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17-08-2020 

Os excluídos do processo de recuperação judicial e a crise da Covid-19

Por Eduardo Parenti Gonçalves

 

A pandemia da Covid-19 conduz a economia mundial ao pior desempenho desde a Segunda Guerra Mundial, o que, segundo relatórios mais recentes do Banco Mundial, envolve uma contração no PIB (Produto Interno Bruto) global de 5,2%.

No Brasil a história não é diferente. O Banco Central prevê recuo no PIB de 6,4% até o final do ano e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) anunciou que 522 mil empresas fecharam as portas devido à pandemia.

Diante desse cenário, observou-se um crescimento natural no número de pedidos de recuperação judicial e falência. Segundo dados da Boa Vista SCPC, em comparação com junho de 2019, os pedidos de falência avançaram 87,1%, enquanto os de recuperação judicial cresceram 44,6%. Ainda, uma pesquisa realizada pela Secretaria de Política Econômica (SPE), do Ministério da Economia, prevê que cerca de 3,5 mil empresas podem pedir RJ ou entrar em falência dentro dos próximos meses.

Acontece que o acesso a esse mecanismo de saneamento de dificuldades financeiras é condicionado à qualificação do devedor como "empresário" ou "sociedade empresária", o que resulta em uma exclusão muito perigosa para diversos elementos de setores importantes do Estado brasileiro.

Como se sabe, o instituto mencionado é regulado pela Lei 11.101 de 2005, que destina a recuperação judicial e a falência, como dito anteriormente, ao "empresário" e à "sociedade empresária". De acordo com o Código Civil Brasileiro (CC), em seus artigos 966, 967, 982 e 983, empresário é aquele que exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada e destinada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, devendo ter sua atividade inscrita no Registro Público de Empresas Mercantis. Ademais, considera-se empresária a sociedade que possui como objeto social o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro e que se constitui sob os moldes dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092, de acordo com o artigo 983 do CC.

Essa escolha feita pelo legislador se mostra antiquada nos tempos atuais e, acima de tudo, acentua a gravidade da crise econômica enfrentada no país por diversos agentes que restam impossibilitados de recorrer ao instituto em pauta. A doutrina de Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli reforça essa visão: "(...) Atualmente reserva-se o sistema de direito concursal para os agentes qualificados como empresários, enquanto os não-empresários são excluídos, apenas porque em um dado momento do passado essa divisão foi afirmada. No entanto, se observado o contexto econômico atual, não há nenhuma razão que justifique a opção de excluir quem não for empresário do sistema concursal da LRF".

Entre os elementos excluídos dos processos regulados pela Lei 11.101 de 2005, encontram-se, por exemplo, associações sem fins lucrativos (ser uma empresa pressupõe a possibilidade de distribuição de lucros), clubes de futebol, profissionais liberais e cooperativas. Inevitavelmente, a crise gerada pela pandemia atingiu-os em igual ou maior proporção que os demais empreendimentos espalhados pelo Brasil.

De acordo com informações divulgadas pelo Ministério da Educação, 25% das instituições de ensino superior no país são associações sem fins lucrativos. Encontram-se na mesma condição 2.177 hospitais, segundo levantamento feito pela Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB). Em estudo do Semesp, Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo, demonstrou-se que, atualmente, um em cada quatro (26,3%) universitários não está em dia com as mensalidades, o que agrava a crise financeira vivida pelas instituições de ensino. Em relação aos clubes de futebol, de modo semelhante, vê-se que muitos correm sério risco de falência, especialmente aqueles de menor estatura, sem divisão nacional e altamente dependentes das receitas obtidas nas partidas. Hospitais privados, por sua vez, com faturamento reduzido devido à queda de atendimentos clínicos e número de cirurgias, enfrentam o mesmo desafio, o de sobreviver à crise econômica gerada pela pandemia da Covid-19. Por fim, o estudo conduzido pelo CFA (Conselho Federal de Administração) revelou que quase 60% (59,3%) daqueles que trabalham por conta própria tiveram de interromper suas atividades, sendo que 30% dos integrantes desse grupo trabalham com alguma espécie de consultoria e 27,4% recebem até dois salários mínimos.

Importante notar, ainda, que muitas dessas instituições desenvolvem serviços fundamentais para a sociedade brasileira, como serviços de educação e saúde. A relevância e o papel social dessas entidades, por si só, já caracterizam motivos suficientes para que não as deixemos sufocarem devido à crise.

