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08-05-2023
Julgamento da ADPF 357 tornou letra morta parte final do artigo 84, V, da LREF?
A ordem de preferência para pagamento dos créditos sujeitos ao regime concursal falimentar é disposta em dois relevantes dispositivos da Lei nº 11.101/2005 (LREF ou Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência): o artigo 83, que traz a ordem de classificação geral (créditos concursais), e o artigo 84, que elenca os créditos que preferem aos do dispositivo anterior (chamados extraconcursais).
Os créditos de natureza tributária, conforme prenuncia a LREF, supostamente ocupam a terceira posição na ordem dos concursais, ficando atrás apenas dos trabalhistas limitados a 150 salários mínimos (inciso I) e daqueles gravados com direito real de garantia (inciso II). As multas tributárias (inciso VII), a seu turno, são pagas somente depois de quitados os quirografários.
Por outro lado, o artigo 84, inciso V (com redação dada pela Lei n.º 14.112/2020), determina que são extraconcursais, ou seja, possuem prioridade com relação aos créditos do artigo 83, os "tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83".
Frente a esta disposição, é possível compreender, sem maiores dificuldades, que os tributos originários de "fatos geradores" anteriores à quebra se submetem à ordem dos concursais (artigo 83, III), enquanto que os originados após o decreto falimentar devem ser quitados na fila dos extraconcursais (artigo 84, V).
Todavia, a parte final da norma comporta o seguinte questionamento: por qual razão o legislador prescreveria no inciso V do artigo 84 que a ordem estabelecida no artigo 83 — isto é, dos créditos concursais — deveria ser respeitada para o pagamento dos tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da quebra?
Se o caput do artigo 84 expressamente consigna que os créditos listados neste dispositivo são extraconcursais, por qual razão respeitar a ordem do artigo 83? Trata-se de mera imperfeição da redação ou há um motivo específico para isto?
De pronto se adianta que a Lei Falimentar não fornece resposta objetiva à indagação. Entretanto, partindo-se da análise teleológica e sistemática da norma com relação ao que dispõem o Código Tributário Nacional (CTN), a Lei de Execuções Fiscais (LEF) e a jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF nº 357, em 24/6/2021, vislumbra-se a possível justificativa para tanto.
Até o momento em que a LREF foi alterada pela Lei nº 14.112, de 24/12/2020, as normas previstas nos parágrafos únicos do artigo 187 do CTN e do artigo 29 da LEF ainda estavam plenamente válidas. Referidos enunciados prescreviam que os créditos fiscais da União teriam preferência aos dos estados e Distrito Federal, enquanto estes teriam privilégio relativamente aos dos municípios. Noutras palavras, os dispositivos estabeleciam a ordem de pagamento entre os créditos desta natureza.
Poder-se-ia interpretar, portanto, que a obediência da ordem de pagamento do artigo 83, LREF, mencionada na parte final do artigo 84, V, tratava justamente desta questão. A norma estaria esclarecendo que, dentre os tributos originados após a decretação da falência, inicialmente deveriam se pagar os federais, na sequência os estaduais/distrital e, por fim, os municipais.
Inclusive, pelas normas contábeis (as quais naturalmente não prevalecem diante da lei), elaboradas pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), adotou-se justamente essa interpretação. No pronunciamento destinado às entidades em liquidação, aprovado em 5/3/2021, entendeu-se que o artigo 84, V, apenas elencaria a preferência entre as pessoas políticas[2]:
PASSIVOS
Passivos Extraconcursais - Art 84
Art. 84 - I – A - Despesas essenciais da Massa (art. 150)
(...)
Art. 84 - V - Créditos Tributários - Fatos Geradores após a Decretação Falência
Tributos Federais
Tributos Estaduais
Tributos Municipais
Art. 84 - V - Multas - Fatos Geradores após a Decretação Falência
Multas Tributárias Federais
Multas Tributárias Estaduais
Multas Tributárias Municipais
Ocorre que, apesar de se compreender que esta seria a mens legis e até mesmo a mens legislatoris, fato é que a parte final do artigo 84, V, perdeu a sua razão de ser com o julgamento da já citada ADPF n.º 357 pelo STF. Isso porque a Excelsa Corte declarou, no dia 24/06/2021, que os parágrafos únicos dos artigos 187, do CTN, e 29, da LEF não foram recepcionados pela Constituição de 1988, sob o fundamento de que os créditos fiscais da União, dos estados e dos municípios teriam o mesmo status constitucional, não havendo preferência de um em relação ao outro, com base nos princípios federativo e da autonomia municipal.
Dessa forma, entende-se que, a partir da análise da ADPF n.º 357, tornou-se letra morta a redação que determinava a observância da ordem estabelecida no artigo 83, LREF, para pagamento dos tributos pós falimentares.
Por outro lado, também é importante observar a menção na parte inicial do artigo 84, V, de que os tributos originados após a decretação da falência é que são extraconcursais.
Ora, tratando-se tão somente de tributos, não deve ser classificada como extraconcursal qualquer multa decorrente do não pagamento de obrigação tributária, de modo que essa última não deve ser considerada na ordem do artigo 84, V, LREF — ao contrário do que consta no Pronunciamento Contábil acima citado —, ainda que gerada após a falência.
É que, apesar de tributo e multa tributária possuírem certas semelhanças — são prestações pecuniárias compulsórias impostas pelo ente público —, fato é que são figuras distintas. Enquanto aquele decorre de um fato lícito e tem por objetivo gerar receita, conforme preceitua o artigo 3º do CTN, a multa advém de um ato ilícito com a função de penalizar aquele que contrariou uma regra.
Essa interpretação, aliás, é reforçada pelos enunciados do artigo 83 da LREF, os quais estabelecem, de forma bastante clara, a ordem de pagamento do crédito tributário (inciso III) e da multa tributária (inciso VII).
Evidente, portanto, que, no momento da classificação dos créditos falimentares, o administrador judicial, a própria falida, os entes públicos e os demais credores interessados nos ativos da massa, devem estar atentos a essas colocações, a fim de evitar algum equívoco na classificação dos créditos, notadamente se houver embasamento no pronunciamento contábil anteriormente mencionado.
Fonte: Conjur.