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22-09-2025
Garantia fiduciária em xeque: Pode o credor consolidar a propriedade durante o stay period na recuperação judicial?
Este artigo analisa a controvérsia jurídica em torno da possibilidade de consolidação da propriedade fiduciária durante o período de suspensão das ações e execuções (stay period) previsto no art. 6º da lei 11.101/05 (lei de recuperação judicial e falência). A problemática gira em torno do conflito entre o direito de propriedade do credor fiduciário e o princípio da preservação da empresa.
Em que pese a lei de recuperação judicial/extrajudicial e falências tenha expressamente excluído do regime concursal os créditos garantidos por alienação fiduciária, conferindo-lhes tratamento privilegiado diante da titularidade da propriedade fiduciária, o legislador estabeleceu importante ressalva em seu art. 49, § 3º1. Nesse ponto, visando equilibrar o exercício do direito de propriedade com a necessidade de preservar a atividade empresarial, a norma assegura a manutenção da posse direta do bem essencial com o devedor, impedindo sua retirada ou venda durante o período de blindagem previsto no art. 6º.
Diante dessa disposição legal, emergiram diversos questionamentos que vêm sendo objeto de análise pela doutrina e pela jurisprudência pátria, especialmente no que tange à aparente antinomia entre o direito real de propriedade do credor fiduciário e o princípio de preservação da empresa.
De um lado, argumenta-se que impedir o exercício pleno do direito do credor fiduciário esvaziaria a eficácia da garantia, gerando insegurança jurídica e desestímulo à concessão de crédito. De outro, sustenta-se que permitir a consolidação da propriedade durante o stay period comprometeria os esforços de reestruturação empresarial, ao subtrair da recuperanda bens que, muitas vezes, são essenciais à continuidade de suas atividades.
A alienação fiduciária é um instituto de natureza real, concebido para assegurar o cumprimento de uma obrigação mediante a transferência da propriedade resolúvel do bem do devedor (fiduciante) ao credor (fiduciário). Sua essência repousa na dissociação entre a titularidade formal - que é transmitida ao credor a título de garantia - e a posse direta, que permanece com o devedor até o adimplemento da obrigação.
Em caso de inadimplemento, o credor pode requerer a consolidação da propriedade em seu nome, nos termos do art. 26 da lei 9.514/1997 (no caso de bens imóveis), após o cumprimento das formalidades legais, como a notificação extrajudicial do devedor.
À luz do entendimento do exímio doutrinador Melhim Namen Chalhub, a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário não constitui um fim em si mesma, mas representa etapa necessária à alienação do bem dado em garantia. Nesse sentido, a consolidação implica a extinção do direito aquisitivo do devedor fiduciante, conferindo ao credor a plena titularidade do bem, com vistas à sua alienação para satisfação do crédito garantido. Veja-se:
"Com efeito a consolidação dá início ao procedimento de realização da garantia. [...]
A consolidação da propriedade importa na extinção do direito aquisitivo do devedor fiduciante.
Com efeito, a propriedade fiduciária é uma propriedade resolúvel com características especiais, de modo que, realizada a condição (pagamento) que opera sua extinção, o bem reverterá ao patrimônio do fiduciante (devedor); ao contrário, não ocorrendo o a condição resolutiva, a propriedade, que já se encontra no patrimônio do fiduciário (credor), com as restrições próprias da resolubilidade, nele permanecerá, agora consolidada como propriedade plena (CC, parágrafo único do art. 1.368-B)"2
Em contrapartida, o instituto da recuperação judicial tem como fundamento central a preservação da empresa, compreendida como vetor de geração de empregos, tributos e desenvolvimento econômico. Para viabilizar esse objetivo, o art. 6º da lei 11.101/05 estabelece a possibilidade de suspensão das ações e execuções que envolvam o devedor, pelo prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias, de modo a assegurar um ambiente juridicamente estável e propício à reestruturação da atividade, permitindo a negociação com os credores sem o risco de desarticulação do patrimônio essencial à continuidade das operações.3
No âmbito do direito comercial comparado, observa-se um intenso debate teórico acerca dos objetivos fundamentais que devem nortear uma legislação concursal. Parte significativa da doutrina, especialmente aquela alinhada à corrente do Law and Economics, sustenta que a principal finalidade do sistema deve ser a maximização da satisfação dos créditos, priorizando os interesses dos credores. Por outro lado, uma corrente contraposta defende que, para além da proteção ao crédito, a legislação concursal deve também promover a preservação da empresa.
