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07-08-2020
(I)legalidade no deságio dos créditos trabalhistas na recuperação judicial na mira do STJ
Apontada como um dos objetivos da Recuperação Judicial de Empresas, a manutenção dos empregos dos trabalhadores e a preservação da função social da empresa demonstram de forma expressa a intenção do legislador de não deixar de lado os aspectos sociais que permeiam as relações econômicas.
Como destaca Marcelo Mauad a crise empresarial afeta a todos com quem a empresa se relaciona e, em especial, gera “importantes reflexos” nos direitos e na própria vida dos trabalhadores envolvidos. Esta íntima relação deu aos créditos trabalhistas uma proteção especial do legislador que, dentre outras coisas, os colocou em uma classe autônoma e limitou o prazo para o pagamento das verbas em 12 meses.
A inclusão dos créditos trabalhistas na recuperação foi uma inovação da lei 11.101/05 em relação à concordata e que àquele tempo já gerou uma resistência em parte da doutrina, sob o argumento de que tal inclusão violaria o direito à dignidade da pessoa humana. Quinze anos depois, não só a permanência dos créditos trabalhistas na recuperação judicial está consolidada, como ainda é possível verificar uma perigosa tendência de relativização da proteção que já não era muita.
Como em toda flexibilização, o afrouxamento das garantias dos direitos dos trabalhadores na recuperação da empresa não aconteceu como uma ruptura, mas com um passo de cada vez. Primeiro houve inclusão dos créditos de honorários advocatícios de pessoa física ao lado dos créditos trabalhistas strictu sensu. Posteriormente foi ampliada a interpretação para permitir que quaisquer honorários advocatícios, mesmo aqueles devidos à sociedade de advogados, fossem incluídos na classe dos trabalhistas. Com estas inclusões, diante da abissal diferença de valores entre as verbas devidas aos empregados e ex-empregados e alguns honorários de advocatícios, o prazo de 12 meses da lei passou a ser um problema maior e, como solução, passou-se a aceitar a possibilidade de se estabelecer um teto para o tratamento privilegiado (pagamento em 12 meses), removendo o excedente para a classe dos quirografários.
Essa possibilidade sedimentou-se no TJSP após ganhar, em março/20, o status de Enunciado do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial:
ENUNCIADO XIII: “Admite-se, no âmbito da recuperação judicial, a aplicação do limite de 150 salários mínimos, previsto no art. 83, I, da Lei nº 11.101/2005, que restringe o tratamento preferencial dos créditos de natureza trabalhista (ou a estes equiparados), desde que isto conste expressamente do plano de recuperação judicial e haja aprovação da respectiva classe, segundo o quórum estabelecido em lei.”
O enunciado segue a linha do precedente de fevereiro de 2019 da 3ª turma do STJ no julgamento do REsp 1.649.774/SP 2017/0015850-3, com relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual ficou consignado que seria possível o estabelecimento de tetos para o pagamento em 12 meses dos créditos trabalhistas ou equiparados, tratando o valor excedente como quirografário:
“RECURSOS ESPECIAIS. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (...) 3. ESTABELECIMENTO DE PATAMARES MÁXIMOS PARA QUE OS CRÉDITOS TRABALHISTAS E EQUIPARADOS TENHAM UM TRATAMENTO PREFERENCIAL, CONVERTENDO-SE, O QUE SOBEJAR DESSE LIMITE QUANTITATIVO, EM CRÉDITO QUIROGRAFÁRIO. LICITUDE DO PROCEDER. 4. RECURSOS ESPECIAIS IMPROVIDOS.”
Na fundamentação de tal decisão resta evidenciada a posição da Corte em aceitar a aplicação analógica do limite do artigo 83, I para a recuperação judicial, desde que aprovado a classe dos credores trabalhistas:
“Para esse propósito, ressai absolutamente possível o estabelecimento de patamares máximos para que os créditos trabalhistas (ou a eles equiparados) tenham um tratamento preferencial, definido pela lei, no caso da falência (art. 83, I, da LRF), ou, consensualmente, no caso da recuperação judicial, convertendo-se, o que sobejar desse limite quantitativo, em crédito quirografário.”
