NOTÍCIAS
20-10-2023
O que ainda nos falta para um processo de insolvência efetivo?
A Lei de Recuperação e Falência, de nº 11.101/2005 (LRF), prescreve no parágrafo primeiro do seu artigo 75 que "o processo de falência atenderá aos princípios da celeridade e da economia processual". Instrumentalizando essa perspectiva normativa, fez-se constar em seu artigo 79 que "processos de falência e os seus incidentes preferem a todos os outros na ordem dos feitos, em qualquer instância".
Essa celeridade é preocupação antiga. No Parecer nº 534/2004, apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos, acerca do Projeto de Lei nº 71/2003, que viria a se tornar a atual LRF, o então senador Ramez Tebet assim discorreu: "é preciso que as normas procedimentais na falência e na recuperação de empresas sejam, na medida do possível, simples, conferindo-se celeridade e eficiência ao processo e reduzindo-se a burocracia que atravanca seu curso".
Apesar dessa nobre, antiga e reiterada intenção, rememorou-se recentemente na mídia estudo que constatou que processos de falência no Brasil duram em média 16 anos e só recuperam 6 centavos para cada real de dívida.
Com o devido destaque: leva-se 16 anos para recuperar apenas 6% das dívidas.
Como outra face da mesma moeda, pudemos apresentar vasta evidência em nosso novo livro*, recém-publicado pela RT Thomson Reuters, que mesmo empresas em situação financeira crítica conseguem a aprovação de planos de recuperação judicial com auspiciosas condições de pagamentos. E a razão para isso reside na problemática condução dos processos de falência: qualquer oferta é melhor do que receber apenas 6 centavos para cada real de dívida, após 16 anos.
Em conhecidas e antigas palavras, a legislação "não pegou", por mais que a LRF tenha representado inegável avanço em relação ao regime anterior.
A introdução a este breve texto naturalmente levanta a questão que o intitula: o que ainda nos falta para um processo de insolvência efetivo? E, consequentemente, onde está o problema? Nos agentes de mercado? Nos operadores do Direito? Na estrutura do Judiciário?
Respostas completas a essas indagações não caberiam neste espaço. Mas algumas provocações são possíveis.
Primeiramente, cabe aos operadores do Direito percebermos que, sob o mantra de uma legitimação formal do processo, permite-se que sua efetividade material seja nula. Uma demanda falimentar tramita 16 anos em razão de (1) o papel tudo aceitar, (2) sob o manto da precaução tudo se suspender para, ao final, (3) divergir-se integralmente do objetivo legal.
Isso, talvez, sequer ocorra por acaso. Economicamente, o valor da empresa em crise se dissolve em detrimento daqueles que investiram recursos nela, favorecendo advogados, assessores financeiros e toda a estrutura do Judiciário, em uma ineficiente transferência de renda. A demora processual pode ser resultado de problemas de incentivos e de "rent-seeking".
Quanto aos dois pontos acima, espera-se que as salutares reformas promovidas pela Lei nº 14.112/2020, especificamente no que diz respeito ao procedimento de liquidação, sejam devidamente respeitadas no Judiciário.
Por fim, vale fazer uma última reflexão, direcionada não apenas aos operadores do Direito, mas também aos agentes de mercado.
Não é toda empresa que pode (muito menos deve) ser recuperada. Não existe salvamento de uma empresa a qualquer custo. Afinal de contas, uma estrutura jurídica não tornará, num passe de mágica, ou por meio de um milagre, um negócio de inviável em viável. Ao contrário do que se pode ler em posições do Judiciário, a falência não "rompe com o regular sistema econômico" (menção feita em STJ, REsp 1.751.300/SP, referenciando posição do tribunal a quo). No darwinismo econômico da insolvência, empresas vivem e morrem no mercado, sobrevivendo somente as mais aptas. Falência é uma inerência do sistema.
Sob uma deturpada aplicação do princípio da preservação da empresa, ficamos presos a um passado que não mais existe. Dinâmicas econômicas e competitivas se alteram. Parafraseando discussão sobre nepotismo em negócios, artificialmente forçar a sobrevivência de uma atividade com base no que ela foi seria o equivalente a esperar que uma seleção de futebol composta somente por filhos dos campeões de 2002 fosse o melhor caminho para tirar o Brasil de sua atual sequência negativa, ao invés de se prestigiar aqueles que bem produzem no presente. Trata-se de comportamento distorcido e ineficiente.
Recuperação judicial e falência são mecanismos de um sistema integrado e recursivo — "autopoiético", para alguns acadêmicos. A ineficiência de uma macula a efetividade da outra:
(1) Manter artificialmente operacional, via recuperação judicial, uma empresa inapta, no melhor dos casos, funciona como transferência de renda para agentes alheios ao risco do negócio. No pior dos casos, além da transferência de renda, há destruição de valor. Esses dois elementos são materializados na taxa de recuperação, após 16 anos, de 6 centavos para cada real de dívida em caso de falência.
(2) Por outro lado, uma falência que leva 16 anos para ser encerrada força os credores a aceitarem qualquer oferta na recuperação judicial. Em âmbito macro, é a sociedade brasileira quem paga — vide, por exemplo, uma produtividade total decadente desde a década de 1980.
Que a concorrência permita que os melhores nos atendam. E que o direito da insolvência favoreça — e não atrapalhe — isso. E, para tanto, repitamos os questionamentos anteriores que, cremos, a resposta encontra-se bem estampada à nossa frente: o que ainda nos falta para um processo de insolvência efetivo? E, consequentemente, onde está o problema? Nos agentes de mercado? Nos operadores do Direito? Na estrutura do Judiciário?
Fonte: Conjur.