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    28-10-2025
Paradoxo da competência trabalhista na RJ: quando TST e STF se enroscam nos cálculos
Delimitação da competência trabalhista e ponto de partida do paradoxo
A universalidade do juízo da recuperação judicial constitui um dos pilares da Lei nº 11.101/2005, visando a centralização e coordenação de todas as ações e execuções contra a empresa em crise para assegurar o tratamento isonômico dos credores e a viabilidade do plano de recuperação. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 583.955/SP, que deu origem ao Tema 90 da repercussão geral, consolidou o entendimento de que “Compete ao juízo universal da recuperação judicial processar e julgar todas as execuções contra o devedor, inclusive as de natureza trabalhista.”
Essa tese firmou uma clara divisão de competências: à Justiça do Trabalho caberia o reconhecimento e a quantificação inicial do crédito, na fase de conhecimento, enquanto os atos expropriatórios e de pagamento seriam de incumbência exclusiva do juízo da recuperação, preservando, assim, o princípio da par conditio creditorum e a função social da empresa.
Contudo, a aplicação prática dessa diretriz tem revelado uma complexidade peculiar, inerente à própria estrutura do processo do trabalho. Diferentemente de outros ramos do direito, as sentenças trabalhistas frequentemente reconhecem direitos de forma ilíquida, postergando a apuração do valor exato para a fase de execução, uma vez que a liquidação da sentença trabalhista somente ocorre dentro daquela.
Diante disso, a mera delimitação da competência à “fase de conhecimento” para a Justiça do Trabalho, com a remessa da “execução” ao juízo universal, gera um vácuo no momento crucial da transformação do direito reconhecido em crédito líquido e passível de habilitação. Se a liquidação, para o Processo do Trabalho, é um ato de execução e a execução está adstrita ao juízo recuperacional, a Justiça do Trabalho vê-se impedida de concretizar o valor do crédito, essencial para sua inclusão no plano de recuperação. Esta tensão inicial entre a norma geral da recuperação e a especificidade do processo trabalhista é o nascedouro do paradoxo que se aprofundará com a intervenção do Tribunal Superior do Trabalho em suas teses vinculantes.
Intersecção com as teses do TST: agravamento do impasse
A problemática da delimitação de competências e a efetividade da execução trabalhista em face de empresas em recuperação judicial foram significativamente agravadas por recentes posicionamentos do TST, notadamente através da fixação de teses em Incidentes de Recursos Repetitivos. Entre eles, destaca-se o Tema 159, cujo acórdão representativo foi proferido no processo TST RR 0000239-49.2023.5.10.0016, com data de julgamento em 30 de junho de 2025 e publicação em 01 de julho de 2025, estabelecendo a seguinte tese vinculante: “A exigência de garantia integral da dívida na fase de execução (artigo 884 da CLT) se aplica às empresas em recuperação judicial, dela dependendo o conhecimento dos embargos do devedor e os recursos subsequentes interpostos na fase de execução.”
Este posicionamento reafirma a jurisprudência consolidada do TST, enfatizando a interpretação sistemática dos artigos 884 e 899 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O cerne da decisão reside na clara distinção entre o depósito recursal, previsto no artigo 899, parágrafo 10, da CLT, que isenta as empresas em recuperação judicial apenas na fase de conhecimento, e a garantia do juízo exigida na fase de execução, conforme o artigo 884, caput, da CLT.
O Tribunal Pleno enfatiza que a isenção constante do parágrafo 6º do artigo 884 da CLT abrange exclusivamente as entidades filantrópicas e seus diretores, sem incluir expressamente as empresas em recuperação judicial. Com isso, para que uma empresa em recuperação judicial possa opor embargos à execução ou interpor recursos subsequentes na fase executória, a garantia integral da dívida é um pressuposto indispensável.
