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19-03-2024 

Falências: qual a urgência na sua modificação?

No início deste ano foi encaminhado ao Congresso o Projeto de Lei nº 3/2024 em regime de urgência, o qual se encerra em meados de março, com a finalidade de modificar a Lei nº 11.101/05 (LRF), recentemente alterada pela Lei nº 14.112/20, especialmente na parte que disciplina os processos falimentares.

As novas propostas, que trazem alterações profundas no procedimento falimentar, geraram enorme debate entre os operadores que atuam na área, trazendo críticas favoráveis, e muitas outras construtivas para aprimoramento das mudanças que se pretende implementar.

Há, contudo, praticamente um consenso: a insuficiência do tempo disponibilizado para os necessários debates e a ausência de justificativa convincente para embasar o regime de urgência imprimido à tramitação legislativa das propostas, inviabilizando, na prática, uma adequada reflexão sobre o tema que contém enorme complexidade.

A urgência foi requerida com fundamento, basicamente, em dois argumentos. O primeiro, de que a distribuição de pedidos de falência de janeiro a agosto de 2023 foi o maior desde 2019, mencionando, neste caso, informações do Serasa Experian, e, o segundo, que o processo de falência seria moroso e pouco efetivo, com pouca influência dos credores sobre destino da massa falida e pouca transparência em relação às informações do processo falimentar [1].

Com relação a esses últimos aspectos, todavia, não houve apresentação de elementos empíricos que os respaldasse. É possível, porém, pelas regras de experiência nesses quase 20 anos da Lei nº 11.101/05, afirmar que o Comitê de Credores, que tem por objetivo trazer estes para participar da falência (e da recuperação judicial), é um completo fracasso, por falta de interesse deles, em razão das responsabilidades que assumem.

O aumento do número de distribuição de falências em 2023 reflete, naturalmente, o grande impacto provocado pela pandemia de Covid-19 e pela guerra na Ucrânia nas cadeias globais de produção desde 2020, de modo que se trata de situação que, apesar de demandar a atenção, é pontual e decorrência inerente de tais episódios. Vale lembrar que, nos anos de 2020 e 2021, durante a pandemia, em razão da ampla renegociação de créditos para viabilizar a preservação de contratos e evitar o colapso da economia, o número de pedidos de recuperação judicial e de falências caiu substancialmente. [2]

Já com relação à morosidade do processo falimentar, na falta de dados empíricos, é necessário compreender a qual processo se refere.

O processo anacrônico do Decreto-Lei nº 7.661/45 impunha a observância de fases processuais estanques, obrigatórias e sucessivas do processo, postergando o início da fase da liquidação de ativos somente após a definição da apuração do passivo pela conclusão do quadro geral de credores, o que resultava em absoluta ineficiência do processo e em perda de valor dos bens que compunham o ativo ao longo dos anos.

A tramitação era naturalmente demorada, em razão da necessidade de se concluir toda a fase recursal em face das decisões de primeiro grau antes de se poder, por força da preclusão processual, iniciar a fase subsequente (venda dos bens e pagamento).

A entrada em vigor da Lei nº 11.101/05 alterou profundamente a legislação da insolvência, ao revogar o instituto da concordata, substituindo-o pelos institutos da recuperação judicial e extrajudicial, que permitem a (re)negociação na fase de crise da empresa entre os credores e o devedor, inovando marco legal sobre a questão.

A legislação de 2005, muito embora tenha permitido a concomitância das fases processuais na falência, não trouxe novas regras para aprimorar o processo falimentar de forma profunda. Assim, por exemplo, persistiu a suspensão da prescrição das obrigações durante a falência, as quais, após seu encerramento, podem ser exigidas, normalmente, em face do empresário ou eventualmente de seus sócios, gerando muita insegurança jurídica, sobretudo com relação ao crédito fiscal.

A persistente incapacidade da LRF de enfrentar pontos que provocavam a ineficiência do processo falimentar, gera, como se observa, o crescimento da utilização do procedimento de recuperação judicial, ainda que para empresas de questionável capacidade de soerguimento, ao passo que o procedimento falimentar teve abrupta redução [3]; ou seja, um procedimento para recuperar empresas em condições econômicas para superar a sua crise passou a ser utilizado por empresas sem viabilidade econômica e, inclusive, com pouco ou nenhum ativo para fazer frente ao cumprimento de suas obrigações.

