NOTÍCIAS
22-11-2019
"Desafio da reforma da Lei de Falências é conjugar princípios com resultados"
Por Fernando Martines
Aproximadamente 45% das empresas em recuperação possuem patrimônio líquido negativo quando do pedido e metade dos advogados que cuidam destes processos não têm especialização no tema.
Os dados foram compilados pelos advogados José Marcelo Martins Proença e Eduardo da Silva Mattos, que apresentam os resultados de sua pesquisa no livro "Recuperação de Empresas — (In)utilidade de Métricas Financeiras e Estratégias Jurídicas". Proença é diretor de compliance da JBS.
Para os advogados, a Lei 11.101/2005 representou avanço no trato de empresas em dificuldade há necessidade de maior alinhamento dos princípios e objetivos do texto.
Os autores apontam para uma reforma da lei e explicam como seria a posição do Fisco nessa nova situação. "Na proposta original de reforma, o Fisco passaria a uma posição privilegiada dentro da recuperação, ainda fora do processo, mas agora fora até mesmo do juízo falimentar, além de poder requerer falência de devedor."
Leia abaixo a entrevista
Conjur — Quase 20 anos da Lei de Recuperação e Falência. Ela precisa de mudanças?
Eduardo Mattos — A Lei 11.101/2005 representou um inegável avanço no trato de empresas em dificuldade. O regime anterior era arcaico e já vinha sendo deixado de lado. Apesar disso, a nova lei tramitou durante muito tempo e já foi promulgada com alguns dispositivos datados.
Marcelo Proença — Além disso, entendemos que a realidade, após a os 14 anos de aplicação da Lei de Recuperação nos mostra a real necessidade de aprimoramento de diversos dispositivos da Lei e alguns desafios a serem enfrentados.
Conjur — Quais desafios são esses?
Eduardo Mattos — Existem diversos princípios e objetivos na Lei de Recuperação e Falência. É preciso identificar se eles estão sendo cumpridos na realidade ou se os institutos estão sendo deturpados em sua aplicação. Para entendermos isso de maneira adequada, acreditamos ser fundamental uma avaliação empírica dos processos de recuperação judicial e falência no país.
Marcelo Proença — E isso foi exatamente o que quisemos abarcar nesse livro, agora lançado. Os resultados, a partir de uma análise individual de processos de recuperação judicial e testes estatísticos, sugerem que há necessidade de maior alinhamento dos princípios e objetivos da Lei com sua utilização por empresas em dificuldades e esse é o grande desafio, em termos gerais.
Conjur — Como foi essa avaliação empírica na obra?
Eduardo Mattos — A maioria dos processos atualmente tramita em meio virtual. Acabamos nos utilizando dessa facilidade de acesso às informações para avaliar a aplicação de institutos falimentares. Além de um capítulo só com análise macroeconômica sobre determinantes de falência no Brasil, levantamos em outro todas as recuperações judiciais e falências que tramitavam no Paraná, meu estado, no início de 2017. Analisamos todas as demandas e, depois disso, realizamos testes para avaliar diversas questões atinentes aos processos de recuperação.
Conjur — Da análise individual de cada processo, o que mais chamou a atenção?
Eduardo Mattos — Dentre vários pontos, serviu para termos uma sensação real da aplicação de recuperações e falências não só nos grandes centros. Acompanhar andamentos e peticionamentos nesses processos serviu para observarmos, dentre várias coisas, que os agentes envolvidos precisam lidar com informações precárias para a tomada de decisão, sejam eles credores, o administrador judicial ou até o juiz.
Conjur — Qual questão surgiu depois de fazer todas essas análises nos processos?
Marcelo Proença — Uma das primeiras questões, além de diversas outras não menos interessantes, que surgiu quando debatíamos a Lei 11.101/2005 é se seria possível, ou não, distinguir antecipadamente uma empresa que conseguiria se recuperar de uma empresa que deveria ser liquidada. Essa diferenciação é central em um sistema falimentar. Afinal, a lei não poderia servir para tentar recuperar na marra, sob o manto da “preservação da empresa”, atividades que são inviáveis, como os nossos resultados sugerem em determinados casos.
Eduardo Mattos — Vemos essa questão como um dos especiais desafios da aplicação da Lei. Observamos que, em determinadas situações, mesmo empresas em estado financeiro para lá de crítico, conseguem se recuperar.
Conjur — Em qual estado financeiro as empresas entram em recuperação judicial?
Eduardo Mattos — Empresas que entram em recuperação judicial naturalmente se encontram em dificuldades financeiras. O que surpreendeu foi o tamanho desses problemas. Como exemplo, aproximadamente 45% das empresas em recuperação possuía patrimônio líquido negativo quando do pedido. Isso indica empresas com histórico crônico e persistente de prejuízo. Apesar disso, mais de metade dessas empresas conseguiu aprovar o plano de recuperação.
Conjur — Quais os erros que as empresas cometem ao entrar com o pedido de recuperação?
Marcelo Proença — Quando as empresas apontam as causas da crise, a maioria dos motivos indicados são externos: a crise econômica do país, os altos juros, os impostos, os custos trabalhistas. Já quando elas precisam indicar os meios de recuperação, sobram expressões genéricas de gestão e poucas medidas concretas que não sejam a concessão de carência, prazos e descontos pelos credores.
Conjur — O livro mostra que aproximadamente metade dos processos são tocados por advogados que não são especialistas em recuperação. Como vocês mediram isso?
