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14-01-2021
Considerações sobre o financiamento do devedor em recuperação judicial
O instituto da recuperação judicial possui como vetor norteadora "a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora". O diploma legal que regula a matéria, Lei 11.101/05 (LREF), dispõe de diversos incentivos que visam à sua consecução final.
Entre eles está o tratamento dado às garantias prestadas pelo devedor a credores — quiçá incentivo de maior eficácia ao soerguimento, tanto antes quanto depois da instauração da crise. No entanto, questiona-se: vem sendo dado o devido tratamento ao incentivo gerado pela prestação de garantias aos credores, em termos de regramento e eficácia?
Foi com o fim de responder ao questionamento acima realizado, que a Lei 14.112/2020, aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, sancionada pelo presidente da República em 24 de dezembro, teve parte de suas disposições desenhadas. É criada seção específica (Seção IV-A), intitulada de "(d)o Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial", que dialoga com novos dispositivos incluídos pela Lei 14.112/2020 à LREF, endereçando o regramento da matéria, bem como a sua eficácia.
Ao passo que a atual redação da LREF regra a prestação de garantias pelo devedor ao credor em seu artigo 49, §§1° e 3°, a rigor, antes da recuperação judicial (sem prejuízo de eventual credor conceder crédito/financiar o devedor já em recuperação judicial e garantir seu crédito com base em alguma das garantias do referido artigo), protegendo seu crédito, e, após a recuperação judicial, apenas classifica os créditos como extraconcursais, em seu artigo 67 (sem conferir qualquer estímulo mais eficaz); a nova seção da Lei 14.112/2020 vai além. Cria novas regras de estímulo ao devedor durante a recuperação judicial. No entanto, o racional da prestação de garantias — seja antes ou depois da recuperação judicial — não afasta a instabilidade do Judiciário quanto à interpretação da matéria, que, por vezes, retira a eficácia de tais garantias.
Logo, fica a indagação: as condutas prescritas pelas regras da Seção IV-A garantirão a eficácia das garantias fornecidas a tais credores, estimulando o efetivo soerguimento do devedor? Ou o outro lado da moeda pesará mais e as novas regras não serão capazes de garantir a eficácia da prestação de garantias aos credores financiadores, fazendo cair por terra o estímulo ao soerguimento?
Para responder às indagações acima, necessário traçar breve paralelo entre o que existe hoje, em termos de regramento e eficácia das garantias, e o histórico de interpretação do Judiciário sobre o tema.
A atual redação da LREF, em linhas gerais, regra a prestação de garantias pelo devedor aos credores no artigo 49, §§1° e 3°. Tais regras, respectivamente, mantêm hígidos os "direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso" e excepcionam da sujeição aos efeitos da recuperação judicial créditos garantidos por alienação fiduciária e créditos decorrentes de arrendamento mercantil, de imóveis com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade ou, ainda, de contrato de compra e venda com reserva de domínio.
Ambas excepcionam a regra que impõe o marco temporal do fato gerador do crédito, quando de sua existência no plano fático, e consequente sujeição aos efeitos da recuperação judicial (novação das características do crédito). A primeira (artigo 49, §1°), tornando os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso solidariamente — e, portanto, integralmente — responsáveis pelo crédito; a segunda (artigo 49, § 3), fazendo recair sobre o bem que garante o crédito — em sua exata extensão de valor — a satisfação do credor, mediante transferência da posse do bem ao proprietário original.
Observe-se: garantias, a rigor, com grande eficácia para fins de proteção e satisfação do crédito, tanto antes da instauração da crise do devedor quanto depois do ajuizamento do procedimento recuperatório — hipótese segunda esta que, além da extraconcursalidade inerente ao crédito, garantiria ainda mais a sua satisfação. Em um primeiro momento, credores com o intuito de financiar devedores, com base na literalidade da LREF, estariam dispostos a correr o risco de financiá-los, tendo em vista a natureza das garantias descritas, seu regramento e eficácia.
Em resumo: o risco compensaria, uma vez que coberto por garantias que, a rigor, conferem plena eficácia de proteção ao crédito.
No entanto, a interpretação de tais regras por parte do Judiciário, ponderando os princípios que refletem os vetores norteadores da LREF, retirou — por vezes em sua quase totalidade — a eficácia das garantias regradas pelo artigo 49, §§1° e 3°. A ponto de, inclusive, credores concessores de crédito a empresas economicamente saudáveis (antes de sequer vislumbrarem eventual crise) sentirem-se em uma zona cinzenta de incertezas.
Isso por conta de dois entendimentos centrais do Judiciário: 1) ser válida, atualmente, cláusula do plano de recuperação do devedor que disponha sobre suspensão e posterior extinção de ações e execuções contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso; 2) ser considerado essencial à atividade da empresa em questão o bem em si dado em garantia revestida por alguma das espécies do artigo 49, §3° — ambos entendimentos indo em sentido oposto à literalidade do quanto disposto no artigo 49, §§1° e 3°.
Quanto ao primeiro ponto, há, inclusive, jurisprudência vinculante sobre o tema: Recurso Especial Repetitivo nº 1.333.349 (embora discuta-se, em casos específicos, que a tese fixada não abarca casos nos quais o plano dispõe de cláusula que determina a suspensão e posterior extinção de ações e execuções contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso). Em síntese, a tese firmada no repetitivo, nada mais, nada menos, reforça o quanto disposto no artigo 49, §1°, da LREF, estabelecendo que a "recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral", tanto no processamento quanto concessão da recuperação judicial. O repetitivo ainda culminou na edição da Súmula 581 do Superior Tribunal de Justiça.
