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23-09-2025
Recuperação fraudulenta e o papel do Judiciário
A alteração promovida pela Lei nº 14.112/2020 na atual Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/05), passados quase cinco anos de sua promulgação, representou significativa contribuição para o aperfeiçoamento do sistema, além da introdução de institutos jurídicos responsáveis por conferir maior dinâmica – e celeridade – na resolução dos conflitos na área da insolvência.
Porém, subsiste um ponto — polêmico — a merecer reflexão que, com leitura menos ortodoxa da apontada legislação, pode ensejar consequências interessantes.
Antes de adentrar à controvérsia, sabe-se que ao buscar amparo jurisdicional presumível esteja o requerente de boa-fé; inconcebível, pois, que o postulante esteja mal-intencionado a ponto de se valer da custosa máquina estatal com finalidade espúria [1].
Até os cânones constitucionais enfatizam a cláusula geral da boa-fé, não só para as relações contratuais, mas a inspirar o ordenamento jurídico-processual:
“Mesmo que não houvesse texto normativo expresso na legislação infraconstitucional, o princípio da boa-fé processual poderia ser extraído de outros princípios constitucionais. A exigência de comportamento em conformidade com a boa-fé pode ser encarada como conteúdo de outros direitos fundamentais. Há quem veja no inciso I do art. 3º da Constituição da República o fundamento constitucional da proteção da boa-fé objetiva. É objetivo da República Federativa Brasileira a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Haveria um dever fundamental de solidariedade, do qual decorreria o dever de não quebrar a confiança e de não agir com deslealdade. Nessa mesma linha de raciocínio, há quem veja a cláusula geral de boa-fé como concretização da proteção constitucional à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/1988)” [2].
Posta a situação de crise, espera-se que o devedor esteja de boa-fé ao propor sua reestruturação e, com isso, obtenha êxito em sanar suas pendências, tendo em mente o princípio insculpido no artigo 47 da Lei nº 11.101/05.
No entanto, algumas práticas desvirtuadas na utilização da recuperação podem ser verificadas, apesar de alguns mecanismos normativos para sua contenção.
Um desses mecanismos é a possibilidade de o juízo determinar a realização da ‘constatação prévia’ (artigo 51-A da Lei nº 11.101/05) se existem indícios de irregularidades quando do ajuizamento da recuperação. Sobreleva o parágrafo 6º do artigo 51-A da Lei nº 11101/05 a impor impeditivos à recuperação desvirtuada e em oposição à boa-fé processual.
Nesse particular, a rejeição liminar da recuperação e o encaminhamento ao Ministério Público parecem medidas “suaves” se apurado, com indícios contundentes, que a pretensão ostenta caráter fraudulento.
E é nisso que reside a “polêmica” na sustentação ora desenvolvida.
Dado que o ingresso do devedor em juízo deve ser feito com esteio na propalada boa-fé, o contrário representa afronta ao caráter nobre e ínsito à salvaguarda jurisdicional:
“A Justiça exerce o papel de última instância garantidora do núcleo de direitos que realizam os direitos mais básicos dos seres humanos. Portanto, Justiça e Direitos Humanos andam de mãos dadas justamente em razão do papel que aquela (Justiça) exerce na concretização destes últimos (direitos humanos)” [3].
Se a recuperação traz em si pretensão voltada para mascarar fraudes ou legitimar condutas abusivas, seu escopo está distorcido. Isso não significa conivência do Judiciário, embora fraudadores possam tentar usá-lo como escudo.
Podem os devedores simular crise financeira para conseguir proteção judicial com a suspensão das execuções (stay period) e, nesse ínterim, blindar patrimônio, sem a intenção de efetiva reestruturação. E é possível — pese não louvável, tampouco desejável — que o Judiciário seja induzido a deferir recuperação baseada em documentos manipulados ou contabilidade fraudulenta, por exemplo.
Acerca disso uma interessante lição:
“Cumpre observar que a utilização fraudulenta dos institutos da recuperação de empresas se dá tanto para suspender, ilegitimamente, ações, execuções e penhoras a partir da aplicação do stay period, como também para implementar estruturas de blindagem patrimonial (por exemplo, exclusão de outras empresas do conglomerado que detém ativos sadios; estratégias de proteção do patrimônio dos sócios etc.); ou mesmo serve para simples redução das dívidas ou parcelamento dessas (sem que subsista real crise econômico-financeira)” [4].
Em face da utilização fraudulenta da recuperação, a rejeição do pedido e o encaminhamento ao Ministério Público mostram-se paliativos; se a recuperação contraria os ditames da boa-fé, da probidade e o próprio escopo do instituto, a rejeição no processamento é expediente tímido, quiçá inútil; indiretamente estará o Judiciário a chancelar ilegalidade.
