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10-08-2023
Desconsideração da personalidade jurídica da empresa em recuperação judicial
Necessário trazer à baila que a recuperação judicial é um benefício legal preventivo, que busca antever a possibilidade de enfrentar uma crise financeira ou quando está já em andamento, possibilita a reestruturação empresarial e a readequação da atividade, antes da instauração da situação de insolvência em estado crítico a ponto de inviabilizar a consecução do objeto social, em que a única solução jurídica restante é a falência do devedor, ou seja, a recuperação judicial não é sinônimo de insolvência.
Compete mencionar que a Lei de Falências e Recuperação Judicial nº 11.101/2005 sofreu modificações com a Lei nº 14.112/2020, sancionada em 24/12/2020, com vigência a partir de 23/01/2021, e, especificamente sobre o tema ora analisado, desconsideração da personalidade jurídica, passou a estabelecer, em seu artigo 6º e parágrafos, o seguinte:
"Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)
I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao regime desta Lei; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)
§ 1º. Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida.
§ 2º. É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta Lei, serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.
§ 3º. O juiz competente para as ações referidas nos §§ 1º e 2º deste artigo poderá determinar a reserva da importância que estimar devida na recuperação judicial ou na falência, e, uma vez reconhecido líquido o direito, será o crédito incluído na classe própria."
Nesse contexto, a competência para determinar os atos de execução é do Juízo onde tramita a recuperação judicial. A Justiça do Trabalho compete a apuração do respectivo crédito e a expedição da certidão de crédito para habilitação perante àquele juízo, conforme dispõe o artigo 6º, §2º da referida lei.
Destaca-se que uma vez expedida pelo juízo trabalhista certidão para habilitação dos créditos do reclamante no processo de recuperação judicial de empresa reclamada, e, este realiza sua habilitação nos autos do processo de recuperação judicial da empresa reclamada, precluso seu direito de prosseguir com a execução na esfera trabalhista.
Portanto, uma vez realizada a habilitação dos créditos trabalhistas no Juízo de recuperação judicial, os autos na Justiça do Trabalho deverão ser remetidos ao arquivo provisório até o encerramento da recuperação judicial ou da falência que ela eventualmente tenha sido convolada e consequentemente a execução ser suspensa.
Vai-se além, o excelso Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 583.955, reconheceu a existência de repercussão geral (Tema 90) e decidiu que compete à Justiça estadual comum processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em recuperação judicial in verbis:
"EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO DE CRÉDITOS TRABALHISTAS EM PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL COMUM, COM EXCLUSÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO. INTERPRETAÇÃO DO DISPOSTO NA LEI 11.101/05, EM FACE DO ART. 114 DA CF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E IMPROVIDO. I - A questão central debatida no presente recurso consiste em saber qual o juízo competente para processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial. II - Na vigência do Decreto-lei 7.661/1945 consolidou-se o entendimento de que a competência para executar os créditos ora discutidos é da Justiça Estadual Comum, sendo essa também a regra adotada pela Lei 11.101/05. III - O inc. IX do art. 114 da Constituição Federal apenas outorgou ao legislador ordinário a faculdade de submeter à competência da Justiça Laboral outras controvérsias, além daquelas taxativamente estabelecidas nos incisos anteriores, desde que decorrentes da relação de trabalho. IV - O texto constitucional não o obrigou a fazê-lo, deixando ao seu alvedrio a avaliação das hipóteses em que se afigure conveniente o julgamento pela Justiça do Trabalho, à luz das peculiaridades das situações que pretende regrar. V - A opção do legislador infraconstitucional foi manter o regime anterior de execução dos créditos trabalhistas pelo juízo universal da falência, sem prejuízo da competência da Justiça Laboral quanto ao julgamento do processo de conhecimento. VI - Recurso extraordinário conhecido e improvido. (RE 583955, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 28/05/2009, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-162 DIVULG 27-08-2009 PUBLIC 28-08-2009 EMENT VOL-02371-09 PP01716 RTJ VOL-00212-01 PP-00570)."
