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07-10-2025 

Cooperativas médicas e recuperação judicial: Entre a forma societária simples e a realidade econômica complexa

A coluna aborda como cooperativas médicas podem acessar recuperação judicial, preservando serviços essenciais à saúde e equilibrando interesses econômicos e sociais.

1. Introdução

A recuperação judicial foi concebida como instrumento de preservação da atividade produtiva e de realização da função social da empresa. Durante anos, porém, um ator central da saúde suplementar brasileira permaneceu à margem desse regime: as cooperativas médicas. O CC, ao classificá-las como sociedades simples, ergueu uma barreira formal que parecia intransponível.

O contraste é evidente: de um lado, a simplicidade da forma jurídica; de outro, a complexidade de uma realidade econômica que movimenta bilhões de reais e sustenta a saúde de milhões de brasileiros. Esse descompasso manteve acesa a discussão até que o legislador, o STF e o STJ finalmente pacificaram o tema.

2. A barreira histórica e a alteração legislativa

Nos termos do art. 982 do CC1, a cooperativa é sempre considerada sociedade simples, independentemente de seu objeto2. Por essa razão, as cooperativas ficaram, por muito tempo, fora do âmbito da lei 11.101/05, restrito a empresários e sociedades empresárias3.

Esse vácuo foi preenchido pela lei 14.112/20, que alterou a lei de recuperação judicial e falências e acrescentou ao art. 6º o § 13, permitindo expressamente que cooperativas médicas operadoras de planos de saúde possam requerer recuperação judicial4. O legislador reconheceu que a formalidade da classificação não pode ignorar a complexidade do fenômeno econômico: cooperativas médicas gerem bilhões em receitas, contratam milhares de profissionais e asseguram serviços essenciais a milhões de pacientes.

3. STF: a constitucionalidade da inclusão

A alteração foi questionada na ADI 7.442, sob o argumento de que o Senado teria inovado substancialmente o projeto aprovado pela Câmara, em violação ao princípio do bicameralismo. Por 6 votos a 5, em outubro de 2024, o STF, no voto condutor do ministro Alexandre de Moraes, afirmou a constitucionalidade da inclusão5.

Embora tenha havido divergência6, prevaleceu a leitura de que a emenda foi de redação, não modificativa, e que a vontade do legislador estava expressa. O julgamento reforçou a legitimidade da medida e conferiu segurança jurídica ao setor, pacificando a controvérsia.

4. STJ: A aplicação prática e o caso Unimed Taubaté

Em junho de 2025, a 4ª turma do STJ, nos REsp 2.183.710/SP e REsp 2.183.714/SP, ambos relatados pelo ministro Marco Buzzi e envolvendo a situação da Unimed Taubaté, consolidou a aplicação prática da mudança7. Os acórdãos reconheceram a legitimidade das cooperativas médicas para requerer recuperação judicial e destacaram que a finalidade do instituto é a preservação da atividade econômica viável, sobretudo quando ela se conecta ao direito fundamental à saúde.

Os votos foram além da análise formal e trouxeram números expressivos que demonstram a importância sistêmica das cooperativas médicas no Brasil. Ressaltou-se que essas entidades são responsáveis por significativa fatia do mercado de saúde suplementar: cerca de 39% dos beneficiários. Conforme dados da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, em 2025 o setor de planos médico-hospitalares reúne aproximadamente 52,8 milhões de brasileiros8. Esse recorte evidencia que a crise de uma cooperativa médica não repercute apenas na relação contratual entre credores e devedores, mas atinge diretamente milhões de pacientes, médicos cooperados e prestadores de serviços de saúde.

Esses números evidenciam que a crise de uma cooperativa não se limita ao universo contratual de credores e devedores: atinge diretamente pacientes em tratamento, médicos cooperados e a rede de prestadores de serviços de saúde. Por isso, o STJ frisou que permitir o acesso dessas entidades à recuperação judicial é medida que ultrapassa a lógica econômica, alcançando a proteção da dignidade da pessoa humana e a continuidade do cuidado médico9.

5. O que significa estar sob o regime da recuperação judicial

Mais do que uma etiqueta jurídica, a recuperação judicial inaugura para o empresário (ou, no caso, para a cooperativa médica) um regime especial de tutela. Trata-se de um espaço de negociação coletiva que busca conciliar credores e devedores em torno da continuidade da atividade econômica.

Não se trata apenas de uma formalidade processual. Quando uma entidade é admitida à recuperação judicial, passa a se beneficiar de um conjunto robusto de instrumentos jurídicos: suspensão das execuções individuais por 180 dias, centralização das negociações, possibilidade de alongamento de prazos, concessão de deságios, conversão de créditos em participação societária e até alienação de ativos com blindagem jurídica.

