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14-04-2025
Entre limites e possibilidades: caracterização da conta escrow como bem de capital
O julgamento do Conflito de Competência (CC) nº 196.553/PE, pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Boas Cuêva, foi determinante para assegurar à recuperanda a continuidade de suas operações para preservar, por via reflexa, o crédito da execução concursal.
À título de contextualização, o STJ decidiu que o juízo da execução fiscal poderia bloquear o dinheiro de uma recuperanda que devia cerca de trinta milhões ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), ao fundamento de que o dinheiro em questão não poderia ser considerado como bem de capital da empresa. Logo, não caberia ao juízo universal decidir sobre o pleito de constrição.
O que se extrai da ratio decidendi do ministro relator é que, para chegar à conclusão sobre a competência do juízo da execução fiscal, foi preciso dar um passo atrás e definir o que pode ser entendido como bem de capital. Foi no julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.758.746/GO que o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, destacou que, para ser caracterizado como bem de capital, o bem precisa ser corpóreo (móvel ou imóvel), utilizado no processo produtivo e deve se encontrar na posse da empresa.
O caso em questão envolvia a cessão fiduciária de direitos creditórios de uma instituição financeira, que solicitou a reforma do entendimento exarado pelo Tribunal de Justiça de Goiás, ao determinar a liberação das travas bancárias que impediam uma empresa de informática em recuperação judicial de acessar suas contas e valores. A decisão do tribunal local baseou-se na argumentação da recuperanda de que a importância bloqueada era bem de capital essencial ao seu funcionamento e que a manutenção da trava comprometeria a recuperação judicial.
Nesse contexto, a 3ª Turma do STJ decidiu que, no âmbito do procedimento recuperacional, não é possível o sobrestamento, ainda que parcial, da trava bancária quando se tratar de cessão de créditos ou de recebíveis em garantia fiduciária a empréstimo tomado pela empresa devedora. Para o colegiado, a Lei nº 11.101/2005 (LREF) não autoriza o juízo universal a impedir que o credor fiduciário satisfaça seu crédito perante a execução concursal.
A Corte Superior então definiu o que pode ser classificado como bem de capital, isto é, são os bens corpóreos, móveis ou imóveis, não perecíveis ou consumíveis e utilizados no processo produtivo. De acordo com o relator, a LREF, ainda que tenha excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titularidade de proprietário fiduciário, acentuou que os bens de capital, objeto de garantia, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, devem permanecer na posse da recuperanda durante o período de proteção (stay period).
Por essa interpretação, primo ictu oculi, estariam excluídos quaisquer valores em dinheiro, o que impediria a atuação do juízo da recuperação prevista no artigo 6º, § 7º-B da LREF para determinar a substituição de atos de constrição que recaiam sobre aqueles. Bellizze consignou que o uso do crédito garantido fiduciariamente, para qualquer finalidade, não apenas desvirtua a finalidade dos bens de capital, mas também anula completamente a garantia fiduciária, o que, em última análise, chancelaria a burla à lei que explicitamente exclui o credor, detentor da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial.
A partir de então, inúmeras controvérsias a respeito do tema apresentaram-se à Corte Cidadã, que filiou-se ao posicionamento exarado no âmbito do REsp nº 1.758.746/GO, mas com uma ressalva. Muito embora tenha decidido a favor da instituição financeira recorrente, para excluir da recuperação judicial os recebíveis cedidos fiduciariamente em garantia de cédulas de crédito bancário, já que esse tipo de crédito não poderia ser caracterizado como bem de capital, a relatora, ministra Isabel Gallotti ponderou que caberá ao juízo da recuperação avaliar a sua essencialidade e decidir pela entrega imediata ao titular da propriedade resolúvel para a execução da garantia ou pela impossibilidade de sua retirada.
Por essa razão, o voto vencido, da lavra do ministro Moura Ribeiro, no aludido julgamento do CC nº 196.553/PE, remonta à tal ponderação e consignou não ser “(…) possível retirar do magistrado a análise da essencialidade dos bens porque se mostra temerário fixar uma regra geral para todos os casos, baseando-se no entendimento de que bem de capital seria apenas e tão-somente o bem corpóreo (móvel ou imóvel), utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda”.
