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26-11-2023 

Não há aplicação do conceito de preço vil na falência

Em dezembro deste ano a Lei 14.112/2020 — que implantou uma ampla reforma na Lei 11.101/2005 — completará três anos. Embora, talvez, não seja mais possível fazer referência à "nova Lei 14.112" ou à "recente reforma à Lei 11.101" parece ser certo dizer que muito do que foi criado ou alterado pela reforma de 2020 ainda esteja em um período, digamos, de maturação.

Uma dessas significativas alterações que ainda está em uma fase inicial de experimentação pelo Poder Judiciário — e sem uma direção totalmente definida pela jurisprudência — é a eliminação do conceito de preço vil nos processos de falência [1], por meio do § 3º-A [2], do artigo 142, que foi incluído na Lei 11.101/2005 pela reforma, prevendo que a alienação por leilão eletrônico se dará em três chamadas, a primeira no mínimo pelo valor de avaliação, a segunda com valor mínimo de 50% da avaliação e a última por qualquer valor, sendo expressamente previsto no inciso V, do § 2º-A, também do artigo 142, que a alienação dos bens na falência "não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil".

 

Desde o primeiro contato com o referido dispositivo a nossa impressão sempre foi a de que, em sendo aplicada citada alteração, tem ela alto potencial de contribuir para a melhoria da eficiência nos processos falimentares. Aliás, por meio da devida alteração legislativa, isso também pode acontecer nos feitos cíveis em geral, pois a possibilidade de alienação por qualquer valor altera um dos maiores paradigmas de nosso sistema executivo.

E é justamente essa mudança de paradigma — que já é quase um dogma — que pode causar certa estranheza em uma primeira leitura do referido dispositivo. Afinal, seria correto admitir que o devedor seja submetido a um procedimento executivo no qual seus bens podem vir a ser alienados por "qualquer valor"? Uma análise mais detida sobre a questão, em suas várias camadas, parece sugerir uma resposta positiva.

A reforma de 2020, em relação ao procedimento da recuperação judicial, foi bastante ampla, realizando alterações muito variadas, como a possibilidade de apresentação de plano alternativo por parte dos credores, a positivação da constatação prévia e da consolidação processual e substancial, a possibilidade de realização de financiamento do devedor, o estabelecimento de procedimentos de conciliação e mediação antecedentes ou incidentais às recuperações judiciais, dentre muitas outras alterações.

Já em relação ao procedimento falimentar, embora também abrangendo muitos dispositivos, a reforma foi bem mais restrita em relação aos objetivos: concentrou-se ela, principalmente, em relação à busca por eficiência [3] em referidos feitos, isso tanto envolvendo a tentativa de otimizar melhor os recursos como a maior celeridade, incluindo aí a tentativa de impor desfechos mais rápidos, especialmente em se tratando de casos infrutíferos. Daí alterações como a possibilidade de extinção sumária da falência — que existia no Decreto-Lei 7.661/1945, mas que havia sido extinta pela redação originária a Lei 11.11/2005 —, a eliminação do conceito de preço vil, a obrigatoriedade imposta ao administrador judicial de realizar o ativo em 180 dias após a lavratura do auto de arrecadação, a previsão de que as obrigações do falido serão extintas após três anos da decretação da falência etc.

Ao lado da inaplicabilidade do preço vil aos feitos falimentares está o dever de os ativos serem alienados — independentemente de eventual conjuntura de mercado e da consolidação do quadro de credores — em até 180 dias. São alterações que dialogam entre si e que devem ser lidas dentre de todo o contexto normativo criado pela reforma de 2020.

Não se pode esquecer que quando um bem é alienado por "qualquer valor" em um processo de falência é porque ninguém se candidatou a pagar o valor tido como sendo "o de mercado", muitas vezes revelando, inclusive, uma avaliação que superestimou o valor do bem [4]. E isso deve acontecer justamente para que as falências não sigam mais se procrastinando por tempo indeterminado. Conforme escreve Fábio Ulhoa Coelho que: "Se foram adotados os meios e procedimentos para que os bens alcancem o valor de mercado, mas isso acabou não acontecendo, a venda deles por qualquer valor é reconhecidamente uma solução mais adequada, ao concurso falimentar, do que a reiteração de tentativas frustradas" [5].

O que a reforma de 2020 fez foi trocar o certo — o valor ofertado pelo bem ainda que abaixo de 50% da avaliação — pelo duvidoso, que seria a expectativa de, em um outro leilão ou em uma outra conjuntura de mercado, o bem pudesse vir a ser alienado por quantia superior. Não bastasse a álea que envolve essa troca, ela também representa mais gastos, tanto com a conservação do bem quanto com a prática de atos processuais necessários à sua alienação, fora as intermináveis discussões em torno do valor de avaliação e o risco de perecimento ou deterioração da coisa.

