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10-11-2025 

Recuperação judicial como mecanismo de abuso: Estudo sobre o desvio de finalidade e suas repercussões jurídicas e econômicas

Pedidos indevidos comprometem credores e mercado, exigindo controle judicial rigoroso para preservar integridade econômica e legal.

1. Introdução

A lei de recuperação de empresas e falência (lei 11.101/05, conforme alterada pela lei 14.112/20) representou um marco na evolução do direito empresarial brasileiro, consolidando o princípio da preservação da empresa. O objetivo do legislador foi claro: criar mecanismos para que empresas em crise econômico-financeira transitória pudessem se reerguer, mantendo a fonte produtora, os empregos e os interesses dos credores (art. 47).

Contudo, passados quase vinte anos de sua promulgação, observa-se com preocupação um crescente movimento de "banalização" e uso "oportunista" deste instituto por parte dos devedores. Empresas sem real viabilidade econômica ou, pior, agindo de má-fé, valem-se do processamento da recuperação judicial e, mais recentemente, da medida cautelar antecedente, prevista no art. 20-B da lei 11.101/05, como um escudo para blindar seu patrimônio, suspender indiscriminadamente execuções e impor a seus credores planos de pagamento geralmente abusivos, que configuram verdadeiro "calote" legalizado.

Este artigo propõe, portanto, uma análise crítica das práticas que configuram a utilização irresponsável da recuperação judicial, o impacto direto sobre os credores e o papel do Poder Judiciário como guardião da integridade e da finalidade do instituto.

2. O desvirtuamento do princípio da preservação da empresa

O princípio da preservação da empresa não é absoluto. Ele se destina a proteger a atividade empresarial viável, dotada de capacidade de recomposição após a superação da crise, de modo a continuar a cumprir sua função social. A crise deve ser passageira, não se destinando a recuperação judicial para perpetuar modelos inviáveis, apenas prolongando a agonia da companhia devedora às custas de seus parceiros comerciais.  É certo que os credores devem suportar determinados ônus a fim de viabilizar o soerguimento empresarial, desde que os ônus sejam razoáveis e a devedora viável.

O uso irresponsável da recuperação judicial ocorre justamente quando essa premissa é ignorada. As práticas mais comuns que evidenciam o desvio de finalidade incluem:

Manipulação contábil prévia: Uma das práticas mais ardilosas, na qual a devedora apresenta balanços financeiros sadios e promissores para obtenção de vultosos créditos no mercado. Contudo, pouco tempo após a concessão do crédito, ajuíza pedido de recuperação judicial, apresentando balanços financeiros repentinamente negativos e de origem evidentemente suspeita, o que sugere a fabricação da crise ou uma gestão temerária premeditada.
Simulação de crise: Empresas que, mesmo sem a manipulação contábil prévia, não enfrentam uma crise real que justifique o ajuizamento da recuperação judicial, lançando mão de tal pedido  como manobra para suspender pagamentos e forçar renegociações de dívidas, utilizando, dessa forma, o Poder Judiciário como balcão de negócios.
Abuso do Stay Period: O período de suspensão de 180 dias, concebido para dar fôlego à devedora, é utilizado de forma estratégica apenas para blindar o patrimônio, muitas vezes sem a apresentação de um plano de reestruturação crível.
Esvaziamento patrimonial: Prática fraudulenta na qual os sócios ou administradores das devedoras transferem ativos valiosos da empresa em recuperação para outras pessoas jurídicas ou físicas, deixando para os credores uma "casca" sem valor e um desafio hercúleo para desconstituição de todas as fraudes praticadas.
Apresentação de planos abusivos: Imposição de deságios exorbitantes (não raro superiores a 90%), prazos de carência e pagamento excessivamente longos, que na prática inviabilizam o recebimento do crédito.
O Poder Judiciário tem reagido a tais abusos. Decisões recentes em diversos tribunais têm indeferido pedidos de processamento de recuperações judiciais quando constatada, de plano, a ausência dos requisitos legais ou o manifesto desvio de finalidade, chegando a extinguir processos e determinar a apuração de crime falimentar, fazendo-o, muitas vezes, com base na perícia de constatação prévia, que vem sendo cada vez mais adotada pelos Tribunais.

3. O credor de boa-fé: A maior vítima do sistema

No centro dessa distorção, encontra-se o credor de boa-fé. Fornecedores, prestadores de serviços, trabalhadores e instituições financeiras que confiaram na relação comercial se veem subitamente tragados para um processo moroso,de resultado incerto e, muitas vezes, com pouquíssima ou nenhum tipo de interação negocial com credores, com poucas perspectivas de recebimento integral de seus créditos.

