhamos, isso sim é a determinação de que para alguém se estabeleçam privilégios.

Tratamento às cooperativas

A mesma Constituição quando fala do cooperativismo, todavia, prescreve que ele deva ser estimulado (artigo 174, § 2º). Quanto à tributação, exige-se do legislador infraconstitucional que se dê o “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo” (artigo 146, III, ‘c’).

Não é preciso muito esforço para verificar a distância no tratamento constitucional dado às microempresas e empresas de pequeno porte e para as cooperativas.

No entanto, quando verificamos os comandos da Lei 11.101/2005, percebemos que as microempresas e empresas de pequeno porte — aquelas que deveriam ser tratadas de forma diferente e favorecida — submetem-se à recuperação judicial e as cooperativas — que deveriam apenas ser estimuladas pela legislação infraconstitucional — gozam do desmedido privilégio de não se sujeitarem a ela.

A Lei 11.101/2005 simplesmente inverteu os comandos constitucionais no que toca ao tratamento dessas duas figuras. Os entes públicos, as microempresas, os trabalhadores, os consumidores, enfim, ninguém recebeu tamanho privilégio apenas pela sua condição pessoal. Para a Lei 14.112/2020 as cooperativas são o sujeito de direito mais relevante de todo o nosso sistema, afinal só elas gozam de tamanho privilégio.

Violação constitucional

Apesar da gravidade do que foi realizado, causa espanto o silêncio da comunidade profissional e acadêmica diante de tamanho absurdo: alguém ser excluído da recuperação judicial por uma condição pessoal. Nem as microempresas, muito menos os trabalhadores, receberam tamanha benevolência!

E esse é um perigoso silencio porque, se o Judiciário e a comunidade em geral aceitam que cooperativas fiquem fora da recuperação judicial, talvez, no futuro, em uma próxima alteração se diga assim: não se submetem aos efeitos da recuperação os créditos decorrentes de operações bancárias. E aí, como seria?

Para além da flagrante violação aos comandos constitucionais, essa é uma questão que esbarra na própria opção feita há 20 anos, de se ter no país, a exemplo de praticamente todo o mundo civilizado, um efetivo sistema jurídico-processual de reestruturação empresarial.

Há poucos meses a 4ª Turma do STJ reconheceu a não sujeição das cooperativas, mas parece que ficou de fora do debate relevantíssimos argumentos. Quem sabe isso ainda não seja revisto, afinal ainda há tempo de corrigir despropósito realizado pela Lei 14.112/2020.

 

[1] Entendimento que seguiu sendo mantido, até que a 2ª Seção consolidou-o no Tema Repetitivo 1.145.

 

Fonte: Conjur.

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