Aceitar tal redução tratar-se-ia, no dizer o relator, de garantir o que chama de “desejável, senão necessária” equalização dos direitos e interesses de todos os envolvidos. Seria uma forma de garantir a proteção do privilégio daqueles credores “que se encontram em situação de maior debilidade econômica e possuem como fonte de sobrevivência, basicamente, a sua força de trabalho” e que, para isso, seria importante “abarcar o maior número de pessoas que se encontrem em tal situação”.
Ocorre que, ao aceitar que parte dos créditos trabalhistas seja paga da mesma forma dos quirografários, o STJ permite não só que se ampliem os prazos para o pagamento, como permite a existência de deságios sobre esses valores, o pagamento por meio de debêntures ou qualquer condição que a criatividade negocial seja capaz de inventar, eis que não há nenhum tipo de proteção para os créditos dessa classe.
Seguindo o movimento de flexibilização da proteção do crédito trabalhista, em junho deste ano o STJ deu mais um passo no sentido da legalidade do deságio, autorizando – ainda que em caráter precário – o prosseguimento de um plano que previa um desconto de 60% dos créditos trabalhistas em uma Recuperação Judicial na qual 54,5% de todos os créditos é trabalhista.
Assim decidiu o ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas:
“(...)Como se vê do dispositivo transcrito, não existe, a princípio, óbice para o pagamento do crédito trabalhista com deságio, tampouco se exige a presença do Sindicato dos Trabalhadores para validade da votação implementada pela Assembleia Geral de Credores. Ademais, no caso dos autos, o requisito exigido no artigo 54 da LRF para o pagamento dos créditos trabalhista no prazo de 1 (um) ano foi atendido”
A decisão ainda deixa aberta a necessidade de uma “melhor análise na apreciação do recurso”, mas já aponta para seu posicionamento inicial no sentido da “possibilidade de pagamento do crédito trabalhista com deságio sem a participação do sindicato da categoria na assembleia de credores”.
E este é um entendimento equivocado, porque qualquer interpretação não literal evidência que o deságio dos créditos trabalhistas está proibido.
Primeiro, porque ele viola o artigo 7º da Constituição Federal que elenca de forma exemplificativa alguns direitos dos trabalhadores, e diz que são admitidos “outros (direitos) que visem à melhoria de sua condição social”, de modo que uma interpretação que piore a condição social do empregado não estará de acordo com o comando constitucional, especialmente se se tratar de uma decisão tomada sem a participação sindical, a qual é exigida para negociações com os empregados que resultem em redução de direitos.
Se isso não bastasse, a interpretar uma norma que atinge os trabalhadores deve ser pautada pelos Princípios do Direito do Trabalho e o mais basilar de todos é o Princípio da Proteção, do qual uma das vertentes é o Princípio da Norma mais Favorável. Segundo esse Princípio, o operador do Direito deve optar pela regra que seja mais favorável ao empregado em três situações distintas: na elaboração da norma; na hierarquização das normas e na interpretação da regra jurídica.
Nesse sentido, imaginar que a dilação do prazo de 12 meses é ilegal, mas que a redução do valor não é, é interpretar o dispositivo de uma forma a prejudicar o trabalhador, o que é vedado pelo Direito do Trabalho.
Considerando os aspectos históricos, a interpretação trazida pelo ministro também não encontra respaldo. É evidente que a lei de 2005 não vedava o deságio dos créditos trabalhistas, porque era algo impensável naquele momento, uma vez que o modelo anterior (concordata) sequer autorizava o parcelamento dos créditos trabalhistas. A possibilidade de pagar o crédito (total, à evidência) em até 12 vezes foi um “avanço” tão grande que não era necessário expressar que o parcelamento seria do valor integral.
