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14-09-2016
Natureza jurídica do plano de recuperação judicial
Por Livia Gutierrez
A natureza do plano de recuperação judicial não é matéria tranquila entre os doutrinadores e estudiosos desse instrumento previsto pela Lei 11.101 de 2005. Isso porque, embora o procedimento recuperacional seja marcado pela participação judicial e fiscalização do Ministério Público em diversos momentos, ele redunda essencialmente na elaboração de um acordo amplo e de cumprimento conjunto, submetido à avaliação, votação e aprovação, ou não, pela maioria dos credores.
O plano conterá cláusulas que preveem, em alguns pontos, a disposição de direitos — muitas vezes a contragosto de alguns; em contrapartida, propõe-se solução eficiente para a recuperação da empresa em crise, cujo resultado deve ser a satisfação dos créditos através de uma estratégia sistematizada. O plano, instrumento crucial do processo de recuperação judicial, acompanhado do laudo econômico financeiro, é a ferramenta que demonstrará a viabilidade de recuperação da empresa.
A sua consecução significa a manutenção a credibilidade da recuperanda no mercado e, sobretudo, o exercício regular e das atividades empresariais, atendendo fielmente à função social da sociedade empresária.
Esses são alguns dos aspectos do procedimento previsto pela LRF que ultrapassam a esfera teórica da lei, influenciando em questões práticas durante o trâmite processual e levando à séria indagação acerca da natureza jurídica do plano de recuperação judicial.
Obviamente, não é adequado tratar o plano de recuperação judicial como instrumento estritamente contratual, distorção que se admite como natural dado o caráter negocial que permeia intensamente todo o procedimento.
Embora a homologação do plano deva pressupor a existência de todos os requisitos de um negócio jurídico [1] (agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita e não defesa em lei), os defeitos do negócio jurídico [2] (erro, dolo, coação, lesão, estado de perigo), eventualmente existentes nos contratos entre particulares, são de difícil aplicação no contexto da recuperação judicial, que definitivamente aplica o “critério da maioria”.
Veja-se a hipótese de cram down, por exemplo: ainda que o plano de recuperação judicial obtiver a discordância da maioria de uma das classes, poderá ser aprovado e homologado se apresentar voto favorável na maioria das demais classes. Portanto, em matéria de recuperação judicial é muito claro que o interesse de uma maioria de credores pode sobrepor-se ao da minoria. E não sem motivo: a mais atualizada doutrina interpreta a legislação falimentar e recuperacional sob o prisma da superação do dualismo pendular e consequente redistribuição equilibrada de ônus, o que fundamenta com tranquilidade o critério da maioria que assume determinados sacrifícios. E, por isso, também não é possível falar-se em princípio da liberdade contratual ou em pacta sunt servanda.
Esses são aspectos que, resumidamente, distanciam o plano de recuperação judicial da natureza contratual, principalmente para os credores que dele discordam.
Por outro lado, é inegável que o plano aprovado por uma maioria reflete a anuência expressa, manifestada pelo voto em assembleia, acerca das suas cláusulas e condições. E nesse ponto, o que o distancia de um contrato entre particulares é a sua sujeição ao controle de legalidade do Poder Judiciário, fundado na proteção do interesse público e na boa fé objetiva.
O controle de legalidade, amplamente admitido pela jurisprudência e previsto no Enunciado 44 da Primeira Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal [3], deve ser exercido ainda que haja quórum maciço de aprovação do plano. Isso porque da mesma maneira que um contrato entre particulares pode ser revisto e regulado pelo Judiciário quando apresentar ilegalidades, o plano não pode ser homologado se, por exemplo, contrariar noções principiológicas da Lei 11.101 de 2005, ou se a aprovação decorrer de abuso de direito.
Segundo Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli “o juiz deverá controlar a legalidade da assembleia. Vale dizer, o juiz deverá controlar a regularidade do procedimento de deliberação assemblear, verificando a regularidade do exercício do direito de voto pelos credores, bem como depurar do plano aprovado as cláusulas que não observem os limites legais” [4].
Por isso é importante definir o que é abuso de direito e, por consequência, abuso de voto em matéria de recuperação judicial, e em ambas as perspectivas: de credores e de devedores. O credor único que vota contra o plano, por exemplo, exerce seu direito de voto de maneira abusiva, assim como aquele que veementemente recusa-se a negociar com a devedora, exigindo a integralidade de seu crédito sem dar qualquer chance para diálogo.
Já na perspectiva da recuperanda, a compra votos, ou prática de ato que implique em simulação com a alteração da volição dos credores, representa comportamento abusivo, ilegal e, portanto, objeto de controle pelo Judiciário.
É possível contratar expressamente, entre particulares, renúncia de direitos. Entretanto, no contexto da recuperação judicial, determinadas disposições de direito não podem ser imposta aos dissidentes pelo voto da maioria. E daí torna-se importante a apuração casuística sobre o abuso de direito, de credor e devedora, para que se possa situar a atuação do Judiciário no controle da legalidade e, com isso, apurando-se após a natureza jurídica do plano e os limites de seus efeitos.
Entretanto, a interpretação da LRF deve sempre levar em conta a superação do dualismo pendular visando a proteção do interesse público consubstanciado na função social da empresa e de todos os seus consectários (manutenção de postos de trabalho, recolhimentos de tributos e desenvolvimento econômico nacional), absolutamente preponderantes.
Isto quer dizer que, independentemente da natureza jurídica que se atribua ao plano de recuperação judicial, interesses egoísticos de determinado ou determinados credores não devem ser prestigiados em detrimento do manifesto interesse da maioria, verificando-se não haver óbices em conclusões que possam até mesmo desdizer a literalidade da lei, como, por exemplo, no caso do artigo 94, alínea g, da LRF [5], desde que se atenda a finalidade maior da própria legislação, isto é, a recuperação da empresa em crise.
Fonte: Consultor Jurídico