Eduardo Mattos — Na análise individual dos processos, percebemos que uma boa parte das petições iniciais sequer vinha com a documentação obrigatória expressamente determinada na Lei de Recuperação e Falência. E uma boa parte dos processos mesmo! Aproximadamente metade. Por isso, o Juiz determinava a emenda da inicial. Usamos isso como uma aproximação da especialização, ou não, da equipe contratada pela recuperanda. O impacto dessa variável nos resultados foi bastante significativo.
Marcelo Proença — A contratação de advogados especializados pela empresa em dificuldade amplia sensivelmente suas chances de recuperação.
Conjur — E juízes especializados? Eles impactam os resultados dos processos?
Marcelo Proença — Aferimos que, felizmente, não. Dizemos “felizmente” porque a função do Judiciário em uma recuperação judicial é precipuamente a de garantir a condução adequada do processo. Quanto ao resultado, o que deve prevalecer é a posição dos credores frente ao devedor.
Eduardo Mattos — No Paraná, há duas varas especializadas na matéria em Curitiba e a obra indica que não há diferença nos resultados dos processos nas varas especializadas ou em varas comuns.
Conjur — Então não há diferença entre um juiz especializado e juízes de varas comuns?
Marcelo Proença — Vamos lá, apuramos, contudo que, apesar de não impactarem os resultados, juízes especializados tendem a conduzir os processos com mais celeridade, justamente por terem maior contato com a matéria. Dentre alguns casos citados no livro relembro o caso que transcorreu em uma cidade de médio porte, sem juiz especializado, onde o processo de recuperação levou oito anos entre a distribuição e a convocação de Assembleia Geral de Credores, em decorrência, entre outros, da demora nos despachos e de anulação e revisão de diversos atos processuais.
Conjur — Quais medidas devem ser tomadas para que o processo de recuperação seja aprimorado?
Eduardo Mattos — A iniciativa de criação de varas regionais especializadas é um passo importante para condução correta dos processos. Além disso, há um esforço na criação de um regime mais diferenciado para as recuperações de micro e pequenas empresas. O objetivo disso é nobre, só é necessário algum cuidado, pois, nos processos analisados, empresas menores entram em recuperação em um estágio financeiro ainda pior do que empresas maiores.
Conjur — Quais os riscos na prorrogação do período de suspensão de execuções contra a recuperanda até o final do processo?
Marcelo Proença — Essa questão sobre o stay period é um dos desafios de mais difícil equacionamento na possível reforma da Lei. Realmente, uma empresa não conseguirá se reerguer caso tenha que constantemente se defender de credores tentando acessar seu patrimônio. Por outro lado, os processos via de regra duram muito mais do que previsto em Lei — é só lembrar desse caso que levou oito anos para ter uma AGC realizada. Tornar mais difícil a execução de obrigações tende a favorecer ainda mais a aprovação de planos de recuperação, mesmo de empresas claramente inviáveis, pela simples falta de alternativa factível para o credor receber seus valores.
Conjur — Com algumas das atuais propostas de reforma, então é possível que devedores ineficientes sejam favorecidos?
Eduardo Mattos — Essa é uma possibilidade, como seria o caso da ampliação do stay period sem algum tipo de contrapartida. Por exemplo, em um dos processos analisados, credores se queixavam que não conseguiam executar valores da recuperanda, enquanto os sócios retiravam pro-labores mensais de R$ 45 mil. Sem contrapartidas para desestimular as recuperações judiciais oportunistas, corre-se o risco de se criar problemas maiores do que aqueles que agora se quer combater. Sendo justo, há proposta de impedir distribuição de dividendos enquanto perdurar a recuperação, algo que poderia ser ampliado para pro-labores ou, então, vincular o pagamento de valores aos sócios e administradores à aprovação dos credores.
Conjur – E a posição do Fisco nessa possível reforma?
Marcelo Proença — Essa situação é perigosa para as empresas em dificuldades. Na proposta original de reforma, o Fisco passaria a uma posição privilegiada dentro da recuperação, ainda fora do processo, mas agora fora até mesmo do juízo falimentar, além de poder requerer falência de devedor. Talvez por isso, em propostas posteriores e alternativas, a posição do Fisco foi atenuada. Considerando o ambiente de negócios do país, acredita-se que essa mitigação é realmente necessária.
Conjur — Ao final do livro, vocês questionam se será possível salvar o direito recuperacional da falência. Por que essa pergunta?
Eduardo Mattos — Trata-se de uma provocação, tendo em vista como os institutos vêm sendo usados. Empresas entram em recuperação em situação financeira crítica. Mesmo assim, apresentam planos sem medidas concretas, exceto jargões de gestão e pedido de prazos e descontos pelos credores. Em alguns casos, sócios retirando altos valores mesmo durante a recuperação. E, apesar disso, credores aprovam os planos.
Marcelo Proença — A situação pode ser ilustrada pela frase do presidente de uma pequena associação de produtores rurais em uma recuperação do interior: “se fosse decretada a falência, com certeza ninguém iria receber nada”. Essa não é uma imagem de aprovação de plano por consenso entre credores e devedor, na busca da preservação da empresa. É uma imagem da completa falta de esperança em outra opção. E, aqui, nós retornamos ao grande desafio da reforma da Lei de Falências: conjugar seus princípios e objetivos com seus resultados.
Fonte: Consultor Jurídico