Nesse contexto, diante da inefetividade do processo falimentar, os credores passam a aceitar os planos de recuperação com descontos enormes (deságios de 80%!), além do pagamento da dívida em prazos longos (20 anos!). Essas situações levaram parte da doutrina a questionar quanto a efetiva capacidade de soerguimento das empresas que requerem, em muitos casos, o pedido de recuperação judicial.

A abrupta redução da distribuição de processos falimentares imediatamente após a entrada em vigor da LRF e, consequentemente, relativo abandono ao mencionado procedimento, leva a conclusão, como hipótese, que tal escolha não decorreu da morosidade observada no processo falimentar após a mudança do marco legal da insolvência em 2005, mas sim de questões estruturais no referido processo que o tornavam opção menos atrativa aos interesses dos credores em recuperar seu crédito, a saber: a ausência de prazo para impugnações/habilitação de créditos no processo falimentar, processo de alienação de bens moroso, persistência da responsabilidade do empresário mesmo após o encerramento da falência, dentre outros.

Para enfrentar a situação descrita no parágrafo acima, foi editada a Lei nº 14.112/20, que pretendeu, por alterações pontuais, tornar o processo falimentar mais efetivo e, com isso, reequilibrar o sistema da insolvência. Enfrentou, assim, pontos cruciais ao processo: trouxe o instituto do fresh start (que não abrange as obrigações fiscais), estabeleceu o prazo decadencial das impugnações, afasta do conceito de preço vil nas alienações realizadas, permitir a deliberação em assembleia por credores de processos competitivos de venda, dentre outras alterações.

Essas mudanças foram introduzidas para dar maior eficiência ao processo falimentar, com maior celeridade e menor litigiosidade.

Impactos

Entretanto, ainda não foi possível verificar os impactos dessa legislação recente, de forma empírica, pois algumas das modificações introduzidas, como a decadência e o fresh start, começam, em razão do tempo, a serem aplicadas somente agora.

Não se justifica, portanto, a urgência para nova alteração legislativa, considerando que a morosidade arguida não é situação nova no contexto da insolvência. Ao contrário, houve edição de recente lei objetivando, justamente, implementar mudanças para tornar o processo de falência mais efetivo, enfrentando aspectos que notoriamente causam ineficiências ao referido processo.

Vale destacar que a Lei nº 14.112/20 não tramitou em regime de urgência, mas, ao contrário, foi amplamente debatida pelos operadores do direito que atuam na área, o que resultou em legislação amplamente reconhecida como benéfica ao processo falimentar.

Não se compreende, portanto, que a alegada de morosidade do processo falimentar justifique a urgência para mais uma modificação; a despeito da notória morosidade no processo falimentar de 1945, não se pode ignorar que desde 2005 o referido procedimento não é utilizado pelos credores para o fim de recuperação de seu crédito.

O projeto foi encaminhado afirmando que há pouca participação de credores e pouca transparência do processo falimentar.

Ainda que o debate sobre a maior participação de credores na condução do processo falimentar seja pretensão justa e que mereça ser discutida, a verdade é que não se compreende a alegação de falta de transparência do processo falimentar.

Reitera-se, pelas regras de experiência, que os credores não participam por falta de interesse. Afinal, além de o processo ser público, por imposição constitucional, existem diversos dispositivos que permitem aos credores amplo acesso a informações. Nesse sentido, o art. 22, I, b, da LRF, impõe ao administrador judicial o dever de prestar “todas as informações pedidas pelos credores interessados”, além de o mesmo dispositivo impor a ele apresentar diversos relatórios exigidos sobre situação econômico-financeira do devedor.

Ou, ainda, por exemplo, o artigo 27 da LRF que permite ao Comitê de Credores, dentre outras previsões, fiscalizar a administração das atividades do devedor e a comunicar ao juiz caso detectar violação de direitos ou prejuízo aos interesses dos credores.

Na verdade, chama atenção, no projeto apresentado, a falta de regras que assegurem transparência aos demais credores, ao falido, ao Ministério Público e ao juízo quanto aos fundamentos considerados no processo decisório das soluções que serão apresentadas no plano de falências, não havendo menção à necessária descrição dos aspectos considerados nem, tampouco, da racionalidade econômica adotada ou informações mínimas nesse sentido.

A situação se agrava quando se constata que o referido plano será apresentado por gestor fiduciário nomeado por credores titulares de maiores créditos, o qual poderá dispensar a avaliação de bens, em um sistema em que foi afastada a vedação de preço vil, pela alteração da LRF em 2020.

