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29-04-2021
Garantia pessoal e plano dos credores
Tema tormentoso para concedentes de crédito em geral, um novo capítulo se iniciou acerca das garantias pessoais (fidejussórias) prestadas por terceiros em favor de empresas em recuperação judicial. Até pouco tempo, vigorava, sem grande dificuldade, a tese estabelecida na Súmula n° 581 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela qual “[a] recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória”.
Esse entendimento tem por racional as normas dos artigos 49, parágrafo 1º, 50, parágrafo 1º, e 59 da Lei nº 11.101/05 (LRE), no sentido de preservar as garantias dos credores, independentemente da novação proposta pela aprovação de plano de recuperação judicial. A jurisprudência majoritária, aliás, havia se posicionado contra a liberação da garantia, ainda que aprovado plano de recuperação judicial com disposição contrária, caso não tenha o credor garantido a ela renunciado expressamente (v.g. TJ-SP, 1ª C. Empresarial, AI nº 2189258-68.2018.8.26.0000).
Percebendo os credores que a garantia pessoal dos sócios passou a ter pouca valia, o plano alternativo passa a ser um caminho natural.
A matéria não parecia demandar maiores digressões, inclusive por força da norma do artigo 114 do Código Civil - a renúncia de direito se interpreta estritamente. Logo, não seria adequado que um credor pudesse perder a sua garantia porque dragado por uma maioria dissidente quando da deliberação sobre o plano de recuperação judicial. A bem da verdade, impor a vontade da maioria nessa hipótese viola o princípio da boa-fé objetiva, uma vez que autorizaria credores concorrentes entre si a renunciar direito alheio, além das regras atinentes ao mandato.
Nesse sentido, perfeito é o entendimento de Marcelo Barbosa Sacramone, para quem, “como nem todos os credores possuem as suas obrigações garantidas da mesma forma, a votação pela maioria não vincula a minoria, pois, nesse ponto, os credores não participam da mesma comunhão de interesses” (in Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 270).
Contudo, esse posicionamento parece encontrar nova resistência, inclusive da 3ª Turma do STJ, de forma a fazer valer a supressão da garantia quando assim previsto no plano aprovado, ainda que sem o consentimento do credor garantido (v.g. REsp 1532943/MT, 1700487/MT, 1863842/RS, entre outros). É certo que em ditos julgados não houve unanimidade, de maneira que não há ainda como se defender do surgimento de uma nova orientação jurisprudencial. Além disso, pouco se debateu, no tocante às garantias fidejussórias, sobre uma excepcionalidade inerente à garantia do aval, qual seja, a sua autonomia, pelo que a novação do crédito do devedor em recuperação judicial não seria suficiente para anular o aval prestado por terceiro (vide artigo 899, parágrafo 2º, do Código Civil).
Mas, afinal, quem efetivamente se beneficia com a tese da supressão da garantia? Pela lógica, essa pessoa seria a do garantidor que, na maior parte das vezes, é o próprio sócio e controlador da empresa recuperanda. Disso já se percebe que a revogação da garantia não está em consonância com o princípio da preservação da empresa. Ao contrário, já que a alteração da regra do jogo acaba por contrariar a segurança jurídica da operação de garantia e a análise de mitigação do risco realizada no momento da concessão do crédito, o que impacta diretamente na imagem da recuperanda para o mercado como um todo.
Em suma, aquela pessoa que não venha a ter bens passíveis de garantia real muito dificilmente contará com a possibilidade de obter crédito no mercado, ou mesmo para renegociar e alongar o cumprimento de suas dívidas. A garantia fidejussória perde quase que totalmente a sua razão de ser para a concedente de crédito e, consequentemente, prejudica a circulação de riqueza no país.
Entretanto, pouco ou nada se tem falado sobre a enorme perda do poder de barganha da recuperanda caso a jurisprudência passe a orientar a supressão da garantia fidejussória.
Explica-se. Diante da recente alteração à LRE promovida pela Lei nº 14.112/20, passaram os credores a ter o direito de apresentar um plano alternativo de recuperação judicial na hipótese de perda de prazo ou rejeição do plano formulado pela recuperanda. Contudo, muito se tem falado que a alteração seria inócua, na medida em que os credores, para aprovarem esse plano alternativo, teriam que renunciar às garantias pessoais prestadas pelos sócios da recuperanda (LRE, artigo 56, parágrafo 6º, V).
Esse receio da perda da garantia, entretanto, pode ser apaziguado com o entendimento jurisprudencial em favor da supressão da garantia fidejussória. Afinal, percebendo os credores que a garantia pessoal dos sócios passou a ter pouca valia, em função do elevado risco de sua perda durante o processo de recuperação judicial, o plano alternativo passa a ser um caminho natural.
Na falta de uma moeda de troca mais impactante, não seria equivocada a conclusão de que os credores, sobretudo os financeiros, se organizarão em todo e qualquer processo para compor uma maioria em proveito de um plano de pagamento condizente com os seus exclusivos interesses, em detrimento da própria recuperanda.
Portanto, caso a jurisprudência caminhe contra a manutenção e eficácia das garantias fidejussórias, altera-se significativamente o pêndulo negocial em favor dos credores, cujo plano alternativo não depende de qualquer anuência dos sócios da recuperanda.
Fonte: Valor Econômico