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01-08-2018
O negócio jurídico processual na recuperação judicial
Texto de autoria de Paulo Furtado
Enquanto são discutidas as propostas de alteração da lei 11.101/2005, é possível implementar desde logo medidas adequadas ao aumento da eficiência do procedimento de recuperação judicial, utilizando-se dois instrumentos muito úteis, que são o negócio jurídico processual e o calendário processual.
Dispõe o art. 190 do novo Código de Processo Civil:
"Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Par. único - De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade".
Esse o teor do art. 191 do novo Código de Processo Civil:
"De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.
Par. 1º. – O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais devidamente justificados.
Par. 2º. – Dispensa-se a intimação das partes para a prática do ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário".
O negócio jurídico processual: a) tem como fundamento o princípio da autonomia da vontade; b) será admitido quando se tratar de direitos passíveis de autocomposição; c) as partes sejam capazes e estejam em situação de equilíbrio; d) tem por finalidade tornar mais eficiente o procedimento. O calendário processual, que tem por objeto a disciplina das datas para a prática de atos processuais ou a fixação de datas de audiências, dispensa a intimação das partes.
O procedimento de recuperação judicial, por sua vez, tem por fundamento a preservação da empresa e por finalidade viabilizar a superação da crise por meio de uma solução negociada entre o devedor e seus credores. De acordo com o professor Francisco Satiro, esse processo judicial se justifica porque, diante da complexidade estrutural das atividades empresariais atuais e da multiplicidade de credores com interesses e objetivos no mais das vezes incompatíveis, a tarefa de negociação e composição de débitos, ou mesmo de restruturação de negócios, tende a ser inefetiva (Castro, Rodrigo Rocha Monteiro de; Warde Júnior, Walfrido Jorge; Guerreiro, Carolina dias Tavares (coord.). Direito Empresarial e Outros Estudos em Homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013, Capítulo 5, Autonomia dos Credores na Aprovação do Plano de Recuperação judicial; pp. 102/104).
Para que o processo de recuperação seja eficiente, o professor Eduardo Secchi Munhoz destaca que são necessárias certas medidas, adotadas pela lei 11.101/2005: a) a suspensão das ações e execuções contra o devedor, de modo a interromper a corrida individual dos credores, evitando a liquidação precipitada de bens integrantes do patrimônio do devedor; b) divisão dos credores em classes, a fim de assegurar que a vontade dos credores na recuperação seja manifestada de forma coerente com as características e prerrogativas contratuais de cada crédito, evitando-se, com isso, desvios de ordem hierárquica dos créditos; c) decisão por maioria, dentro de cada classe, para evitar situações de hold up, nas quais algum credor, por conta de uma situação particular, poderia, isoladamente e contra a vontade da maioria, impedir uma solução avaliada melhor para todos. (Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado. AASP. Ano XXIX, nº 105, setembro de 2009, p. 115-128.).
Não há incompatibilidade entre o modelo de negociação para superação da crise (os planos normalmente modificam os direitos dos credores, alterando valores, prazos e condições de pagamento) e o modelo agora adotado para o direito processual (que admite negociação sobre forma dos atos processuais, fixação de prazos para a realização dos atos pelos sujeitos do processo e alteração de atos do procedimento).
O que não pode ser negociado pelas partes são apenas os atos essenciais do procedimento de recuperação judicial, como, por exemplo, a suspensão das ações e execuções individuais por 180 ("stay period"), que é fundamental para que os credores não destruam o valor da organização empresarial. Também a divisão de credores em classes e a deliberação por maioria são aspectos essenciais do procedimento de negociação, para que credores de hierarquia superior não sejam tratados de forma pior do que credores de hierarquia inferior, e para que uma minoria não impeça uma solução considerada mais satisfatória pela maioria dos credores de determinada classe.
Contudo, outros atos do procedimento e a forma de realização destes atos podem ser objeto de negócio jurídico processual. A título de exemplo:
a) devedor e credores podem pactuar a forma de manifestação da vontade dos credores a respeito do plano, estabelecendo o voto escrito e não em assembleia, desde que seja possível ao administrador judicial conferir a autenticidade do voto;
b) as partes podem ajustar nova modalidade de comunicação dos atos processuais, desde que sejam seguras, como, por exemplo, a publicação no endereço eletrônico do administrador judicial, eliminando-se as custosas publicações de editais;
c) é possível que as impugnações sejam processadas extrajudicialmente pelo administrador judicial que a impugnação integralmente processada seja protocolada em juízo para decisão, poupando-se o cartório de repetidos atos de comunicação;
d) podem ser ajustadas sessões de mediação, de modo a permitir que os interessados apresentem suas necessidades e a devedora proponha um plano para a superação da crise que atenda aos diferentes grupos de credores;
e) é viável a fixação de calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia geral de credores.
Credores e devedora ajustaram calendário e negócio jurídico processual, nos autos do processo 1056004-07.2018.8.26.0100, da 2ª vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo. A assembleia foi realizada logo no início do procedimento, permitindo uma aproximação entre devedora e credores, mais abertas ao diálogo, criando-se a expectativa de que a solução consensual quanto ao processo é o primeiro passo para a elaboração de um plano de recuperação judicial equilibrado.
Também é possível a eliminação ou redução do prazo de fiscalização judicial, estabelecendo as partes que o processo será encerrado com a decisão de concessão da recuperação, exatamente como se dá na recuperação extrajudicial.
A permanência do devedor em estado de recuperação por dois anos gera vários entraves, quer sob o aspecto financeiro, quer sob o aspecto negocial. Além de gastos com assessores financeiros, advogados e pessoas que devem estar à disposição do administrador judicial para prestar informações sobre as atividades, o devedor tem restrição de acesso ao crédito, pois as instituições financeiras são obrigadas a adotar provisões mais conservadoras nas operações com os devedores em recuperação e os demais agentes econômicos sentem-se inseguros em contratar com quem está no regime de recuperação judicial.
Por outro lado, se os credores são reunidos para decidirem sobre o conteúdo do seu direito de crédito, não há razão para proibi-los de escolherem se querem ou não fiscalizar o devedor que está obrigado a satisfazer o crédito. Os credores podem optar por uma fiscalização extrajudicial, nomeando pessoa de sua confiança, com acesso à contabilidade e ao caixa da recuperanda. Tal forma de monitoramento das atividades do devedor poderá ser mais barata e menos burocrática, superando as vantagens da fiscalização pelo administrador judicial. E mesmo depois da sentença de encerramento da recuperação, os credores poderão requerer a falência ou a execução do título, em caso de descumprimento das obrigações previstas no plano.
Enfim, os negócios jurídicos processuais são plenamente compatíveis com o procedimento de recuperação judicial e podem contribuir para que ele se torne um instrumento mais eficiente para a superação da crise econômico-financeira do empresário.
Fonte: Migalhas