Diante do exposto, é correto que estes indivíduos e instituições sejam "barrados" de acessar à recuperação judicial e à falência? Ou melhor, é correto impedir qualquer um de ter acesso ao mencionado instituto? Acreditamos que não. E o que pode ser feito? Discutem-se duas opções principais.

A primeira possibilidade consiste em uma reforma legislativa aos moldes do Código de Falência Norte-Americano (Bankruptcy Code). Na dicção do código, no §109 (a), apenas uma pessoa que reside ou tem um domicílio, um negócio ou uma propriedade nos Estados Unidos, juntamente com os municípios americanos, pode ter acesso ao instituto da falência no país. Ao interpretarmos este dispositivo em conjunto com o §101 (41), que define "pessoa" para fins do referido código como qualquer indivíduo, tipo societário e corporação, temos que virtualmente qualquer pessoa, física ou jurídica, pode pedir recuperação judicial ou falência nos Estados Unidos.

Como consequência, tem-se um arranjo legal e institucional que engloba uma parcela substantivamente maior de agentes econômicos, dando-lhes uma "saída" ou mecanismos mais eficientes em momentos de extrema dificuldade financeira, como esta gerada pelo novo coronavírus, ao permitir que o postulante acesse benefícios como o stay period, período em que ficam suspensas quaisquer ações de cobrança ajuizadas em face do devedor.

De maneira mais específica, a LRF brasileira deveria ser alterada a fim de incluir: I) pessoas físicas não empresárias; e II) pessoas e entidades estabelecidas sob as formas de associações, fundações, organizações religiosas, municípios e sociedades não empresárias.

Atualmente, aguarda apreciação pelo Senado Federal o Projeto de Lei Nº 1.397/2020, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD/RJ), que objetiva alterar algumas das disposições da LRF em caráter emergencial e enquanto durar o estado de calamidade pública. Entre as mudanças propostas, destaca-se o alargamento do rol de agentes capazes de se beneficiar do sistema de recuperação de empresas. Logo em seu artigo 2º, o PL dispõe que podem se beneficiar dos instrumentos legais da LRF "qualquer pessoa natural ou jurídica que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade".

A segunda opção, notavelmente mais difícil, está relacionada a uma empreitada interpretativa no judiciário, a fim de estender a incidência do artigo 1º da LRF para compreender também não empresários. Isso já vem sendo feito. Recentemente, a 5ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro deferiu o pedido de recuperação judicial da Associação Sociedade Brasileira de Instrução (ASBI) — que mantém a Universidade Candido Mendes — e do Instituto Candido Mendes, sendo ambos agentes econômicos constituídos aos moldes de associação civil sem fim lucrativo. Na petição protocolada, argumentou-se que a partir do momento em que uma associação exerce atividade econômica de maneira organizada, deve ser equiparada à empresa para fins da LRF. Mesmo não distribuindo lucro, argumentou-se que a Ucam gera empregos e receita, além de impactar fortemente a sociedade. O grande problema dessa alternativa reside na morosidade e nos custos envolvidos com ingresso no sistema Judiciário brasileiro, além da própria dificuldade de se argumentar pela extensão do mencionado artigo.

De todo e qualquer modo, frente a uma situação tão complexa e desafiadora como a da crise gerada pela pandemia da Covid-19, não há dúvidas de que diversas medidas devem ser implementadas para atenuar os efeitos da crise. Uma dessas medidas, sem dúvida, consiste no abarcamento de mais agentes econômicos pela LRF, a fim de fornecer instrumentos mais eficientes para combater as dificuldades, seja pela reforma legislativa ou pela ida ao Judiciário. O acesso à recuperação judicial e à falência é um mecanismo essencial para um desenvolvimento econômico saudável. Fornece àqueles com dificuldades financeiras a possibilidade de reorganização ou liberação de dívidas, bem como a opção de recomeçar (na dicção norte-americana, fresh start), corroborando com a manutenção da fonte produtora e dos interesses de credores, com a preservação de empregos e com o estímulo à produção de riquezas de uma maneira geral. Portanto, deve ser aberto a todos, independente de natureza empresária.

Todavia, já em agosto, ainda vemos o governo brasileiro estático, esquivando-se dos pedidos de socorro exprimidos por aqueles que sofrem devido à pandemia e dos alertas enunciados por especialistas que fornecem incessantemente caminhos e soluções para os problemas enfrentados.

Fonte: ConJur

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