Segundo Marcelo Sacramone [6]: "Diante das peculiaridades do procedimento falimentar e de recuperação, medidas céleres para a liquidação dos ativos podem ser exigidas em razão da conservação dispendiosa dos bens, risco de perecimento ou deterioração das coisas, em razão de os ativos não serem relevantes para o desenvolvimento da atividade e necessitarem ser liquidados para reverter o produto para a manutenção da atividade principal com urgência, ou pela inexistência de interessados, notadamente diante do estigma ainda existente em face de bens da Massa Falida e que tem afugentado os interessados das aquisições. O preço vil não é aplicado em função desse caráter forçado da venda e da celeridade exigida e que compete à liquidação célere, ainda que em detrimento da conjuntura do mercado no momento da venda".

Por isso, a afirmação acima na qual a reforma implicou em uma verdadeira mudança de paradigma não é mera retórica e pode ser comprovada também pela própria mudança que se fez em relação aos princípios falimentares [7], deixando expresso que, dentre outras coisas, a falência visa "permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia".

É certo, portanto, dizer que não se quer mais processos de falência intermináveis, em que comumente dada a demora os ativos simplesmente se deterioravam. Daí, dentre muitas outras alterações, a eliminação do conceito de preço vil em relação aos feitos falimentares [8].

É muito importante, também, deixar claro que a alienação "a qualquer preço" não implica em "dar de graça" o bem ou em violação aos interesses do falido e seus sócios. Se por um lado a reforma de 2020 afastou da falência a aplicação do preço vil, por outro criou mecanismos que visam salvaguardar os interesses do devedor.

De acordo com artigo 143, caput e § 1º, da Lei 11.101/2005 [9], são admitidas impugnações contra a arrematação as quais, se versarem sobre o valor da alienação, deverão ser acompanhadas de oferta do impugnante ou de terceiro para a aquisição do respectivo bem, pelo valor presente superior ao valor de venda, acompanhado de depósito caucionário equivalente a 10% sobre o valor oferecido.

Ou seja, se se entender que o valor da alienação foi demasiadamente baixo, é possível que ela não seja perfectibilizada e que o bem seja alineado a outro interessado que se prontifique a pagar mais do que havia sido oferecido pelo lance ganhador do certame.

Por meio de tal mecanismo, a reforma de 2020 garantiu a defesa do devedor contra eventual alienação por valores (comprovadamente) irrisórios — já que, existindo interessado em pagar mais, comprova-se que o valor de venda foi realmente baixo. No entanto, não se deve mais admitir defesas vazias ou meramente protelatórias, sob a alegação genérica de que a alienação se deu por "preço vil" ou por valor irrisório. Ao contrário, deve ser ela escorada em proposta firme de interessado a pagar mais do que o valor da arrematação, bem como acompanhada por caução de 10% do valor ofertado.

Manoel Justino Bezerra Filho [10] também celebra referida alteração: "Embora o inc. V do parágrafo 2º-A do art. 42 estabeleça que a alienação não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil, ainda assim a lei aqui permite a impugnação baseada no valor de venda do bem, o que indiretamente poderá propiciar a alegação de preço vil, mesmo que com outra denominação. Andou bem a lei ao exigir, como condição de recebimento da impugnação, a oferta firme de preço para aquisição do bem por valor superior ao da venda, com depósito equivalente a dez por cento do valor oferecido".

E aqui se identifica uma outra mudança bastante significativa. Por meio dela, o devedor passa a ter que exercer uma postura mais proativa nos feitos falimentares. Deixa de ser um mero expectador ou um ator cujo propósito seja procrastinar o feito — duas posturas, infelizmente, também muito comuns nas execuções individuais — e passa a ser um agente que também deve promover o andamento do feito e a sua maior eficiência. Ou seja, com isso, o devedor passa a ser alguém que também vai fomentar a celeridade e a eficiência, ajudando a romper com a cultura de defesas meramente protelatórias.

No todo, portanto, a possibilidade de se realizarem alienações "a qualquer preço" nos processos falimentares parece algo muito positivo, seja por mudar um dos mecanismos que, na prática, não têm levado a alienação por valores mais altos, seja por implicar em uma mudança de postura dos devedores, ambas contribuindo muito para a celeridade, otimização dos recursos e eficiência dos processos. Quem sabe, a depender de como esta mudança repercuta no ambiente falimentar, não migre também — mediante alteração legislativa — para as execuções individuais que tramitam sob a égide do Código de Processo Civil.

 

 

[1] Embora já seja possível identificar alguns julgados favoráveis à alienação por "qualquer preço": "ALIENAÇÃO – Alegação de ofensa ao princípio da efetividade por arrematação por preço inferior ao de avaliação – Reforma promovida pela Lei nº. 14.112/20 que privilegiou a celeridade em detrimento do valor atribuído ao bem da falida – Conceito de preço vil que não se aplica ao processo falimentar atual – Decisão escorreita nos termos do art. 142, §3º, incisos, da Lei 11.101/05 – Recurso improvido" (TJ-SP; Agravo de Instrumento 2280123-35.2021.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 20/10/2022; Data de Registro: 20/10/2022).