Adicionalmente, a complexidade é adensada pelo Tema 174 do TST, que define que a decisão de homologação dos cálculos na Justiça do Trabalho possui natureza interlocutória e é irrecorrível de imediato. A conjugação desses entendimentos cria uma barreira quase intransponível: para discutir a correção dos cálculos — um passo essencial para a liquidação definitiva do crédito e sua posterior habilitação no juízo universal — a empresa em recuperação judicial precisa garantir integralmente o juízo. Entretanto, a prestação dessa garantia, em um contexto de crise financeira e sob o controle do juízo recuperacional, que deve gerenciar o patrimônio do devedor de forma centralizada e sob estrita vigilância, torna-se uma operação delicada e muitas vezes inviável sem a expressa autorização do juízo universal. Este cenário configura um verdadeiro bloqueio processual, que compromete a eficácia da tutela jurisdicional trabalhista.
Paradoxo em ação: impasse do processo trabalhista e suas consequências
O entrelaçamento das teses do STF (Tema 90) e do TST (Temas 159 e 174) projeta um cenário de profundo impasse para a efetividade do processo trabalhista quando a empresa se encontra em recuperação judicial. Na prática, a Justiça do Trabalho, limitada pelo Tema 90 à fase de conhecimento, não pode conduzir a execução. Contudo, para que o crédito trabalhista seja habilitado no juízo universal e, finalmente, pago conforme o plano de recuperação, ele precisa ser líquido, certo e exigível. A liquidação, que é a apuração do valor devido, ocorre tradicionalmente na fase de execução trabalhista, conforme a sistemática da CLT.
É nesse ponto que o Tema 159 do TST se insere como um nó górdio. Se a liquidação já é considerada um ato executório — e, portanto, teoricamente fora da competência da Justiça do Trabalho após o Tema 90 — a necessidade de garantir integralmente o juízo para discutir os cálculos (via embargos à execução ou agravo de petição) imposta às empresas em recuperação judicial torna o processo ainda mais disfuncional.
A empresa, já em dificuldade financeira e sob o escrutínio do juízo universal, vê-se diante da exigência de um depósito que pode comprometer sua própria recuperação, ou, alternativamente, fica sem meios recursais para contestar os cálculos, mesmo que equivocados.
Pior, se a garantia do juízo não ocorre voluntariamente, não pode o juízo trabalhista determinar nenhum tipo de constrição judicial para créditos sujeitos à recuperação, donde se conclui que nem o devedor (empresa em recuperação) nem o credor trabalhista poderão finalizar a discussão dos cálculos devidos para fins de habilitação.
O resultado é um limbo jurídico, onde o trabalhador tem seu direito reconhecido em sentença, mas seu crédito não consegue ser liquidado de forma definitiva ou, se liquidado, não pode ter seu valor contestado pela empresa ou pelo próprio credor. Sem a liquidação definitiva e sem a possibilidade de a empresa questionar os valores com o devido processo legal, o crédito não pode ser habilitado corretamente no juízo universal.
Sem garantia do juízo, a rigor, não se inicia o prazo para apresentação dos embargos à execução e da impugnação do credor. O processo se arrasta, o trabalhador não recebe e a empresa em recuperação enfrenta mais um obstáculo à sua reestruturação, pois discussões intermináveis sobre valores podem impactar o plano.
Em última análise, a colisão de entendimentos entre as Cortes Superiores, embora cada qual zelando pela coerência de sua jurisdição e pela aplicação da legislação pertinente, acaba por criar uma disfunção sistêmica que prejudica a segurança jurídica e a razoável duração do processo, além de gerar uma inefetividade da própria jurisdição.
Consequências para credores trabalhistas e eficiência do sistema
A persistência desse paradoxo acarreta consequências graves para os credores trabalhistas, que se veem com um direito reconhecido, mas de difícil materialização. A demora, ou impossibilidade, na liquidação definitiva do crédito, posterga indefinidamente a habilitação e o recebimento. Para o trabalhador, que frequentemente depende do crédito para sua subsistência, essa morosidade pode significar privações e desamparo. A proteção constitucional do crédito trabalhista, em sua natureza alimentar, é enfraquecida quando o percurso para sua satisfação se torna um emaranhado processual sem solução aparente.
Para o sistema judiciário como um todo, o impasse contribui para o aumento da litigiosidade e para a sobrecarga das cortes. A ausência de um fluxo claro e eficiente para a liquidação dos créditos trabalhistas em recuperações judiciais gera uma demanda contínua por pronunciamentos judiciais que tentem, casuisticamente, contornar o problema.