Se a própria lei de regência contém comandos imperativos ao magistrado, ao se deparar com ajuizamento desvirtuado da recuperação, razoável se faz conjugar a literalidade com a interpretação sistemática, máxime finalística, das normas jurídicas pertinentes.
Causa natimorta
Como ensina Pietro Perlingeri, a atividade do intérprete exige “o contextual conhecimento do problema concreto a ser regulado, isto é, do fato individuado no âmbito do inteiro ordenamento – o conjunto das proposições normativas e dos princípios -, de maneira a individuar a normativa mais adequada e mais compatível com os interesses e com os valores em jogo. Portanto, a interpretação é, por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, finalizada à atuação dos novos valores constitucionais” [5]
Não se desconhece o componente formal da constatação prévia, eis que vedado ao magistrado apreciar a viabilidade econômico-financeira do plano de reestruturação, múnus inerente à assembleia de credores [6].
Contudo, nessas situações de inequívoca inviabilidade desde o início, ao se descortinar panorama desalentador a ponto de o ajuizamento esbarrar até em conduta delitiva, a ponto de obstaculizar o prosseguimento no cumprimento do objeto social, se autorizada a recuperação, será causa “natimorta”.
No indeferimento da recuperação a atuação judicial se fará aquém do esperado. Assemelha-se a ministrar analgésico para cefaleia quando o paciente está moribundo, entregue à própria sorte, entubado e sedado numa UTI.
De fato, quando patente o desvirtuamento do instituto desde o ajuizamento, o indeferimento liminar contribui para a perpetuação da ilicitude. Permite-se o mau uso do Poder Judiciário para, somente, protelar as nefastas consequências do inarredável decreto falimentar.
Dada sua prerrogativa do jus dicere, não há razão plausível para o Judiciário permitir, desde o nascedouro, recuperação com nítido viés fraudulento; a mera rejeição contida no artigo 51-A, §6º., da Lei n.11101/05 não é suficiente para combater o problema, tampouco se constitui resposta profilática, sequer educativa, a essa ilegalidade.
Sobre o tema:
“Em que pese a construção recém-realizada sobre a magistratura na recuperação judicial, a visão meramente formal e homologatória das funções do juízo parece deixar de lado as possibilidades de se usar do poder judicial para combater uma má utilização do instituto recuperacional, atualmente constatada na prática brasileira. Com tantos interesses envolvidos nos procedimentos, deixar o Judiciário como um quase expectador parece limar as chances de um procedimento com resultados alinhados aos objetivos do sistema de insolvência” [7].
Para tanto, partindo-se da literalidade dos dispositivos que autorizam ao magistrado proferir sentença de falência e, frente ao imperativo das expressões “decretará” ou “será decretada” no caput dos artigos 73 e 94 da Lei n.11101/05, abre-se a opção de sancionamento mais gravoso ao devedor que, maliciosamente, busca o Judiciário para se escorar nos benefícios advindos da recuperação.
E pelo cotejo da análise pericial com as hipóteses prescritas no inciso III, do art.94 da Lei n.11101/05 – visto não exigir impontualidade do devedor ou vencimento do título – a má utilização da recuperação pode eclodir e, por conseguinte, impelir o juízo à decretação da quebra.
Conforme Giorgio Del Vecchio:
“O modo indicativo não existe para o Direito, e quando é usado nos Códigos tem realmente um significado imperativo. Também estão fora absolutamente do campo do Direito, os conselhos e as simples exortações: em geral, todas as formas atenuadas de imposição não têm caráter jurídico. Acontece que encontramos, com frequência, especialmente nas legislações antigas, enunciados de fatos e opiniões que não têm natureza imperativa. Mas isto não nos deve levar a erro: tais enunciados, embora contidos materialmente em textos legislativos, não têm caráter jurídico. (…) sem conteúdo imperativo, (…) não têm significado, não pertencem propriamente ao Direito” [8].
Aludidos dispositivos contêm caráter compulsório e, ademais, a atuação drástica do juízo conferirá efetividade ao descrito no artigo 75 da Lei nº 11.101/05, mormente ao inciso II deste, ao afastar sociedades irrecuperáveis e, por outro lado, dar crédito àquelas que mereçam se manter [9].
Inconcebível que o devedor prossiga com a atividade se patente o intuito fraudulento da recuperação, ainda que comunicado o Ministério Público para providências criminais, pois estas têm efeito diverso.
