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12-11-2025
Créditos de cooperativas na recuperação: Isonomia e agronegócio
Cooperativas de crédito devem ter tratamento especial na recuperação judicial ou a isonomia vale para todos? Esse debate impacta o equilíbrio de poder e a sobrevivência no agronegócio.
Introdução
A LREF - Lei de Recuperação de Empresas e Falência, lei 11.101/05, foi concebida como um moderno instrumento de política judiciária, cujo objetivo primordial é viabilizar o soerguimento de empresas em crise econômico-financeira, mas que se mostram economicamente viáveis. Para alcançar tal finalidade, a lei se assenta sobre pilares essenciais, como o princípio da preservação da empresa e o tratamento paritário dos credores (par conditio creditorum). Nesse cenário, emerge uma controvérsia jurídica de grande impacto prático: a sujeição ou não dos créditos detidos por cooperativas, especialmente as de crédito, aos efeitos da recuperação judicial. Este artigo defende a tese da sua integral submissão, fundamentando-se na universalidade do juízo recuperacional e na natureza da relação jurídica estabelecida.
1. O princípio da universalidade e o art. 49 da LREF
O alicerce da recuperação judicial é o princípio da universalidade do juízo, que concentra no foro da recuperação todas as discussões e pagamentos relativos aos créditos sujeitos ao processo. O art. 49 da LREF materializa esse princípio de forma inequívoca ao determinar que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos".
Essa regra não é mera formalidade. Seu propósito é garantir que a empresa devedora tenha a oportunidade de apresentar um plano de pagamento que englobe a totalidade de seu passivo concursal, permitindo uma negociação coletiva, organizada e supervisionada pelo Poder Judiciário. A exclusão de créditos relevantes desse ambiente de negociação frustraria o objetivo da lei, pois permitiria que certos credores buscassem a satisfação de seus interesses individualmente, inviabilizando a reestruturação da devedora e prejudicando a coletividade de credores.
2. A controvérsia: Ato Cooperativo vs. Ato de Mercado
A principal tese levantada para defender a extraconcursalidade dos créditos de cooperativas se baseia na lei 5.764/1971 (lei das cooperativas), argumentando que as operações entre a cooperativa e seus associados constituem um "ato cooperativo", de natureza distinta de um ato mercantil ou financeiro tradicional. Sob essa ótica, o crédito não seria um simples empréstimo, mas parte da relação mutualística entre as partes.
Contudo, essa interpretação não resiste a uma análise aprofundada, principalmente quando a cooperativa atua como uma instituição financeira de fato. Ao conceder crédito mediante remuneração (juros), exigir garantias e operar com regras de mercado, a cooperativa transcende a mera relação associativa. Prevalece, aqui, o princípio da primazia da realidade: a natureza jurídica de uma operação é definida por sua essência e seus efeitos econômicos, e não pelo rótulo que lhe é atribuído.
Quando uma cooperativa de crédito financia a atividade de um produtor rural, por exemplo, ela está exercendo uma atividade típica do Sistema Financeiro Nacional. O crédito concedido possui natureza financeira e, como tal, deve se submeter ao regime concursal comum, não havendo no art. 49 da LREF qualquer exceção que contemple o "ato cooperativo".
3. A violação ao princípio do par conditio creditorum
Permitir que os créditos de cooperativas escapem dos efeitos da recuperação judicial representaria uma grave violação ao princípio da isonomia entre os credores. Este princípio determina que credores de uma mesma classe devem receber tratamento igualitário, garantindo que o sacrifício imposto pela renegociação da dívida seja distribuído de forma equitativa.
Excluir um credor relevante, como uma cooperativa de crédito, cria uma classe de "supercredores" privilegiados, que poderiam executar suas garantias e cobrar seus valores integralmente, enquanto os demais (fornecedores, trabalhadores, outros bancos) seriam forçados a aceitar deságios, prazos estendidos e outras condições do plano. Isso gera um desequilíbrio negocial insustentável e mina a confiança no instituto da recuperação judicial. A efetividade do processo depende de um sacrifício compartilhado, e não da proteção de interesses isolados.
4. O impacto destrutivo no setor do agronegócio
A discussão ganha contornos dramáticos no agronegócio, um dos pilares da economia brasileira. Neste setor, as cooperativas de crédito são, frequentemente, as principais financiadoras da produção, desde o plantio até a colheita.
Se um produtor rural ou uma agroindústria ingressa em recuperação judicial e seus débitos com a cooperativa financiadora são considerados extraconcursais, o plano de recuperação pode nascer inviável. O peso dessa dívida, se executada à parte, drena o caixa da empresa e impede que ela consiga honrar os compromissos com os demais credores e, mais importante, manter sua operação. O resultado prático é a falência, exatamente o que a lei busca evitar.
As "resistências e incompreensões jurídicas" mencionadas representam um obstáculo real à estabilidade econômica do setor. A falta de uma jurisprudência pacificada sobre o tema gera insegurança e dificulta a reestruturação de empresas vitais para cadeias produtivas inteiras.
Conclusão
A correta interpretação sistêmica da lei 11.101/05 impõe a submissão dos créditos detidos por cooperativas, quando estas operam como agentes financeiros, aos efeitos da recuperação judicial. Tal entendimento prestigia o princípio da universalidade do juízo, garante o tratamento isonômico entre os credores e, fundamentalmente, assegura a efetividade do processo de soerguimento.
Qualquer tese contrária, além de carecer de fundamento legal explícito, cria um privilégio injustificado que desequilibra a negociação coletiva e ameaça a preservação da empresa, especialmente em setores estratégicos como o agronegócio. Pacificar o entendimento em favor da concursalidade desses créditos é um passo essencial para fortalecer a segurança jurídica e a eficiência da recuperação judicial no Brasil.
Fonte: Migalhas.
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