A recuperação judicial do devedor principal, embora não suspenda, em regra, as ações contra coobrigados e garantidores (Tema 885/STJ), impõe ao credor quirografário um pesado ônus, pois ele é praticamente forçado a aceitar um plano de pagamento desvantajoso sob a ameaça de um mal maior: a falência, onde a chance de recuperação de valores é virtualmente ainda menor.

Essa dinâmica cria um ambiente de insegurança jurídica que contamina todo o mercado. Consequentemente, o crédito, mola mestra da economia, torna-se mais caro e escasso, pois o risco de inadimplência e de manipulação processual é precificado, não havendo dúvida que a fraude e o abuso de direito na recuperação judicial não prejudicam apenas as partes do processo, mas todo o mercado, afetando a confiança sistêmica nas transações comerciais.

4. O Judiciário sob pressão: Entre o ideal de Justiça e o "balcão de negócios"

A crítica de que a recuperação judicial transforma o Judiciário em um mero "balcão de negócios" ganha contornos ainda mais graves quando se considera o cenário de sobrecarga sistêmica do Poder Judiciário brasileiro. Magistrados e servidores, já assoberbados com um volume processual colossal, são regularmente instados a decidir, sob urgência, questões complexas e altamente técnicas, tornando-se verdadeiros heróis na tentativa diária de atender aos anseios de justiça da sociedade.

Neste contexto, a utilização irresponsável do instituto da recuperação judicial representa um fardo adicional e perverso. Pedidos protelatórios, fraudulentos ou desprovidos de mínima viabilidade econômica não apenas desvirtuam a finalidade da lei, mas consomem tempo e recursos preciosos de um sistema já no seu limite. O processo, que deveria ser um instrumento de soerguimento, é manipulado para se tornar uma ferramenta de coerção contra credores, e o magistrado, muitas vezes, é colocado em uma posição delicada, tendo que decidir questões complexas com urgência e ainda lidar com pedidos fraudulentos.

A visão do "balcão de negócios" é reforçada quando, pressionado pela urgência e pelo volume, o processo se distancia da análise criteriosa da viabilidade da empresa e se concentra apenas na homologação formal de um plano, ainda que este seja prejudicial e economicamente insustentável. A postura, por vezes, passiva, que relega à assembleia de credores uma soberania quase absoluta, pode ser menos uma escolha e mais um sintoma do esgotamento sistêmico.

Contudo, é crucial ressaltar que a soberania da assembleia não é ilimitada e deve ser controlada pelo Judiciário para coibir abusos de direito e violações à lei. A especialização das varas empresariais e uma atuação mais assertiva do juiz e do administrador judicial - utilizando ferramentas como a constatação prévia (art. 51-A da lei 11.101/05) - são mais do que boas práticas: são mecanismos essenciais de triagem e sobrevivência para o sistema. Representam a linha de defesa para filtrar pedidos aventureiros, garantir que apenas empresas com real potencial de soerguimento se beneficiem do instituto e, fundamentalmente, para proteger a própria integridade e capacidade funcional do Poder Judiciário.

5. Conclusão

A recuperação judicial é um instrumento essencial para a saúde da economia, mas sua eficácia depende de seu uso responsável e ético. A banalização e o desvio de finalidade, motivados por má-fé ou por assessorias jurídicas/financeiras inescrupulosas, minam a confiança no sistema, penalizam credores de boa-fé e sobrecarregam o Poder Judiciário.

É imperativo que o Judiciário, com o auxílio do Ministério Público e de administradores judiciais diligentes, adote uma postura cada vez mais rigorosa na triagem e condução dos processos recuperacionais. A preservação da empresa não pode servir de pretexto para a legalização de fraudes e para a socialização de prejuízos. Somente com um controle judicial efetivo da legalidade e da viabilidade dos planos de recuperação será possível resgatar a credibilidade do instituto e assegurar que ele cumpra, de fato, a sua nobre função social.

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Referências

Legislação

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm.

Jurisprudência (Notícias e Artigos sobre Decisões do STJ)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Não compete ao Judiciário avaliar condições financeiras do plano de recuperação aprovado pelos credores. 2018. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-09-19_09-34_Nao-compete-ao-Judiciario-avaliar-condicoes-financeiras-do-plano-de-recuperacao-aprovado-pelos-credores.aspx.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Em busca da recuperação: a jurisprudência do STJ sobre o processo de reabilitação das empresas. 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Em-busca-da-recuperacao-a-jurisprudencia-do-STJ-sobre-o-processo-de-reabilitacao-das-empresas.aspx.

Doutrina (Artigos e Publicações)

ESTADÃO. A banalização da recuperação judicial e suas consequências. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/a-banalizacao-da-recuperacao-judicial-e-suas-consequencias/.

 

 

Fonte: Migalhas.

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