No tocante à legislação falimentar brasileira, embora se reconheça a intensa participação dos credores no processo recuperacional, a lei 11.101/05 alinha-se predominantemente à segunda concepção acima mencionada, ao eleger como princípio estruturante a preservação da empresa. Nesse sentido, os doutrinadores João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea, corroboram o entendimento ora exposto:
"A legislação concursal brasileira (lei 11.101), ainda que conte com intensa participação de credores, filia-se à primeira concepção, na medida em que elege como princípio cardeal a preservação da empresa, em atenção aos interesses de todas as classes que em torno dela gravitam."4
Nesse sentido, compreende-se que em concorrência de outra norma com a LREF, há de se prevalecer a maximização do princípio de preservação da empresa. Isso porque, tendo em vista que a recuperação judicial visa propiciar um ambiente que favoreça o soerguimento empresarial e a reorganização financeira, previne-se quaisquer atos que possam macular esse objetivo.
Com isso, a consolidação da propriedade fiduciária pelo credor durante o stay period deve ser analisada com cautela, pois pode representar afronta direta à finalidade da recuperação judicial. A consolidação, embora prevista na lei 9.514/1997, não pode ser utilizada de forma a frustrar a tentativa legítima do devedor em crise de manter sua atividade empresarial.
Sopesa-se que a blindagem conferida ao credor fiduciário não pode ser interpretada como um salvo-conduto absoluto, ainda mais quando se trata de garantias imprescindíveis para a recuperação do devedor, ou seja, se o bem for considerado essencial, não se deve permitir a consolidação da propriedade.
Dessa forma, não se trata de suprimir os direitos do credor fiduciário, mas de submetê-los a uma ponderação legítima e proporcional, ainda mais considerando-se que a suspensão dos atos de consolidação ou alienação é temporária, limitando-se ao período de blindagem legal previsto no art. 6º, caput, da lei 11.101/05, e que, após esse período, o devedor poderá ter a real possibilidade de se reerguer e purgar a mora.
Corroborando essa premissa, o doutrinador Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro, ao tratar da possibilidade de consolidação da propriedade fiduciária no contexto da recuperação judicial, ressalta a necessidade de avaliação da essencialidade do bem. In verbis:
"Por premissa, recorde-se de que a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, per se, não implica a perda automática da posse do imóvel pelo devedor fiduciante. Demais disso, vale lembrar que o objetivo da concessão do stay period é justamente permitir que a recuperanda tenha um fôlego para reorganizar suas atividades, evitando-se qualquer situação que obste o prosseguimento da recuperação judicial, como uma constrição judicial.
Há de relevar, entretanto, que, muito embora o devedor fiduciante não perca automaticamente a posse do imóvel, com a consolidação da propriedade plena em favor do credor fiduciário, exsurge a possibilidade de lançar a qualquer momento a pretensão de ser reintegrado na posse do imóvel, ex vi, do art. 30 da lei 9.514/1997. [...]
O díscrimen, inexoravelmente, será o fato de, in concreto, o imóvel ser ou não essencial à atividade da empresa em recuperação judicial. Não se enquadrando nesse perfil, não há qualquer óbice a dar-se seguimento ao procedimento de consolidação da propriedade fiduciária, em prestígio ao art. 49, § 3°, da lei 11.101/05."5
Em outra perspectiva, observa-se que mesmo antes da reforma promovida pela lei 14.112/20, que alterou substancialmente a lei de recuperação e falências, os precedentes jurisprudenciais oriundos das Varas e Câmaras Especializadas em Direito Empresarial já exaravam entendimento alinhado à tese ora defendida.