Para o ministro dissidente, a atuação do juízo universal é essencial para sopesar os benefícios econômicos, sociais e os ônus suportados pelas partes para evitar prejuízos maiores que ocorreriam caso a empresa falisse. Consignou também que as alterações promovidas na LREF pela Lei nº 14.112/2020 não podem se sobrepor ao princípio da preservação da empresa e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, não sendo possível retirar da competência do juízo universal o controle sobre os atos de constrição praticados contra o patrimônio da recuperanda, mormente no que diz respeito a análise da essencialidade do bem para o soerguimento da empresa.
Contas escrow
Diante dessas considerações, surge a questão se as escrow accounts (ou contas escrow) poderiam ser classificadas como bem de capital em um contexto específico. Como mecanismo de mitigação de riscos em operações estruturadas, sua utilização se dá por meio de um contrato de conta vinculada, cujos principais elementos são: a previsão de que os polos do acordo sejam as mesmas partes do contrato de compra e venda de participação societária e a instituição bancária; disposições detalhadas sobre o objeto relacionado à administração e custódia dos recursos, bem como as respectivas obrigações; a vigência, que estará diretamente ligada ao tempo ou prazo pelo qual os recursos deverão permanecer depositados na conta vinculada; e o foro, que deverá ser o mesmo do contrato de compra e venda de participação societária [1].
Todo esse formalismo, por sua vez, encontra uma razão de ser. Conforme antecipado adrede, operações complexas, como fusões e aquisições de empresas, contam com elevado risco, principalmente para o adquirente. Nesse contexto, inserem-se as contas escrow, que têm o condão de conferir maior segurança, jurídica e patrimonial, e, assim, proporcionar o fiel cumprimento das obrigações pactuadas.
Nessas circunstâncias, o preço da operação é depositado, até que sejam adimplidos os termos acordados e verificado o caráter completo, total e verdadeiro das informações prestadas durante a fase preliminar do processo de negociação (reps and warranties), que influenciaram a decisão de reestruturar. Do contrário, o adquirente terá o direito de reverter o valor em seu favor, total ou parcialmente.
Ao colocarmos a conta escrow nesses termos, verificamos que esta possui características práticas muito semelhantes à de uma garantia típicas. Ao analisarmos detalhadamente os termos e condições que regem a conta escrow, fica evidente que suas funcionalidades práticas se assemelham muito à fiança e ao penhor. Assim como essas garantias, a conta escrow visa assegurar o cumprimento das obrigações contratuais entre as partes, minimizando o risco de perdas financeiras em caso de inadimplência.
Não por outra razão, a conta escrow (conta vinculada), veio prevista pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), que atribuiu àquela o caráter de patrimônio de afetação, a salvo de penhoras, bloqueios e constrições [2]. Face à afetação, nota-se verdadeira segregação patrimonial entre a empresa e a conta vinculada, já que possui titularidade, isto é, é custodiada por um terceiro e, em princípio, não alcançável por ordens de bloqueio judicial em abstrato ou penhoras on-line por débitos do depositante.
Com base nessas ilações, imaginemos que uma empresa em recuperação judicial esteja se valendo de uma operação de mergers and acquisitions no intento de se reestruturar economicamente. Por mais incomum que tal possa parecer, não é impossível de se conceber na prática, mesmo porque a própria LREF, antes das alterações promovidas pela reforma de 2020, já permitia a cisão, incorporação, fusão ou transformação, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações, respeitados os direitos dos sócios, como formas de recuperação judicial, delineando novas maneiras de auxiliar na manutenção de empregos, geração de renda e proteção de direitos sociais e individuais [3], na condição de meios alternativos (artigo 50, inciso II, da LREF).
Assim, as referidas operações convergem para a reorganização de empresas em crise, normalmente ex ante à propositura do pedido de recuperação judicial. A grande questão, contudo, remanesce na suscetibilidade dos valores in escrow à penhora se a empresa em questão protocolar o pedido recuperação judicial.
Atentemos apenas para o fato de que, no curso de um procedimento recuperacional, essa miríade de possibilidades contidas no artigo 50, mormente as do inciso II, jamais devem representar a liquidação da empresa. Notadamente, em outros sistemas, como o norte-americano, é possível o liquidation plan, mas, ainda assim, deverá ser demonstrado que a medida é mais vantajosa aos credores do que a liquidação regular, prevista no Chapter 7.