A preocupação com os trabalhadores esteve muito presente durante as discussões no Congresso da lei 11.101/05 e, dentre os 12 Princípios constantes do relatório do senador Ramez Tebet como adotados na análise do projeto de lei que resultou na referida lei, Rubens Approbato Machado cita o Princípio da Proteção aos Trabalhadores:
Os trabalhadores devem ser protegidos, com a precedência no recebimento de seus créditos na falência e na recuperação judicial, e devem ser instrumentos, na manutenção da empresa, capazes de preservar seus empregos e criar novas oportunidades àqueles que se encontram desempregados.
Nota-se que a precedência no recebimento de seus créditos – e não de parte deles – é anterior à manutenção da empresa que preservará seus empregos. E não é por acaso. É que o risco do negócio é do empregador e não do empregado. Qualquer interpretação diferente disso viola o artigo 2º da CLT, o qual define empregador como aquele que “assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
Admitir o deságio no crédito do trabalhador transfere a ele uma obrigação que não é e não pode ser sua. O empregado aliena sua vida ao empregador em troca do pagamento de seu salário, do qual depende a sua subsistência e a subsistência de sua família. Admitir que este salário já vencido possa ser pago com um desconto em nome da recuperação de uma empresa com a qual este trabalhador talvez nem tenha mais relação é criar uma nova forma de financiamento empresarial a juros zero, em que os financiadores são os trabalhadores e suas famílias, os quais, muitas vezes, precisaram ir buscar dinheiro no sistema financeiro para viver nos momentos que antecederam a aprovação do plano.
Por fim, ainda dentro da análise da legalidade da cláusula que autoriza o deságio dos créditos trabalhistas, é preciso fazer uma interpretação lógica, dentro da qual não faz nenhum sentido haver uma limitação para a quantidade de parcelas do pagamento dos créditos trabalhistas se for possível reduzir seu valor.
Se o fundamento ventilado na decisão da tutela de urgência que aqui se analise for mantida, o Poder Judiciário autorizará que o plano de recuperação de empresas pague 40% do valor do crédito trabalhistas em 12 meses, porque só seria ilegal se o pagamento – ainda que de 100% - fosse feito em mais tempo. Definitivamente, não faz sentido nenhum e é um precedente absolutamente perigoso.
Mais perigosa e completamente inconstitucional é a possibilidade de permitir qualquer deságio sem a participação do sindicato profissional.
Se a Constituição Federal e a própria LRF exigem negociação coletiva para redução de salário dos empregados ativos – os quais possuem interesse direto na manutenção da atividade empresária para potencial manutenção do próprio emprego e que possuem o direito de pedir demissão se não quiserem trabalhar pelo novo salário acordado – não é possível imaginar que a participação sindical seria dispensável para autorizar a redução de verbas salariais por trabalho já realizado para uma empresa cuja recuperação pode não representar nenhum benefício direto ao trabalhador cujo crédito será reduzido. Parafraseando o velho jargão: quem não pode o menos, também não pode o mais.
Não se nega que são muitas as necessidades de melhoria do sistema da recuperação judicial e que momentos de crise estressam todos os sistemas que lidam com a crise empresarial, exigindo que todos os players utilizem toda a sua criatividade para auxiliar na superação dessa crise. Entretanto, esse cenário não pode servir de cortina de fumaça para se permitir ilegalidades e para usurpar direitos de terceiros. É exatamente em momentos de crise que os cidadãos precisam do Estado de Direito que os proteja.
Felizmente a decisão proferida o foi em caráter precário, pelo que se espera da “melhor análise na apreciação do recurso” que o Superior Tribunal de Justiça atente para as questões aqui levantadas e faça jus à confiança que todo os trabalhadores depositam no Poder Judiciário para garantia do exercício de seus direitos.
Para salvar a empresa em crise não é possível atropelar direitos de terceiros no caminho. O fim deve ser lícito, mas o meio de atingi-lo também.
Fonte: Migalhas