Isto é, a interpretação sistemática da legislação leva ao reconhecimento de que a consolidação da propriedade fiduciária não deveria ocorrer durante o stay period, especialmente quando o bem garantido era essencial à atividade empresarial. Veja-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE DEFERIU TUTELA DE URGÊNCIA PARA SUSPENDER A CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE DE DOIS IMÓVEIS ALIENADOS FIDUCIARIAMENTE À AGRAVANTE DURANTE O STAY PERIOD. MANUTENÇÃO. BENS ESSENCIAIS AO SOERGUIMENTO DAS RECUPERANDAS. UNIDADES PRODUTIVAS. ATIVIDADE AGRÍCOLA. ART. 49, § 3º, DA LEI 11.101/05. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE JUSTIFICAM A MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ/SP - AI: 21223538120188260000 Garça, Relator.: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 10/09/2018, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 6/9/2018)
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Decisão que prorroga o prazo previsto no art. 6º, § 4º, da lei 11.101/05 por mais 180 (cento e oitenta) dias. [...] Ainda que o devedor fiduciante consiga reorganizar-se e reunir recursos para purgar a mora, isso não será mais possível, uma vez que a propriedade plena já estará em definitivo consolidada nas mãos da credora fiduciária. Razoável, portanto, em harmonia com a própria finalidade do stay period, se evite nesse meio tempo situação definitiva e irreversível de perda da propriedade, permitindo à devedora soerguer-se, purgar a mora e retomar o contrato. (TJ/SP - AI: 21351635920168260000 SP 2135163-59 .2016.8.26.0000, Relator.: Francisco Loureiro, Data de Julgamento: 22/8/2018, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 22/8/2018)
A inviabilidade da consolidação da propriedade do imóvel dado em garantia fiduciária é, em síntese, pelas seguintes razões:
(I) o caráter essencial dos imóveis na manutenção das atividades da recuperanda, de acordo com seu escopo social;
(II) poderia obstar a recuperação judicial, haja vista que, uma vez consolidada a propriedade, a posse poderia ser postulada pelo credor fiduciário ou pelo eventual arrematante, irremediavelmente prejudicando, assim, a recuperanda;
(III) o prazo de stay period tem como objetivo a reorganização das empresas, podendo garantir a purgação da mora e a manutenção dos imóveis pelos devedores e não dele se aproveitar para liquidar certas dívidas inicialmente apresentadas em prejuízo do conjunto de credores e da própria atividade empresarial pela recuperando desenvolvida.
Por outro prisma, em recentíssima decisão o juízo da Vara Cível da Comarca de Montividiu/GO, interpretou que o art. 49, § 3° da lei 11.101/05, veda a retirada da posse dos bens pelos recuperandos durante o stay period, mas não impede a consolidação da propriedade fiduciária nem a sua alienação extrajudicial. Veja-se:
"Em relação ao pedido de reconsideração, nota-se que a autorização para a continuidade do procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário implica, necessariamente, na autorização para alienação via leilão público, eis que é este o rito legal previsto na lei 9.514/1997. Portanto, seria contraditório autorizar o prosseguimento do rito de consolidação da propriedade em nome do credor fiduciária sem que houvesse a autorização para a alienação do bem. Efetivamente, a essencialidade, como já manifestado por este juízo, implica apenas na impossibilidade de sua retirada da posse do imóvel enquanto estiver pendente o stay period." (Processo 5642138-15.2024.8.09.0183 - Juiz Guilherme Bonato Campos Caramês - Vara Cível de Montividiu/GO - Recuperação Judicial)
Nesses termos, analisa-se que, ao se compreender que a autorização da consolidação da propriedade fiduciária implicaria, necessariamente, na sua posterior alienação em leilão público - hipótese esta vedada pelo art. 49, § 3º, da lei 11.101/05 durante o stay period -, deveria, sob uma interpretação teleológica da norma, ser obstada a própria consolidação enquanto perdurar a blindagem legal.
Assim, se compreende que a vedação à alienação abrange, implicitamente, a vedação à consolidação da propriedade, quando o bem se revelar essencial à continuidade das atividades da empresa em recuperação.
Conclui-se que a consolidação da propriedade fiduciária durante o stay period deve ser analisada com cautela, especialmente quando envolva bens essenciais à atividade empresarial do devedor em recuperação. Embora o credor fiduciário goze de certa blindagem legal, esta não pode ser interpretada de forma absoluta ou dissociada da finalidade do processo recuperacional.
Por isso, o desafio posto ao Poder Judiciário tem sido justamente encontrar o ponto de equilíbrio entre o direito do credor à satisfação de seu crédito e o interesse coletivo na continuidade da atividade empresarial viável, evitando que garantias reais operem como instrumentos de inviabilização do soerguimento econômico da empresa em crise.
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1 Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
2 CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária: negócio fiduciário. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. Págs. 339, 341 e 343.
3 "Essa consequência decorrente da admissão inicial de seu pedido permite-lhe lidar de forma mais aliviada com o estado de crise econômico-financeira em que se vê inserido, pois estará, ainda que momentaneamente, livre de novas penhoras de seus bens e de qualquer outro ato de apreensão ou constrição judicial ou extrajudicial, além do fantasma da falência. Terá o devedor um período de tranquilidade no qual buscará reestruturar suas dívidas, recompor sua atividade e recuperar, assim, a sua empresa." (CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial - Falência e Recuperação de Empresa. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. Pág. 165.)
4 SCALZILLI, João Pedro. SPINELLI, Luis Felipe. TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência - teoria e prática na lei 11.101/2005. 4ª Ed. São Paulo: Almedina, 2023. Pág 150.
5 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. Alienação fiduciária de bens imóveis. 1ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Pág. 166 a 168.
Fonte: Migalhas.