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19-03-2024
Preço vil e alienação de bens na falência
A reforma à Lei nº 11.101/2005, trazida pela Lei n. 14.112/20 [1], afastou o conceito de preço vil para fins de alienação de bens na falência.
Mas na prática diária dos processos realmente foi abandonado por completo o conceito?
Este breve texto se propõe a buscar resposta a esta indagação.
Enquanto a recuperação judicial visa o soerguimento da atividade empresarial, à luz do princípio da preservação da empresa, previsto no artigo 47, da LFRE, a falência visa a rápida liquidação dos ativos, para que seja feito o pagamento aos credores, conforme o ativo realizado, e para que o falido reúna condições de eventualmente voltar a empreender.
Porém, não é plausível, a despeito da inovação legislativa trazida em 2020, que se alienem por qualquer preço bens e ativos arrecadados pela massa falida, com total desconsideração ao conceito de preço vil, notadamente em face do disposto no artigo 75 [2], I, da LFRE, que não foi modificado pela reforma.
Ora, como conciliar a preservação e otimização da utilização produtiva dos bens, ativos e recursos da empresa com a abolição do conceito de preço vil? Tarefa difícil, senão impossível.
Por isso, é preciso que se busque o sentido teleológico da norma, que culminou nessa aparente (mais aparente [3] do que real) eliminação do conceito de preço vil na alienação de bens arrecadados em falências.
Na falência, o objetivo da desconsideração do conceito de preço vil foi tornar mais ágil a liquidação dos ativos da massa falida, especialmente nos casos em que duas tentativas de alienação de determinados bens não tenham sido bem-sucedidas.
Isso não autoriza o intérprete, contudo, a concluir que a lei autorizou a dilapidação dos ativos da massa falida objetiva por valores irrisórios, o que permitiria, noutro extremo, o enriquecimento indevido do arrematante, ideia que não encontra respaldo na ordem jurídica, pois resultaria prejuízo à coletividade de credores.
Por isso, em determinados casos de falência, em recentes decisões, posteriores à reforma de 2020, o TJ-SP tem decidido que a alienação concretizada por preço vil não deve subsistir, por conta do prejuízo imposto à coletividade de credores [4].
Por dever de lealdade ao debate, deve ser dito, porém, que há julgados do TJ-SP, afastando o conceito vil em arrematação que se deu por 10% do valor da avaliação, considerando as circunstâncias do caso concreto e a reforma de 2020, deixando, então, de aplicar o conceito vil na arrematação [5].
Na mesma linha de pensamento, contrária ao afastamento do conceito de preço vil na alienação de bens na falência, o Superior Tribunal de Justiça não abandonou o conceito de preço vil na alienação de bens na falência. Nesse sentido, julgado [6] de setembro de 2023.
Em interessante artigo publicado pela revista Justitia, do MP-SP, na edição nº 218, janeiro a junho de 2022 (pag. 178 e seguintes), Marcelo Ferreira de Souza Netto, promotor de Justiça de Falências na Capital, sustenta a inconstitucionalidade do preceito legal, invoca a aplicação do artigo 891[7], do CPC, e afirma:
“Por último, a permissão de se arrematar bens por preço vil nos processos falimentares afasta-se largamente da garantia supralegal veiculada pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em seu art. 21 (3), que reprime a usura e qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem.
Portanto, reconhecida a inconstitucionalidade e a ineficácia do art. 142, § 2o-A, V, da LFR, deve-se aplicar o regramento do artigo 891 do Código de Processo Civil, conforme preceitua o artigo 189 da Lei 11.101/05, excluindo-se as ofertas de preços vis nos leilões de ações falimentares.”
Assim, conclui-se que muito embora, por opção legislativa, a reforma de 2020 tenha entendido que deveria afastar o conceito de preço vil nas arrematações em processos de falência, a jurisprudência sobre o tema a rigor não abandonou definitivamente o conceito, visando proteger os interesses da coletividade de credores, que podem não ser minimamente atendidos, se houver amesquinhamento do valor dos ativos da massa falida, a pretexto de se proceder à ágil liquidação.
Por outro lado, diante da nova regra que determina a não aplicação do conceito de preço vil nas alienações em processos de falência, difícil deixar de admitir que o juiz passa a ter alguma margem de discricionaridade, para afastar a aplicação do conceito de preço vil, quando as circunstâncias do caso concreto evidenciarem que por valor outro, que não aquele que foi possível e concretizado no certame, considerando a realidade do mercado e a maior dificuldade de alienação de determinado bem, naquele momento e conjuntura econômica e social, não seria possível realizar ativos na falência.
E numa falência em que não se realizam ativos, os credores não recebem o mínimo de seus créditos. Perde-se a utilidade de um processo normalmente complexo e trabalhoso.