Feito esse adendo, prefacialmente, há de se arrazoar que os patrimônios das companhias não são homogêneos, pelo contrário, são compostos por diferentes elementos ativos e passivos, que revelam, ao final, diferentes coeficientes de solvência, níveis de endividamento e até mesmo aptidões diversas para produzir lucros e se recuperar.
Operacionalmente falando, através da fusão ou da incorporação, haverá a união de empresas com seus patrimônios. São operações promissoras a ganhos em escala, redução de custos administrativos e economia de estruturas e de produção. Por outro lado, na cisão total há a segregação das atividades econômicas em tantas quanto sejam necessárias ao soerguimento da companhia. De outra mirada, na cisão parcial há uma peculiaridade. Em tese, deve ser transferida a mesma proporção de ativos e passivos da sociedade cindida, eis que, do contrário, estar-se-ia transferindo diferentes parcelas do patrimônio da empresa, alterando-se o coeficiente de solvência das sociedades, o que interferiria no equilíbrio da relação entre devedores e credores [4].
Mesmo assim, nada se compara ao cenário de crise instaurado pela impontualidade e o estresse generalizado que representa uma empresa submetida à recuperação judicial, de modo que a operação, devidamente garantida pelos valores in escrow soa, de longe, como a melhor alternativa.
O depósito em questão desponta como elemento essencial para assegurar o soerguimento da empresa em recuperação. Se assim se passa, é possível, em maior ou menor grau, vislumbrar a extensão, ainda que parcial, do conceito de bem de capital às contas escrow, conferindo-lhes a proteção. Sob essa ótica, o princípio da preservação das empresas economicamente viáveis assume papel central na interpretação teleológica e ontológica das normas previstas no Código Civil, na Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas), na LREF e, por oportuno, no Marco Legal das Garantias, especialmente no que concerne às operações estruturadas, à caracterização de bens de capital e à formalização das garantias.
Ademais, expandir o conceito de bem de capital transcende qualquer tentativa superficial de blindagem patrimonial, configurando-se como uma medida legítima e indispensável, moldada pelas particularidades de cada cenário. Tal iniciativa não apenas fortalece a empresa em recuperação, mas também resguarda os interesses de todos os credores, sobretudo quando envolvidas outras companhias estreitamente conectadas à recuperanda em contextos de operações complexas. Trata-se, assim, da convergência entre justiça e estratégia, com o equilíbrio patrimonial erigido como pilar fundamental para a sustentabilidade de todos os envolvidos.
[1] KAYO, Grazziella Mosareli. A CONTA VINCULADA (ESCROW ACCOUNT) EM OPERAÇÕES DE FUSÃO E AQUISIÇÃO: RESOLUÇÃO DE IMPASSES SOBRE LIBERAÇÃO DOS RECURSOS DEPOSITADOS. 2019. Dissertação (Mestrado em Administração) — Fundação Getulio Vargas, 2019. Disponível em: https://repositorio.fgv.br/server/api/core/bitstreams/20b2f0ef-97a4-4236-a203-ba80876e7cc8/content Acesso em: 5 abr. 2025.
[2] REIS, Eduardo Moreira; ROCHA, Mauro Antônio. Considerações iniciais sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel. Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. Parte I. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2024/3/53DA668B2A8645_EscrowAccount.p1.pdf Acesso em: 5 abr. 2025.
[3] ZEMUNER, Adiolar Franco; SALERNO, Marília; SHIMAMURA, Emilim. FUSÕES E AQUISIÇÕES COMO MEIO DE RECUPERAÇÃO JUDICAL DE EMPRESAS EM ESTADO DE CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA. Revista do Direito Privado da UEL – Volume 2 – Número 2. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/direitoprivado/artigos/Adiloar_Mar%C3%ADlia_Emilim_Fus%C3%B5es_Incorpora%C3%A7%C3%B5es_Recupera%C3%A7%C3%A3o_Empresas_Crise_Econ%C3%B4mico_Financeira.pdf Acesso em: 5 abr. 2025.
[4] FILHO, Otávio Joaquim Rodrigues. Operações societárias na recuperação judicial e o equilíbrio das relações entre devedores e credores. Migalhas, São Paulo, 28 nov. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/397608/operacoes-societarias-na-recuperacao-judicial . Acesso em: 5 abr. 2025.
Fonte: Conjur.