Indispensável trazer à baila, o disposto no artigo 6º, § 2º, da Lei nº 11.101/2005 que é claro ao afirmar que, estando o devedor em recuperação judicial, o processo somente deve tramitar na Justiça do Trabalho até a fase de liquidação, sendo o crédito posteriormente habilitado no quadro-geral de credores. Em razão disso, reconhece-se que o juízo trabalhista é incompetente para processar execução em face de devedor sujeito ao processo de soerguimento no juízo universal.
Nesse contexto, não há como manter o processo ativo na Justiça do Trabalho após a expedição da certidão de habilitação de crédito seja porque isso representa grave atentado contra o princípio constitucional da eficiência quanto à gestão dos processos (artigo 37 da CRFB e artigo 8º do CPC), seja em razão da incompetência desta especializada. Por isso, o processo deve ser extinto após a emissão da certidão de habilitação do crédito.
Evidencia-se que, embora o artigo 82 da Lei 14.112/2020 se refira apenas à falência, deve-se entender que o dispositivo se amalgama ao artigo 6º, daí resultando um conjunto normativo aplicável também à recuperação judicial e que preceitua que a desconsideração da personalidade jurídica, nas hipóteses reguladas, somente pode ser feita com fundamento no artigo 50 do Código Civil.
Concessa vênia, aplica-se, aqui, a ideia de que a lei especial derroga a lei geral. A CLT, ao admitir a desconsideração direta na forma de seu artigo 10-A, deve ser aplicada com preferência em relação aos artigos 6º e 82 da Lei 14.112/2020.
Deste modo a desconsideração da personalidade jurídica da empresa em recuperação judicial, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo universal da recuperação judicial com a observância do artigo 50 do Código Civil e dos artigos 133, 134, 135, 136 e 137 do Código de Processo Civil.
Importante destacar que a desconsideração da personalidade jurídica na recuperação judicial é uma medida excepcionalíssima. Sua natureza especial se dá em razão do princípio da preservação da atividade econômica, bem como para prevenir a insegurança jurídica que romper indiscriminadamente a autonomia da personalidade jurídica traria.
Conclui-se, portanto, que à medida que o ordenamento jurídico brasileiro foi evoluindo, a desconsideração da personalidade jurídica da empresa em recuperação judicial é possível desde que comprovado o abuso de personalidade jurídica mediante desvio de finalidade ou confusão entre o patrimônio do sócio e da sociedade, nos termos do artigo 50, do Código Civil, e 133 a 137, do Código de Processo Civil, contudo, tal situação não foi comprovada nos autos, vez que, a empresa reclamada está cumprindo todo disposto no plano de recuperação judicial que foi homologado.
Em olhar apurado, e de tal forma, tem-se que se mostra impossível a configuração do requisito objetivo da desconsideração da personalidade jurídica em face das empresas que possuem deferido o processamento da sua recuperação judicial, uma vez que a insuficiência patrimonial dessas empresas somente poderá ser caracterizada quando da apreciação e execução do plano de recuperação e cumprimento das obrigações impostas.
Por conseguinte, havendo a possibilidade de pagamento da dívida pela devedora originária, ainda que por meio do plano de recuperação, não já se falar em insuficiência patrimonial da empresa, uma vez que esta pagará por seus débitos. Contudo, pagará cumprindo o plano recuperacional, conforme previsto na LREF.
Reitera-se que quando o plano de recuperação judicial é aprovado pela assembleia geral de credores e homologado pelo juízo, ocorre a novação resultante da concessão da recuperação judicial após aprovado o plano em assembleia é sui generis, e as execuções individuais ajuizadas contra a própria devedora devem ser extintas, e não apenas suspensas. A aprovação do plano opera novação dos créditos e a decisão homologatória constitui, ela própria, novo título executivo judicial, nos termos do que dispõe o artigo 59, caput e § 1º, da Lei nº 11.101/2005.
Isso porque, uma vez ocorrida a novação, com a constituição de título executivo judicial, caso haja inadimplemento da obrigação assumida por ocasião da aprovação do plano, não há mais possibilidade de as execuções antes suspensas retomar o curso normal. Visto que, aprovado o plano de recuperação judicial, os créditos serão satisfeitos de acordo com as condições ali estipuladas.
