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19-06-2023 

Recuperação de empresas: TJ-SP reprime tentativas de fraudes para lesar credores

Os institutos da recuperação judicial e extrajudicial, inclusive para resguardo do princípio social da preservação da empresa, são importantes e excelentes instrumentos para restabelecimento da normalidade empresarial — com o afastamento da crise de insolvabilidade —, notadamente diante do cenário global de incertezas econômicas que não pode ser ignorado (e que recentemente foi agravado pela pandemia, com efeitos deletérios ainda sentidos).

De fato, quase todos os dias nos deparamos com as notícias acerca de súbitas rupturas econômicas em grandes companhias, dentre as quais conglomerados varejistas relevantes, responsáveis pela movimentação do mercado e a economia do país.

Daí por que a utilização dessas benesses legais, objetivando o soerguimento da empresa, deve ser vista com bons olhos e sem preconceitos de outrora. É preciso, no entanto, fazer um alerta — e ponderação —, para evitar que essas alternativas de equacionamento da crise de insolvabilidade se tornem subterfúgio para fraudar credores, mediante a blindagem de patrimônio (em benefício dos sócios dos devedores), entre outros ilícitos.

Não foi à toa que o legislador tomou alguns cuidados e, já antevendo tais condutas ilícitas, tipificou, na Lei de Recuperações e Falências, a fraude contra credores como crime falimentar (artigos 168 e 171, na Lei nº 11.101/2005); e, mais recentemente, incorporou à LRF, por meio da Lei nº 14.1112/2020, o interessante artigo 51-A, que permite a constatação prévia, instituto que advém da construção jurisprudencial do TJSP, em especial do Enunciado VII do Grupo de Câmaras Empresariais, segundo o qual o juiz pode, se vislumbrar indícios contundentes de "utilização fraudulenta ou abusiva do instituto" [1], de proêmio, determinar uma perícia para indeferir o processamento da recuperação.

A análise do uso desvirtuado da recuperação judicial e extrajudicial perpassa pelo exame pericial contábil-econômico-financeiro dos fatos e elementos probatórios trazidos tanto pelos credores, como da análise dos documentos contábeis, financeiros e societários apresentados pelos próprios devedores.

Tal averiguação um pouco mais aprofundada, via perícia prévia, é importante porque a boa-fé se presume e a má-fé se prova, donde arguições genéricas de credores insatisfeitos no senso de que a recuperação proposta não atende aos requisitos legais, seja em razão da ausência de crise econômico-financeira, seja em razão da sua utilização fraudulenta, são insuficientes.

É como destaca a jurisprudência do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), no sentido de que decisão de processamento da recuperação judicial envolve a análise dos requisitos formais, com exceção dos casos nos quais há indícios contundentes de fraude, ocasião em que o juiz deve valer-se dos mecanismos previstos em lei ou até mesmo indeferir o pedido [2].

E é aí que se insere o artigo 51-A da LRF: uma vez constatada, ainda que por meio de indícios, a utilização abusiva ou fraudatória logo de início, o que em geral se vislumbra é a determinação da perícia antecedente, para verificar a aptidão do pedido. Isso, aliás, vem ao interesse da própria empresa devedora, pois, caso fosse constatada posteriormente a irregularidade, a empresa estaria sujeita à falência por descumprimento do plano ou mesmo não homologação deste (na recuperação extrajudicial utilizada para fins escusos, a consequência é a mera não homologação do plano). Tudo sem contar outras repercussões negativas, a exemplo do ofício ao Ministério Público para tomada das providências criminais eventualmente cabíveis (artigo 51-A, §6º, LRF).

Cumpre observar que a utilização fraudulenta dos institutos da recuperação de empresas se dá tanto para suspender, ilegitimamente, ações, execuções e penhoras a partir da aplicação do stay period, como também para implementar estruturas de blindagem patrimonial (por exemplo, exclusão de outras empresas do conglomerado que detém ativos sadios; estratégias de proteção do patrimônio dos sócios etc.); ou mesmo serve para simples redução das dívidas ou parcelamento dessas (sem que subsista real crise econômico-financeira).

Há até aqueles que se valem de tais instrumentos para prorrogar a inevitável falência, enquanto, entrementes, fraudes a credores são realizadas. Todas essas práticas devem ser atentamente coibidas — como comumente são — pelo Poder Judiciário, com vistas a evitar seja o favor legal desvirtuado.