Ocorre que, em 2016, por meio do julgamento obscuro do Recurso Especial nº 1.532.943/MT, cortes estaduais passaram a declarar a validade de cláusulas em plano de recuperação judicial que dispõem sobre a suspensão e posterior extinção de ações e execuções contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, embora, em sede de embargos de declaração, tenha ficado claro que a exceção seria aplicada apenas quando tais garantias fossem prestadas pelo devedor. Paralelamente, em 2019, por meio do julgamento do Recurso Especial nº 1.700.487, o STJ tratou novamente da questão, no entanto, dessa vez de forma direta e oposta ao sentido do artigo 49, §1°, da LREF, Recurso Especial Repetitivo nº 1.333.349 e Súmula 581. Em resumo: superou informalmente entendimento consolidado, contrariando a literalidade do dispositivo e tornando ineficaz a garantia nele prevista.
Quanto ao segundo ponto, o STJ tem entendimento pacificado de que, em se tratando de bem essencial ao desenvolvimento da atividade empresarial do devedor, a garantia (alienação fiduciária) ou bem interligado ao crédito (arrendamento mercantil, imóveis com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade e de contrato de compra e venda com reserva de domínio) perde a sua eficácia, não podendo ser a posse do bem remetida ao proprietário original. E tal essencialidade pode decorrer de o bem estar previsto no plano de recuperação judicial ou a critério — até discricionário — do julgador, se enquadrado o bem no conceito de essencialidade (especialmente em bem de capital essencial, conforme a redação do artigo 49, §3°).
E ainda reforça a perda de eficácia das garantias dispostas no artigo 49, §3°, da LRE, o entendimento consolidado do STJ de que o juízo da recuperação judicial é universal e absolutamente competente — em decorrência das funções por ele exercidas — para determinar a realização ou não de atos constritivos/expropriatórios contra o patrimônio do devedor, especialmente em se tratando de bens essenciais. Como consequência, eventual procedimento de consolidação da propriedade das garantias é imediatamente suspenso, caso suscitado conflito de competência pela parte legítima.
Veja-se: as claras condutas prescritas pelas regras acima expostas — evidentes pela sua própria literalidade — tornaram-se letras mortas da lei. Logo, no cenário atual, qual credor correria o risco de conceder crédito coberto por garantias ineficazes?
Por óbvio, pouquíssimos. O risco, considerando investimento versus retorno, passa a ser altíssimo, sob pena de o credor, quiçá, nunca mais reaver seu crédito ou tê-lo quase que sujeito aos efeitos da recuperação judicial. Como consequência, há um severo desestímulo à concessão de crédito no cenário nacional, tanto na fase pré-recuperatória quanto após o ajuizamento da recuperação judicial.
O efeito do estímulo ao soerguimento é reverso. Na ânsia de fazer-se o bem à empresa em recuperação judicial — tornando as garantias dos credores ineficazes —, faz-se o mal: não existe mais segurança para a concessão de créditos/financiamentos.
Exposto o cenário atual, a Lei 14.112/2020 finalmente tem a chance de retomar a eficácia das garantias prestadas aos credores, especialmente durante a recuperação judicial. Mas essa missão não depende apenas dela. O Judiciário deverá ponderar de forma equânime o jogo de interesses entre devedor e credor, estabelecendo um diálogo coerente, que prestigie o principal incentivo das garantias (especialmente da Seção IV-A trazida pela Lei 14.112/2020): soerguimento do devedor.
Passa-se, assim, a verificar os mecanismos de proteção à "celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante" previstos na Lei 14.112/2020.
A Lei 14.112/2020 dispõe de quatro previsões que regram e objetivam proteger a eficácia das garantias prestadas pelo credor: 1) o artigo 69-A prevê que "o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor"; 2) o artigo 66-A prescreve que "(a) alienação de bens ou a garantia outorgada pelo devedor... não poderá ser anulada ou tornada ineficaz após a consumação do negócio jurídico"; 3) o artigo 51, IX, dispõe que "(a) petição inicial de recuperação judicial será instruída com... a relação de bens e direitos integrantes do ativo não circulante, incluídos aqueles não sujeitos à recuperação judicial"; 4) o artigo 6°, §7°, refere que a vedação a constrições e/ou expropriações contra os bens do devedor não se aplicam "aos créditos referidos nos §§3° e 4° do artigo 49".
A partir das redações dos dispositivos acima elencados, conclui-se o seguinte: 1) haverá decisão irrecorrível (a rigor, se não requerida decisão judicial em caráter liminar) do magistrado a acobertar a celebração de contrato de financiamento, pelo credor, com o devedor, que, certamente, abarcará a declaração jurisdicional de que o bem poderia ser dado em garantia; 2) a garantia não poderá ser anulada ou ineficaz, o que, por si, via de regra, já afasta a aplicação dos entendimentos atuais do STJ que retiram a eficácia das garantias; 3) desde o pedido de recuperação judicial, o devedor deverá informar a classificação do bem, retirando eventual essencialidade superveniente, quando da elaboração do plano; 4) a não aplicação do conceito da universalidade do juízo da recuperação judicial para tratar de constrições/expropriações contra os bens do devedor também afasta o entendimento atual do STJ quanto à competência absoluta do juízo falimentar, mantendo hígidos procedimentos de consolidação da propriedade de bens dados em garantia. Em suma, todas, de uma forma ou outra, visam a regrar e dar eficácia às garantias prestadas durante a recuperação judicial, indo de encontro e tentando superar os entendimentos atuais do STJ.
Resta saber: será observada a conduta imposta pela literalidade de tais novos artigos? Ou novamente tais novos dispositivos legais tornar-se-ão letra morta da lei?
Fonte: ConJur