Comente-se que o delito previsto no artigo 168 da Lei nº 11.101/05 contempla a prática de fraude antes da decisão concessiva da recuperação; ora, se o embuste se delineia logo de início e, portanto, autoriza a deflagração da persecução penal — mais gravosa e com consequências “corporais” ao devedor —, qual o motivo de não se permitir o sancionamento “cível”, consubstanciado no decreto de falência?
E no intuito de evitar a tramitação de recuperação dada como “natimorta”, capaz de “contagiar” o sistema de insolvência, cabe ao Poder Judiciário coibi-la e ao Ministério Público, cônscio de seu papel de fiscal da ordem jurídica (artigo 127 da CF/88 combinado com artigo 178 do CPC), requerer a imediata convolação em quebra, sem embargo da persecução criminal.
Advirta-se que “a manutenção indefinida de situações jurídicas pendentes, por lapsos temporais prolongados, importaria, sem dúvida, em total insegurança e constituiria uma fonte inesgotável de conflitos e prejuízos diversos” [10]
O decreto de quebra, por conseguinte, revela-se o remédio mais adequado para impedir que a tentativa canhestra de soerguimento ingresse e, assim, “contamine” o sistema de insolvência. O indeferimento da recuperação “natimorta” não expurga o devedor imbuído de más intenções; somente posterga os efeitos nocivos de sua persistência no mercado e em desacordo com os ditames de lealdade, probidade e boa-fé.
Em remate, o sempre lúcido Marcelo Barbosa Sacramone:
“A proteção do empresário e da atividade sem viabilidade econômica por meio da recuperação judicial pode gerar perda de eficiência, comprometimento de confiança dos credores, insegurança jurídica, em prejuízo de todos. A função social da empresa somente será produzida se a atividade for lucrativa e eficiente. Apenas a atividade economicamente eficiente tem condição de se perpetuar em mercados competitivos e gerar os benefícios pretendidos pela Lei a todos” [11]
[1] “Dispõe o art.5º. do Novo CPC: ‘Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé’. Tal dispositivo consagra o Princípio da Boa-fé processual, também conhecido como Princípio da Lealdade Processual. Lealdade esta que, como estabelecido no artigo retrotranscrito, não se limita apenas aos envolvidos na relação triangular do processo (juiz, autor e réu), mas abrange também todas as pessoas que, de um jeito ou de outro, de forma expressa ou implícita, participam ou venham a participar da relação processual plenamente estabelecida e em curso” (ROBERTO CARLOS ROCHA DA SILVA in Aplicação do Princípio da Boa Fé Processual no CPC de 2015: aqui)
[2] FREDIE DIDIER JUNIOR in Princípio da Boa-fé Processual no Direito Processual Civil Brasileiro e Seu Fundamento Constitucional – Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 70, out./dez. 2018: aqui
[3] TÂNIA REGINA SILVA RECZKIEGEL in Judiciário é a última instância garantidora de direitos humanos: aqui
[4] LUCIANA PINTO DE AZEVEDO in Recuperação de empresas: TJ-SP reprime tentativas de fraudes para lesar credores: aqui
[5] In Perfis do direito civil – introdução ao direito civil constitucional, trad. Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p.72.
[6] STJ, REsp n.1587559/PR, 4ª. Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 22/05/2017
[7] Cf. EDUARDO SILVA MATTOS e JOSÉ MARCELO MARTINS PROENÇA in Curso de Recuperação de Empresas, 2023, ed. RT, p.421-422, grifo nosso.
[8] Filosofia do Direito, 3ª. Edição, Barcelona, Bosch, 1942, Parte Sistemática, Seção 1ª. – O Direito em Sentido Objetivo, p.300 e 301, grifo nosso – ob. cit. por GOFFREDO DA SILVA TELLES JUNIOR in Iniciação na Ciência do Direito, 4ª. Edição, 2008, ed. Saraiva, p.61-62.
[9] “Enquanto o instituto da recuperação judicial tem a finalidade precípua de manutenção da fonte produtora viável, criando mecanismos para facilitar a superação da situação da crise econômico-financeira do devedor, com a preservação da função social da empresa e do estímulo à sua atividade econômica (LREF, art.47), a falência tradicionalmente tem o objetivo de excluir do mercado as empresas economicamente inviáveis, mediante o afastamento do falido, criando-se assim espaço para que os demais agentes econômicos possam se inserir ou se expandir nesse mesmo mercado, mediante a realocação dos ativos” (cf. FERNANDO A. M. DA CUNHA e MARIA RITA R. P. DIAS in ob. cit., p.472)
[10] NELSON ROSENVALD, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e FELIPE BRAGA NETTO in Curso de Direito Civil, Parte Geral e Lindb, volume 1, Ed. Juspodium, 2025, p.850.
[11] In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 2ª. edição, 2021, SaraivaJur, p.241.
Fonte: Conjur.