[2] Artigo 142, § 3º-A: "A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á:
I – em primeira chamada, no mínimo pelo valor de avaliação do bem;
II – em segunda chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da primeira chamada, por no mínimo 50% (cinquenta por cento) do valor de avaliação; e
III – em terceira chamada, dentro de 15 (quinze) dias, contados da segunda chamada, por qualquer preço
."

[3] Essa busca por maior eficiência já foi reconhecida por acórdão do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo: "FALÊNCIA – Realização do ativo – Arrematação do imóvel da falida por preço equivalente a 10% do valor da avaliação – Possibilidade – Exaurimento das tentativas de alienação por preços mais próximos ao da avaliação em duas praças – Alienação frustrada – Impossibilidade de reabertura do certame – Conceito de preço vil que não se aplica ao processo falimentar atual – Decisão que deve ser reformada visando a proteção do direito do arrematante e a celeridade na realização do ativo – Inteligência do art. 142, § 2º-A, inciso V e § 3º, incisos, da Lei 11.101/05 – Aprovação da arrematação que deve seguir o critério da estrita legalidade – Exegese do art. 142, §3º-B, inciso III da Lei 11.101/05 – Recurso provido.” Do texto do voto do relator, destaca-se: “no regime falimentar, a noção do preço vil do CPC não se aplica, de modo que o comprador interessado pode pagar qualquer preço pelo bem, em homenagem à eficiência da realização o ativo". (TJ-SP, Agravo de Instrumento 2134903-69.2022.8.26.0000; Relator (a): J. B. Franco de Godoi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Itu – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/10/2022; Data de Registro: 20/10/2022)

[4] Segundo Fábio Ulhoa Coelho, "Mostra-se uma verdadeira ilusão, altamente prejudicial aos interesses envolvidos no concurso falimentar, o apego obstinado a qualquer valor atribuído aos bens na avaliação ou avaliações feitas no processo judicial" (Comentários à Lei de Falência e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 466.).

[5] Comentários à Lei de Falência e de Recuperação de Empresas. 14ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 466.

[6] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 2.a edição, São Paulo: Saraiva, 2021, p. 577.

[7] "Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a:

I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa;

II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e

III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.

§ 1º. O processo de falência atenderá aos princípios da celeridade e da economia processual, sem prejuízo do contraditório, da ampla defesa e dos demais princípios previstos na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 2º. A falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia."

[8] "AGRAVO DE INSTRUMENTO. FALÊNCIA. A decisão recorrida rejeitou o pedido de declaração de nulidade formulado pelo recorrente e acolheu a proposta de arrematação condicional de bens imóveis trazida pela Leiloeira Oficial. Inconformismo do credor. Ativos leiloados em terceira chamada. Inexistência de preço mínimo. Inaplicabilidade do conceito de preço vil, insculpido no art. 891 do CPC. Inteligência do art. 142, §3º-A, inciso III, da Lei nº. 11.101/05. Reforma legislativa que visa à desburocratização e a celeridade na realização do ativo da falida. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO." (TJ-SP, Agravo de Instrumento 2177369-15.2021.8.26.0000; relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça – 2ª Vara; Data do Julgamento: 27/7/2022; Data de Registro: 27/7/2022)

[9] "Artigo. 143. Em qualquer das modalidades de alienação referidas no art. 142 desta Lei, poderão ser apresentadas impugnações por quaisquer credores, pelo devedor ou pelo Ministério Público, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas da arrematação, hipótese em que os autos serão conclusos ao juiz, que, no prazo de 5 (cinco) dias, decidirá sobre as impugnações e, julgando-as improcedentes, ordenará a entrega dos bens ao arrematante, respeitadas as condições estabelecidas no edital.

§ 1º. Impugnações baseadas no valor de venda do bem somente serão recebidas se acompanhadas de oferta firme do impugnante ou de terceiro para a aquisição do bem, respeitados os termos do edital, por valor presente superior ao valor de venda, e de depósito caucionário equivalente a 10% (dez por cento) do valor oferecido.

§ 2º. A oferta de que trata o § 1º deste artigo vincula o impugnante e o terceiro ofertante como se arrematantes fossem

§ 3º. Se houver mais de uma impugnação baseada no valor de venda do bem, somente terá seguimento aquela que tiver o maior valor presente entre elas.

§ 4º. A suscitação infundada de vício na alienação pelo impugnante será considerada ato atentatório à dignidade da justiça e sujeitará o suscitante à reparação dos prejuízos causados e às penas previstas na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para comportamentos análogos."

[10] BEZERRA FILHO, Manoel Justino, Lei de recuperação de empresas e falências. 15.a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 502.

 

Fonte: Conjur.

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