A propósito, os chamados indícios de fraude exigem análise acurada de documentações de toda espécie, donde a prova pelo credor do uso abusivo da recuperação e da fraude torna-se um trabalho muito difícil, sobretudo porque muitas vezes os negócios ilegais são bem estruturados, a partir de verdadeiras engenharias jurídico-financeiras acima mencionadas.

Por isso, para além do uso da constatação prévia pericial nas hipóteses cabíveis (artigo 51-A, LRF), tem-se que vislumbrado indícios de fraude após o processamento da recuperação, diante de elementos verossímeis apontados pelo credor, este precisa do auxílio do juiz e até do administrador judicial. Aliás, a participação do administrador — na condição de sujeito imparcial do processo — é de suma importância para demonstrar ao juiz os reais interesses da recuperação (judicial ou extra). E, em alguns casos, é possível que se instaure, a pedido do administrador, incidente paralelo para apuração das práticas e ilegalidades denunciadas, caso em que recairá sobre o devedor os ônus da prova da regularidade do seu requerimento.

O fato é que, na prática, como bem destacam os julgados da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, ainda que seja prerrogativa da assembleia de credores a análise da viabilidade econômica da recuperação judicial, cabe ao juiz, antes de autorizar o processamento da recuperação de empresa requerida, proceder um exame prévio, in status assertiones, do que o devedor alega, e tomar as medidas necessárias, se vislumbrar indícios de ilegalidades ou desvirtuamentos.

No caso da recente decisão envolvendo a recuperação judicial de certa empresa do interior, foi possível perceber a atuação prudente do magistrado de primeiro grau nesse sentido. Amparado pela jurisprudência, já na decisão inaugural, de ofício, ele vislumbrou indícios de fraude, dando azo à realização de perícia prévia. E na sentença, ainda sujeita a recurso, não houve avaliação da viabilidade do plano, mas apenas indeferimento do processamento por seus contundentes indícios de fraude e de desvio patrimonial, e o intuito de "redução forçada de obrigações recém contraídas".

Já em rumorosa recuperação extrajudicial requerida por um empresário e uma de suas holdings, o TJ-SP, invertendo o ônus da prova, e dentro do controle judicial de legalidade, rejeitou o plano proposto pelos devedores diante das "evidências claríssimas de fraude", seja porque foram excluídos quórum de apuração credores pertencentes a mesma classe; seja porque o plano não acobertava todas as empresas do grupo econômico, cuja existência estava permeada com "abuso das personalidades jurídicas de seus integrantes" (as quais, aliás, envolviam instituições financeiras, não abrangidas pela Lei 11.101/2005, artigo 2º, inciso II) [3].

Até em caso em que há aprovação do plano, o TJ-SP, em recentíssimo julgado, dentro do controle de legalidade, convolou, de ofício, recuperação judicial em falência quando vislumbrado que tal procedimento transformou-se "em jogo de estratégia, cujas peças são os créditos dos credores", configurando-se o uso abusivo do instituto. Nos termos do voto do desembargador relator, uma vez constatado o uso abusivo do feito recuperacional, ainda que homologado plano pelos credores, "a fraude não deve resistir à lei" [4].

Os juízes e tribunais, assim, estão absolutamente atentos às circunstâncias em que o instituto da recuperação de empresas, apesar de seus elevados propósitos, é utilizado de modo abusivo ou fraudulento, dando azo ao início de uma jurisprudência moralizadora do uso desse favor legal.

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[1] Enunciado VII do Grupo de Câmaras Empresariais do TJSP

[2] TJSP; AI nº 2019089-77.2020.8.26.0000; relator: desembargador Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em: 22/05/2020). Também nesse sentido: TJSP; AI nº 2046406-45.2023.8.26.0000; relator: desembargador Jorge Tosta; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em: 31/05/2023; entre outros.

[3] TJSP; Apelação Cível nº 1102800-56.2018.8.26.0100; relator: desembargador Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em: 30/03/2022. E aqui o TJSP, ainda, decidiu oficiar o MP para averiguação de eventuais crimes.

[4] TJSP; AI nº 2251499-39.2022.8.26.0000; relator: desembargador Grava Brazil; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em: 04/04/2023. Também nesse sentido: TJSP; AI nº 2264574-53.2019.8.26.0000; relator: desembargador Araldo Telles; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em: 02/02/2021.

 

Fonte: Conjur.

 

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