Reverbera-se que diferentemente da primeira fase, em que as ações são suspensas, a aprovação do plano opera novação dos créditos e a decisão homologatória constitui, ela própria, novo título executivo judicial, nos termos do que dispõe o artigo 59, caput e § 1º, da Lei nº 11.101/2005.
"Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 ou 56ª desta Lei.
[...]
Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 desta Lei.
§ 1º. A decisão judicial que conceder a recuperação judicial constituirá título executivo judicial, nos termos do art. 584, inciso III, do caput da Lei n 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil."
Assim sendo aprovado o plano de recuperação judicial, os créditos serão satisfeitos de acordo com as condições ali estipuladas. Nesse contexto, mostra-se incabível o prosseguimento das execuções individuais, inclusive em desfavor de terceiros, sócios e administradores.
Imprescindível esclarecer, que a manutenção da execução contra terceiros, sócios e administradores na Justiça do Trabalho, data máxima vênia, redundaria em forma indireta de inobservância da finalidade das legislações pertinentes a recuperação judicial, com manifesto desrespeito à regra contida em seu artigo 6º, "caput" e §§, ferindo o princípio da igualdade de preferência entre os credores trabalhistas.
Urge trazer à baila, uma vez que o processo trabalhista é redirecionado para terceiros, sócios e administradores, e logra êxito na satisfação do crédito laboral, antecipa pagamento de credor sujeito ao plano. Deste modo, ainda que o crédito tenha sido satisfeito por essa, tal pagamento impõe empresa, mesmo que de forma indireta, o descumprimento do avençado no plano de recuperação judicial, o que em última análise, além de ferir a isonomia entre os credores da mesma classe, pode ser causa da convolação da recuperação judicial em falência com fundamento no descumprimento do plano aprovado pelos credores.
Deste modo ao alcançar o patrimônio de terceiros, sócios e administradores, seria uma forma reflexa de violar a finalidade social da lei que regulamenta a recuperação judicial. Posto que nada impede que, diante da reorganização de suas dívidas na recuperação, a empresa, venha a quitar seu débito.
Assim sendo, quando não comprovado nos autos fraude, abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial para que o patrimônio de terceiros, sócios e administradores seja atingindo, não se pode aceitar como tal a mera insolvência da pessoa jurídica.
Tal situação, contudo, não pode ser admitida, pois, mostra-se desnecessário o provimento jurisdicional provido pelo juízo, uma vez que se a empresa recuperanda possui meios de pagar a dívida (viabilidade da recuperação judicial), não é preciso que o reclamante atinja o patrimônio de terceiros, sócios e administradores, devendo consignar, inclusive, que a tentativa de atingir o patrimônio dos sócios nada mais apresenta-se como tentativa de burlar o próprio fim da recuperação judicial, que é de possibilitar à empresa em crise o seu soerguimento e o pagamento dos seus débitos, mediante os mecanismos e benefícios previstos na lei.
Dessarte, o Judiciário trabalhista satisfaz determinado crédito laboral paralelamente aos demais credores da mesma classe, sendo todos, igualmente sujeitos ao plano. Com isso, através do descumprimento da ordem de pagamentos impõe-se à recuperanda o descumprimento do plano de recuperação à revelia de sua vontade. Além disso, fere a isonomia entre os credores da mesma classe, visto que aquele que obteve a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, através de processo judicial, não raras vezes, recebe seu crédito em antecipação aos demais credores trabalhistas igualmente submetidos à recuperação judicial. A igualdade entre os credores está na própria essência do Direito Falimentar e Recuperacional, eis que o tratamento isonômico das partes é pressuposto para a validade do plano e, mais que isso, pressupõe o respeito à ordem de pagamentos aprovada pelos respectivos credores.
Ressalta-se, ao reclamante, e que, caso seja finalizado o processo de recuperação judicial da empresa devedora sem a integral quitação do débito trabalhista, os instrumentos expedidos pelo juízo trabalhista servirão como título executivo judicial para ensejar novo processo, que deverá ser instruído com as demais peças que entenda necessárias.
Fonte: Conjur.