No caso das cooperativas médicas, isso representa a chance de reequilibrar contratos com hospitais, fornecedores e instituições financeiras sem comprometer o atendimento contínuo a beneficiários. Em vez do colapso repentino que a falência imporia, a recuperação judicial cria um plano de soerguimento coletivo, preservando pacientes, médicos cooperados, empregos e credores.

6. O debate das associações civis

O reconhecimento das cooperativas, contudo, não encerra a discussão. O STJ foi provocado a decidir, no REsp 2.159.844/SP, envolvendo a Pró-Saúde - Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar, se associações civis privadas também poderiam se valer do regime. O caso tramita na 4ª turma, sob relatoria do ministro João Otávio de Noronha, e encontra-se concluso para julgamento ao ministro Marco Buzzi desde junho de 2025, após pedido de vista.

Até o momento, apenas o relator votou, em sentido restritivo. Noronha entendeu que associações não se enquadram no conceito de empresa adotado pela legislação, pois não têm finalidade lucrativa nem distribuem resultados. A extensão da recuperação judicial a essas entidades, segundo ele, poderia gerar insegurança jurídica e comprometer o ambiente de negócios.

A relevância desse precedente é institucional. Como a 3ª turma do STJ já possui entendimento contrário à admissão de associações civis em recuperação judicial, eventual confirmação pela 4ª Turma consolidaria a matéria no âmbito do Tribunal. Nessa hipótese, não haveria divergência a justificar análise pela 2ª Seção, e os limites subjetivos da recuperação judicial estariam definidos: empresários, sociedades empresárias e, por expressa previsão legal, cooperativas médicas.

Esse contraste é revelador. Enquanto as cooperativas médicas foram excepcionadas expressamente pelo legislador, e depois validadas pelo STF e aplicadas pelo STJ, as associações civis permanecem em terreno de incerteza. A diferença mostra que a recuperação judicial é um instrumento de aplicação controlada, pensado para preservar atividades econômicas relevantes, mas sem perder de vista a estabilidade normativa.

7. Considerações finais

O Direito Empresarial não pode se afastar da realidade social. A recuperação judicial, antes restrita a empresários formais, hoje também se abre às cooperativas médicas, reconhecendo que sua sobrevivência é inseparável da continuidade de serviços de saúde suplementar.

O contraste que inspira este artigo é emblemático: a cooperativa é formalmente simples, mas economicamente complexa. Sua preservação transcende o balanço patrimonial, alcançando a bioética da proteção ao paciente.

Ao legitimar o acesso das cooperativas à recuperação judicial, o legislador e os tribunais reafirmam que o direito deve ser ponte entre forma e substância, entre a simplicidade da letra e a complexidade da vida.

Resta acompanhar o desfecho do julgamento sobre as associações civis. Se confirmada a linha restritiva já sinalizada, estará consolidado o recorte: a recuperação judicial alcança empresários, sociedades empresárias e, por expressa previsão legal, as cooperativas médicas. O debate em torno das associações, portanto, não é apenas um detalhe processual, mas o ponto final que delimitará o alcance do instituto no cenário brasileiro.

_______

1 BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Art. 982, parágrafo único.

2 Toda cooperativa é classificada como sociedade simples, independentemente da atividade que exerça. Isso decorre de sua natureza jurídica e de seus objetivos, que não se confundem com a busca do lucro característico das empresas mercantis, mas com a prestação de serviços aos seus membros, sob o princípio do mutualismo e da participação democrática dos cooperados. O Código Civil brasileiro consagra essa distinção (art. 982, parágrafo único), e as cooperativas são regidas pela Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, que dispõe sobre a Política Nacional de Cooperativismo.

3 A Lei 11.101/2005, em seu art. 1º, estabelece: “Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor”.

4 Art. 6º. [...]

§ 13.  Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.

5 STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.442/DF. Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julg. 24/10/2024, Tribunal Pleno.

6 Na ADI 7.442, julgada em 24.10.2024, o Supremo Tribunal Federal declarou, por maioria, a constitucionalidade da inclusão das cooperativas médicas no regime de recuperação judicial. Ficaram vencidos os Ministros Flávio Dino, André Mendonça, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, sob o fundamento de que a emenda aprovada no Senado não seria meramente redacional, mas inovadora, introduzindo nova exceção ao regime da Lei 11.101/2005, em violação ao bicameralismo.

7 STJ, REsp nº 2.183.710/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, j. 03/06/2025; e REsp nº 2.183.714/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª turma, j. 3/6/2025.

8 Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Números do Setor: dados de beneficiários referentes a julho de 2025. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2025.

9 Parte da doutrina tem defendido que, após a ADI 7.442 (STF) e o REsp 2.183.714/SP (STJ), a possibilidade de acesso à recuperação judicial não deveria ficar restrita às cooperativas médicas, podendo ser estendida a outras modalidades de cooperativas. O argumento central é que a emenda apenas explicitou um alcance que já estaria implícito na Lei nº 11.101/2005, que exclui expressamente apenas as cooperativas de crédito.

 

Fonte: Migalhas.

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