Este é um dos grandes desafios dos profissionais do direito que lidam com falências e recuperação judicial de empresas: tornar o processo mais ágil, efetivo e resolutivo.
Estudos da Associação Brasileira de Jurimetria [8], tomando por base as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, mostram que entre 2010 e 2020, os processos levaram em média 16 anos para acabar e apenas pouco mais de 6% do passivo foi pago.
É preciso buscar a efetividade do processo e torná-lo mais ágil e resolutivo para credores, devedores e demais partes interessadas. Esse objetivo, contudo, deve ser conciliado com o princípio norteador do processo falimentar, previsto no artigo 75, I, da LFRE (otimização e utilização produtiva dos recursos da massa falida).
Ou seja, a ágil solução do processo, por si só, pode não atender minimamente ao interesse dos credores, se os ativos forem liquidados por valores muito baixos, irrisórios ou que configurem preço vil.
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[1] LFRE, art. 142, § 2º-A, inciso V: a alienação de que trata o caput deste artigo…não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil.
[2] Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)
[3] Traçando simples paralelo, em artigo que publicamos pela ConJur, lembramos o veto ao art. 4º, caput, da Lei n. 11.101/2005, que dispunha sobre a ampla intervenção do MP na falência e na recuperação judicial, veto que na prática se tornou letra morta, uma vez que vários preceitos da LFRE continuaram a prever a intervenção do MP na falência e na recuperação judicial, facultando-se ao Magistrado, a qualquer momento, além disso, encaminhar os autos ao MP, quando lhe pareça necessário ouvi-lo, em razão do interesse público imanente a esses processos, que normalmente são processos estruturais, porque cuidam de questões complexas, estruturais, de interesse público e de repercussão social relevante, e que demandam soluções complexas. E o C. STJ, no julgamento do RESp 1.884.860/RJ, em 20 de outubro de 2020, Relatora a Ministra Nancy Andrighi, afirmou que a importância da intervenção do MP na falência e na recuperação judicial não foi diminuída pelo veto presidencial havido: “O texto normativo que resultou na atual Lei de Falência e Recuperação de Empresas saiu do Congresso Nacional com uma roupagem que exigia do Ministério Público atuação em todas as fases dos processos de recuperação judicial e de falência. Essas amplas e genéricas hipóteses de intervenção originalmente previstas foram restringidas pela Presidência da República, mas nem por isso reduziu-se a importância do papel da instituição na tramitação dessas ações, haja vista ter-se franqueado ao MP a possibilidade de “requerer o que entender de direito”.
[4] “PRELIMINAR – Pretensão da agravante em ver homologado o resultado de alienação judicial e impugnar lance efetuado nos autos da falência – Hipótese em que a questão não foi examinada pelo Magistrado, que sequer intimou o Administrador Judicial para se manifestar sobre a regularidade dos lances – Supressão de instância – Recurso não conhecido neste ponto. AGRAVO DE INSTRUMENTO – FALÊNCIA – ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL – Decisão que intimou os proponentes à aquisição de imóvel a, no prazo de 15 (quinze) dias, ratificarem seu interesse e formalizarem oferta mais vantajosa à massa falida agravada – Insurgência de pretensa arrematante quanto à intimação para reafirmar seu interesse – Conquanto não se aplique o conceito de preço vil à alienação falimentar, deve ser verificado o interesse da massa e da coletividade de credores no prosseguimento do procedimento naqueles moldes – Maior lance até então ofertado que não alcança 5% do valor do bem e é muito inferior ao passivo estimado – Aceitação do lance que comprometeria a capacidade de pagamento da massa – Precedente deste Sodalício – Possibilidade de o Magistrado autorizar forma alternativa, com base no interesse da massa – Decisão mantida – Recurso nesta parte improvido.”
(TJSP; Agravo de Instrumento 2053800-06.2023.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Vinhedo – 2ª Vara; Data do Julgamento: 13/07/2023; Data de Registro: 13/07/2023)
“RECURSO – Agravo de Instrumento – Apontamento de omissão sobre a proposta de arrendamento dos bens da massa falida para o pagamento dos credores – Vício sanado posteriormente – Perda superveniente do interesse recursal – Recurso nesta parte não conhecido. FALÊNCIA – Alienação dos ativos – Leilão – Inobservância do procedimento previsto no art. 142, §3º-A da Lei 11.101/05 – Desrespeito aos prazos sucessivos de 15 dias entre as chamadas – Prejuízo para a concorrência e para a massa dos credores – Alienação por preço vil que não pode ser mantida no caso concreto – Decreto de nulidade do certame – Parecer favorável da d. Procuradoria – Recurso nesta parte provido.”
(TJSP; Agravo de Instrumento 2163944-47.2023.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jarinu – Vara Única; Data do Julgamento: 14/09/2023; Data de Registro: 14/09/2023).