Isso afeta a previsibilidade, a celeridade e a segurança jurídica, elementos essenciais para a confiança no sistema e para o bom ambiente de negócios. A universalidade do juízo recuperacional, que deveria promover a racionalização do processo de reestruturação empresarial, é, neste ponto, desafiada por uma dificuldade insuperável na interface com a Justiça Especializada. A empresa, por sua vez, enfrenta o risco de ter valores contestáveis habilitados em seu plano, o que pode comprometer a equidade entre credores e, em última instância, a própria recuperação.
Caminhos para harmonização: propostas de solução
Para superar o paradoxo exposto e garantir a efetividade da tutela jurisdicional, faz-se imperativa a busca por soluções que harmonizem as competências e as lógicas processuais envolvidas, sem desvirtuar os princípios que as informam.
Uma das vias possíveis reside na intervenção legislativa. Uma alteração na Lei nº 11.101/2005 ou na CLT poderia prever um rito especial para a liquidação de créditos trabalhistas de empresas em recuperação judicial. Poder-se-ia, por exemplo, autorizar a Justiça do Trabalho a conduzir a fase de liquidação do crédito até a sua homologação final, com caráter meramente declaratório e não executório, para fins exclusivos de habilitação no juízo universal. Esse procedimento não envolveria atos de constrição patrimonial, que permaneceriam sob o controle do juízo da recuperação, mas permitiria a fixação do quantum debeatur de forma definitiva e com a observância do devido processo legal trabalhista. A dispensa da garantia do juízo para a discussão desses cálculos, neste rito específico, poderia ser contemplada legislativamente, superando a exigência do Tema 159 do TST, que é fundamentada na ausência de previsão legal para tal dispensa.
Outra abordagem poderia ser uma reinterpretação ou modulação dos efeitos das teses já firmadas pelos tribunais superiores. O STF e o TST poderiam, em um diálogo institucional, refinar seus entendimentos para permitir que a Justiça do Trabalho, excepcionalmente nos casos de recuperação judicial, promovesse a liquidação do crédito em uma “fase de cognição prolongada”, culminando em uma certidão de crédito líquido que seria, então, habilitada. Essa fase de liquidação, embora materialmente executória, seria formalmente cognitiva, afastando a exigência de garantia do juízo para as discussões sobre o cálculo, com a premissa de que a efetiva satisfação do crédito ainda dependerá da habilitação no juízo universal. Tal modulação exigiria uma coordenação interinstitucional robusta e um esforço hermenêutico que privilegie a finalidade da norma em detrimento de uma interpretação estritamente literal.
A colaboração interinstitucional também desponta como um caminho promissor. A criação de protocolos e de fluxos de trabalho conjuntos entre Varas do Trabalho e Varas Cíveis/Empresariais, com a participação dos administradores judiciais, poderia facilitar o processo de habilitação. Poder-se-ia, por exemplo, estabelecer que o administrador judicial atue como um facilitador na apuração dos créditos trabalhistas, promovendo a conciliação ou validando os cálculos em um estágio inicial, sob a supervisão do juízo da recuperação, após o trânsito em julgado da decisão de conhecimento na Justiça do Trabalho. Essa cooperação permitiria que as particularidades de cada jurisdição fossem respeitadas, ao mesmo tempo em que se buscaria a eficiência e a celeridade.
Finalmente, a revisão do conceito de “execução” no contexto da recuperação judicial merece uma reflexão. Embora a fase de liquidação seja tradicionalmente vista como parte da execução no Processo do Trabalho, nos casos de empresas em recuperação, seu objetivo imediato não é a constrição patrimonial, mas sim a formação de um título líquido para fins de habilitação.
Ao distinguir entre a “liquidação para habilitação” e a “execução para constrição”, poder-se-ia construir um arcabouço interpretativo que permita à Justiça do Trabalho cumprir sua função de determinar o valor do crédito, sem invadir a esfera de atos expropriatórios reservados ao juízo universal, e sem impor à empresa recuperanda a obrigação de garantir um juízo quando a finalidade não é a satisfação imediata, mas a habilitação em um processo coletivo. Seria um caso para aplicar distinção ao Tema 174 do TST.
Fonte: Conjur.
	    
  					
  					
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