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26-05-2025
O crédito tributário e a supremacia do interesse público
Antes de aprofundar a análise sobre importância de considerar o passivo fiscal durante a recuperação judicial, é fundamental examinar a evolução do conceito de crédito tributário ao longo do tempo e os princípios que regem sua aplicação no ordenamento jurídico.
De acordo com a doutrina de Hugo de Brito Machado, o crédito tributário é definido como “a formalização da obrigação tributária, ou seja, do dever de pagar o tributo ou a penalidade pecuniária”. Em outras palavras, o autor descreve o crédito tributário como um vínculo jurídico resultante do lançamento tributário, que possui natureza obrigacional. Esse vínculo permite ao Estado, como sujeito ativo, exigir do contribuinte ou responsável (sujeito passivo) o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária, garantindo que o tributo seja exigível devido à sua liquidez e certeza.
Assim, o Estado exerce seu direito de cobrar do contribuinte o que o Código Tributário Nacional, em seu artigo 3º, define como uma prestação pecuniária compulsória, em moeda ou expressa em seu valor, que não constitui sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada através de atividade administrativa vinculada — o tributo.
Além de sua definição, o tributo também desempenha uma função social no nosso ordenamento jurídico. Sua arrecadação permite ao Estado cumprir seu papel de promover o bem-estar social e estimular o progresso social. Nesse contexto, Salete de Oliveira Domingos esclarece:
“Os efeitos da política tributária se refletem diretamente em toda sociedade e definem a estrutura econômica de um país; ela é decisiva para definir a estrutura da sociedade. Por essa razão, para haver equilíbrio nas relações que envolvem a tributação, devem ser observadas a aplicação dos ditames constitucionais e dos direitos fundamentais, mas principalmente os seus princípios norteadores. Assim, a política tributária deve ser estabelecida sempre respeitando a função social do tributo.”
Assim como o Estado desempenha seu papel, é igualmente essencial reconhecer que o indivíduo tem a responsabilidade de contribuir para a comunidade por meio do pagamento de tributos. Esse dever é crucial para fomentar a reciprocidade e a solidariedade dentro da sociedade.
Da mesma forma, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, em seu voto na Repercussão Geral 601.314, foi claro ao afirmar que, tratando-se de um dever fundamental, a interpretação das normas e princípios que regulam a cobrança tributária não deve ser usada para isentar essa responsabilidade:
“Não há um direito subjetivo a fugir da incidência tributária, como alguns podem pensar. O Estado é um projeto coletivo, financiado pela contribuição de toda a Sociedade, e, portanto, o pagamento de tributos é um dever fundamental estabelecido constitucionalmente. Essa noção decorre diretamente da feição Fiscal assumida pelo Estado Contemporâneo e é a contrapartida ao elenco de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.”
Etapa da reestruturação
Embora a situação das empresas em crise seja relevante, não se pode considerar que a crise econômica justifique um direito de “impunidade” em relação à cobrança tributária. A crise não deve servir como base para adiar indefinidamente o pagamento das dívidas fiscais em favor da preservação da empresa.
Na verdade, mesmo em um cenário de recessão econômica, as empresas têm a obrigação de contribuir com a política tributária e buscar regularizar seu passivo fiscal. Para isso, é necessário o uso de novos mecanismos que evitem a irrecuperabilidade das dívidas e facilitem sua regularização.
A dívida tributária deve ser vista não como um obstáculo, mas como um componente essencial que exerce uma função social. Quando paga, ela representa uma etapa importante na recuperação da empresa e na superação da crise. Portanto, a busca pela preservação da empresa deve equilibrar-se com o cumprimento das obrigações tributárias, garantindo a efetiva cobrança dos créditos públicos enquanto se preserva a dignidade do devedor.
De acordo com Cândido Rangel Dinamarco, não se deve permitir que exageros na interpretação dos princípios comprometam a efetividade da tutela executiva. Um princípio não pode ser aplicado de maneira a esvaziar completamente o campo de incidência de outro sem fundamentos sólidos. Os princípios em conflito devem ser analisados conforme o contexto específico do caso.
Assim, a resolução para o conflito entre princípios será encontrada com base na análise das circunstâncias concretas do caso. A empresa em crise deve buscar a recuperação financeira por meio de um plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, enquanto o Fisco, mantendo seus direitos legítimos, continua a cobrar seus créditos tributários, inscrevendo-os em dívida ativa e ajuizando ações de execução fiscal.
Na prática, no entanto, os tributos costumam ser a primeira área a sofrer cortes durante uma crise, já que os devedores preferem atender a fornecedores, consumidores e empregados, adiando o pagamento das dívidas fiscais. Isso ocorre porque o Estado, por sua vez, parece mais capaz de lidar com a morosidade, sem ameaçar diretamente a continuidade das atividades da empresa.
Se o pagamento dos tributos é uma obrigação fundamental e exerce uma função social, não deveria ser uma prioridade também no processo de recuperação judicial? É possível que uma reestruturação que se concentre exclusivamente nos interesses dos credores privados, desconsiderando a situação do Fisco, seja efetiva?
Extraconcursalidade e dualismo
Conforme será detalhado no próximo tópico, a Lei de Recuperação Judicial, em seu texto original, estabelece que o crédito tributário é extraconcursal, não sujeito às negociações do processo e sua cobrança não é suspensa após a concessão da recuperação judicial. A lei, em seu artigo 57, exige a apresentação de certidões de regularidade fiscal para o prosseguimento da recuperação judicial, visando alinhar a superação da crise à regularização fiscal.
Assim, é evidente que a Lei nº 11.101/05 fez esforços para aproximar a relação entre o credor fiscal e as empresas em recuperação judicial. No entanto, esse esforço não tem sido correspondido pelos tribunais, que, com suas teses voláteis e conflitantes, acabam por reduzir o passivo tributário a uma “figura meramente decorativa” nos balanços das empresas em recuperação.
Isso resultou no chamado dualismo entre o crédito tributário e a recuperação judicial, caracterizando uma oposição entre dois institutos que, na prática, deveriam colaborar para alcançar um objetivo comum: a efetivação das dívidas fiscais, preservando ao mesmo tempo a empresa e cumprindo a função social de ambos.
Em vez de maquiar o problema, era necessário encontrar soluções reais. A situação exigia a criação de mecanismos que possibilitassem o soerguimento das empresas em crise, permitindo a recuperação de débitos considerados anteriormente insanáveis e promovendo a reaproximação entre o crédito tributário e as empresas recuperandas.
Com isso, o Fisco veria seus interesses efetivamente protegidos, enquanto a recuperação judicial deixaria de ser uma ferramenta para obter vantagens tributárias e passaria a cumprir seu papel de preservação empresarial de forma genuína.
Referência:
MACHADO, Hugo de Brito. Dívida Tributária e Recuperação Judicial da Empresa. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 120, p. 69-81, 2005.
DOMINGOS, Salete de Oliveira. A Função Social do Tributo sob o Enfoque do Princípio da Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 223.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
Fonte: Conjur.