[5] “FALÊNCIA – Realização do ativo – Arrematação do imóvel da falida por preço equivalente a 10% do valor da avaliação – Possibilidade – Exaurimento das tentativas de alienação por preços mais próximos ao da avaliação em duas praças – Alienação frustrada – Impossibilidade de reabertura do certame – Conceito de preço vil que não se aplica ao processo falimentar atual – Decisão que deve ser reformada visando a proteção do direito do arrematante e a celeridade na realização do ativo – Inteligência do art. 142, § 2º-A, inciso V e § 3º, incisos, da Lei 11.101/05 – Aprovação da arrematação que deve seguir o critério da estrita legalidade – Exegese do art. 142, § 3º-B, inciso III da Lei 11.101/05 – Recurso provido.” (TJ-SP – AI: 21349036920228260000 SP 2134903-69.2022.8.26.0000, Relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 20/10/2022, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 20/10/2022).
[6] CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. INTEMPESTIVIDADE. SUFICIÊNCIA DA INTIMAÇÃO. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. LEGITIMIDADE ATIVA. FALIDO. MATÉRIA PRECLUSA. CONFLITO DE INTERESSES. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA N. 283/STF. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. HOMOLOGAÇÃO DA ARREMATAÇÃO. PREÇO VIL. SÚMULA N. 7/STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. Inexiste afronta ao art. 1.022 do CPC/2015 quando a Corte local pronunciou-se, de forma clara e suficiente, acerca das questões suscitadas nos autos, manifestando-se sobre todos os argumentos que, em tese, poderiam infirmar a conclusão adotada pelo Juízo. 2. Ausente o enfrentamento da matéria pelo acórdão recorrido, mesmo após a oposição de embargos declaratórios, inviável o conhecimento do recurso especial, por falta de prequestionamento. Incidência da Súmula n. 211/STJ. 3. Esta Corte possui o entendimento de que “é prescindível a indicação do nome e do endereço dos advogados na petição de agravo de instrumento quando, por outros documentos, for possível obter tais informações” (REsp n. 1.515.693/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 4/6/2019, DJe de 21/6/2019). 4. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, “a sociedade falida não se extingue ou perde a capacidade processual (CPC/1973, art. 7º; CPC/2015, art. 70), tanto que autorizada a figurar como assistente nas ações em que a massa seja parte ou interessada, inclusive interpondo recursos e, durante o trâmite do processo de falência, pode até mesmo requerer providências conservatórias dos bens arrecadados” (AgRg no REsp 1265548/SC, de minha relatoria, QUARTA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 05/08/2019). 5. O recurso especial que não impugna fundamento do acórdão recorrido suficiente para mantê-lo não deve ser admitido, a teor da Súmula n. 283/STF. 6. O STJ possui entendimento pacífico de que se caracteriza “preço vil quando a arrematação não alcançar, ao menos, a metade do valor da avaliação” (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.931.921/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/11/2021, DJe de 25/11/2021). 7. O recurso especial não comporta exame de questões que impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos (Súmula n. 7 do STJ). 8. No caso concreto, o Tribunal de origem concluiu pelo preço vil da arrematação e pela ausência de documento comprobatório da ciência inequívoca da parte relativa à decisão homologatória da arrematação. Entender de modo contrário demandaria nova análise dos demais elementos fáticos dos autos, inviável em recurso especial, ante o óbice da referida súmula. 9. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AgInt no REsp n. 1.785.716/GO, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 11/9/2023, DJe de 19/9/2023.).
[7] CPC, art. 891. Não será aceito lance que ofereça preço vil.
Parágrafo único. Considera-se vil o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz e constante do edital, e, não tendo sido fixado preço mínimo, considera-se vil o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação.
[8] “A duração do processo falimentar e as tentativas de maior eficiência”, texto de Renata Paccola Mesquita e Ana Clara Andrade Ranzani, publicado pelo CONJUR, em novembro de 2023: “Ainda mais preocupantes foram os resultados obtidos em um estudo realizado pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), o qual demonstrou que os procedimentos falimentares ajuizados entre os anos de 2010 a 2020 demoraram, em média, 16 anos para terminar, com o pagamento de aproximadamente 6,1% do passivo apenas. Nesse contexto, evidenciou-se a necessidade de alterações na legislação referente ao regime de insolvência empresarial, até então regulamentado pela Lei 11.101/2005, emergindo, daí, a Lei 14.112/2020, que entrou em vigor em janeiro de 2021, com o objetivo de modernizar e tornar mais eficiente o processo de recuperação judicial e falência de empresas”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-nov-23/a-duracao-do-processo-falimentar-e-as-tentativas-de-maior-eficiencia/ acesso em 3 de março de 2024.
Fonte: Conjur.