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01-01-2015 

Parcelar dívida com a União inviabiliza recuperação judicial de empresas

A Lei n. 11.101, de 2005, que trata da recuperação de empresas, diz que a sociedade empresária que quiser pedir recuperação judicial tem de provar estar quite com o Fisco. É uma maneira não declarada de garantir que o erário receba a sua parte no débito antes de o juiz decidir se salva ou não a empresa em dificuldade financeira. O artigo 57 dessa Lei diz o seguinte: “Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos artigos. 151, 205, 206 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional”.

Em outras palavras: para que o devedor possa prosseguir com sua recuperação judicial, já com plano aprovado pelos credores, tem de comprovar que não deve ao Fisco.

De modo geral, os juízes, seja por entenderem pela eficácia limitada ou inconstitucionalidade da regra contida no artigo 57, deixam de exigir, previamente, a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais para a homologação do plano de recuperação judicial já aprovado pelos credores. Essa questão sempre me chamou à atenção, pois é certo, ou deveria ser certo que, de acordo com o artigo 49 da Lei de Recuperação, seu objetivo maior é proporcionar meios para que uma empresa que atravesse crise econômico-financeira se recomponha com o pedido e homologação da recuperação judicial para atender aos princípios informadores da recuperação: preservação e função social da empresa.

Sobre o tema:

O colendo Superior Tribunal de Justiça também já teve a oportunidade se posicionar sobre a matéria, verbis:

"A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil (....). Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgado "contra legem", pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum" ( Min. Sálvio de Figueiredo, RSTJ 26/378 )”.

É sabido que a recuperação judicial não afeta o Fisco, que pode prosseguir com as ações e execuções ajuizadas em face do devedor (LRF, artigo 6º, parágrafo 7º). A exigência da apresentação de certidões negativas ou positivas com efeito negativo por empresa em recuperação atenta contra os princípios basilares da própria Lei de Recuperação e Falência. Como admitir que uma empresa se recupere se tiver de ajustar suas contas com o Fisco, antes de qualquer credor?

A questão não é pacífica. Sempre defendi a inconstitucionalidade do artigo 57 da Lei de Recuperação e Falência por não ser razoável ou proporcional.  Não se pode tratar a recuperação judicial de forma inconsequente, pois, ao invés de ser um instituto que tem por objetivo viabilizar a superação de crise econômico-financeira do devedor, será um verdadeiro processo que antecederá a sua quebra. 

Em 13 de novembro de 2014, a Lei 13.043 incluiu o artigo 10-A na Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, criando parcelamento para as empresas que obtiverem o deferimento da recuperação judicial. Vejamos:

“Art. 10-A. O empresário ou a sociedade empresária que pleitear ou tiver deferido o processamento da recuperação judicial, nos termos dos arts. 51, 52 e 70 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, poderão parcelar seus débitos com a Fazenda Nacional, em 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada:

I - da 1ª à 12ª prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento);

II - da 13ª à 24ª prestação: 1% (um por cento);

III - da 25ª à 83ª prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e

IV - 84ª prestação: saldo devedor remanescente.

§ 1º O disposto neste artigo aplica-se à totalidade dos débitos do empresário ou da sociedade empresária constituídos ou não, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, mesmo que discutidos judicialmente em ação proposta pelo sujeito passivo ou em fase de execução fiscal já ajuizada, ressalvados exclusivamente os débitos incluídos em parcelamentos regidos por outras leis.

§ 2º No caso dos débitos que se encontrarem sob discussão administrativa ou judicial, submetidos ou não à causa legal de suspensão de exigibilidade, o sujeito passivo deverá comprovar que desistiu expressamente e de forma irrevogável da impugnação ou do recurso interposto, ou da ação judicial, e, cumulativamente, renunciou a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem a ação judicial e o recurso administrativo.