O regime de urgência, no caso específico, está em desacordo com a pretensão de ampliar a transparência que justifica a proposta legislativa agora questionada. A falta de regras que assegurem a transparência quanto aos fundamentos da racionalidade econômica para as soluções a adotadas no plano de falência, ou de parâmetros legais que permitam nortear a análise da sua legalidade, implicará no inequívoco aumento da litigiosidade, e a consequente intervenção judicial, que o projeto pretende afastar.

O debate amplo e aprofundado por todos os operadores do direito que atuam na área da insolvência, participando e enriquecendo o processo legislativo com diversos contrapontos e olhares, certamente contribuirá para a edição de texto legal que enfrente pretensão apresentada e que conceba soluções que sejam reconhecidas como adequadas e satisfatórias para necessário aprimoramento do processo falimentar. Infelizmente, o debate necessário, para que o processo legislativo resulte em alteração que aprimore efetivamente o instituto falimentar é incompatível com o regime de urgência conferido.

___________________________________________

[1] Extrai-se da exposição de motivos: “(…) No Brasil, contudo, o processo de falência é moroso e pouco efetivo. Os credores possuem pouca influência sobre o destino da massa falida e há pouca transparência em relação às informações do processo falimentar. Esses fatores prejudicam os credores e os empresários e, de forma ampla, a eficiência e a produtividade da economia brasileira. (…) 7. Levantamento da Serasa Experian mostra que, de janeiro a agosto de 2023, o número de requerimentos de falências de empresas é o maior para o período desde 2019, superando até o número de pedidos de falência apresentados nos 8 primeiros meses nos anos de pandemia. Esses números revelam as dificuldades financeiras enfrentadas pelas empresas brasileiras, em decorrência dos impactos econômicos adversos desse período recente. No regime vigente, essas empresas serão submetidas a um longo processo falimentar, comprometendo os recursos já insuficientes para a retomada das atividades, e com impacto na recuperação dos recursos empregados pelos credores. 8. Desse modo, para que os aperfeiçoamentos propostos possam produzir efeitos para as empresas que requerem a falência com a maior brevidade possível, é imprescindível que o Projeto de Lei tramite no Congresso Nacional no regime de urgência previsto no § 1º do art. 64 da Constituição. 9. Busca-se, com a presente proposta, tornar o processo de falência mais célere e efetivo, ampliando a taxa de recuperação de créditos e mitigando os riscos de perdas a todos os envolvidos, permitindo que os ativos produtivos sejam realocados ao seu melhor uso.(…)”.

[2] “O número de pedidos de recuperação judicial de empresas no segundo ano da pandemia do novo coronavírus registrou queda de 24,4% em todo o país comparado a 2020, primeiro ano da doença e quando houve queda de 15% em relação ao anterior, segundo dados da Serasa Experian.” (in https://www.cnnbrasil.com.br/economia/pedidos-de-recuperacao-judicial-caem-em-2021-ao-menor-nivel-desde-2014/).

[3] “No que se refere à quantidade de recuperações, a série histórica mostra um crescimento da utilização da recuperação judicial no mercado desde 2008 de forma consistente Esse crescimento indica a possibilidade de que empresários que se encontram em crise não por motivos conjunturais, mas por uma inviabilidade estrutural (e que, portanto, são essencialmente irrecuperáveis), possam se utilizar a recuperação judicial para consumir os recursos escassos ou viabilizar uma liquidação de parte substancial de seus ativos fora das regras falimentares, em benefício da devedora e de uma parcela de credores. Os impactos da queda no PID tendem a ser explicitados em ações de insolvência iniciadas após as retrações. Ao mesmo tempo em que os dados não indicam aumentos significativos na quantidade de falências requeridas ou decretadas nos respectivos períodos, observa-se um aumento na quantidade de recuperações judiciais requeridas nos intervalos de tempo associados às crises. A análise sugere a existência de uma redução na quantidade de falências requeridas e decretadas após a vigência da LREF, com a estabilização em novos patamares mais baixos, bem como indica a ausência de impacto das crises nessas duas quantidades, como esperado pelo legislador. Do ponto de vista formal, a existência das empresas foi preservada pela LREF. A questão agora diz respeito à preservação substancial das atividades, ou seja, se as empresas que deixaram de ter a sua falência formalmente decretada foram capazes de preservar suas atividades em níveis próximos aqueles existentes antes da recuperação judicial.” (SACRAMONE, Marcelo, NUNES, Marcelo Guedes, DANTAS, Rodrigo D’Orio. Recuperação Judicial e Falência – Evidências Empíricas. Editora Foco. fls. 8/9).

 

Fonte: Conjur.

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