§ 3º O empresário ou a sociedade empresária poderá, a seu critério, desistir dos parcelamentos em curso, independentemente da modalidade, e solicitar que eles sejam parcelados nos termos deste artigo.

§ 4º Além das hipóteses previstas no art. 14-B, é causa de rescisão do parcelamento a não concessão da recuperação judicial de que trata o art. 58 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, bem como a decretação da falência da pessoa jurídica.

§ 5º O empresário ou a sociedade empresária poderá ter apenas um parcelamento de que trata o caput, cujos débitos constituídos, inscritos ou não em Dívida Ativa da União, poderão ser incluídos até a data do pedido de parcelamento.

§ 6º A concessão do parcelamento não implica a liberação dos bens e direitos do devedor ou de seus responsáveis que tenham sido constituídos em garantia dos respectivos créditos.

§ 7º O parcelamento referido no caput observará as demais condições previstas nesta Lei, ressalvado o disposto no § 1º do art. 11, no inciso II do § 1º do art. 12, nos incisos I, II e VIII do art. 14 e no § 2º do art. 14-A.”

Segundo Eros Grau (Equidade, razoabilidade, proporcionalidade e princípio da moralidade. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, 3, 2005):

“O que Aristóteles mostra é que toda lei se encontra em uma tensão necessária em relação à concreção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção. E prossegue: a lei é sempre deficiente, não porque o seja em si mesma, mas sim porque, em presença da ordenação a que se referem as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas

Consoante a norma do art. 4o. da Lei de Introdução ao Código Civil, está expresso que a própria lei deve ser a primeira referência do julgador, mas este não se pode apresentar como um autômato, um servil aplicador de leis como se tratasse de uma máquina que daria resposta aos questionamentos que lhe forem apresentado de acordo com regras pré-estabelecida.

A este respeito é oportuno trazer a colação os sábios ensinamentos de Carlos Maximiliano 3º que soube bem descrever a interpretação evolutiva do direito:

"Existe entre o legislador e o juiz a mesma relação que entre o dramaturgo e o ator. Deve este atender às palavras da peça e inspirar-se no seu conteúdo: porém, se é verdadeiro artista, não se limita a uma reprodução pálida e servil: dá vida ao papel, encara de modo particular o personagem, imprime um traço pessoal à representação, empresta às cenas um certo colorido, variações de matiz quase imperceptíveis: e de tudo faz ressaltarem aos olhos dos espectadores, maravilhados, belezas inesperadas, imprevistas. Assim o magistrado: não procede como insensível e frio aplicador mecânico de dispositivos: porém como órgão do aperfeiçoamento destes, intermediário entre a letra morta dos códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade. Não o consideram autômato: e, sim árbitro da adaptação dos textos às espécies ocorrentes, mediador esclarecido entre o direito individual e o social"

O artigo preocupa porque cria parcelamento de dívida para com a União. Nada fala em dívidas para com as Fazendas Estadual e Municipal. Se os juízes passarem a entender que o artigo 10-A da Lei 10.522/2002, trazido pela Lei nº 13.043/2014, confere eficácia ampla ao artigo 57 da Lei n.11.101/2005, certamente inviabilizarão o processo de recuperação judicial e esvaziarão toda a sua lógica, que é salvar a empresa em dificuldade financeira ocasional, porque exigirão do empresário devedor, já descapitalizado, que arranje dinheiro sabe-se lá de onde para quitar o Fisco, como condição de que o pedido de recuperação seja liminarmente apreciado. Se o objetivo principal da lei é salvar a empresa pelo seu fim social, pela sua natural capacidade de gerar riquezas, empregos e de pagar tributos, que sentido faz matar a galinha para ficar com o ovo?

Por Mônica Gusmão - professora de Direito Empresarial da FGV, IBMEC, Emer, Escola Da Magistratura do Trabalho(TJ), Escola Judicial do TJ-RJ e da PUC-RJ. Autora de diversos livros e articulista.

Fonte: Conjur

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