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05-06-2023 

Conflito de competência na recuperação judicial: o despejo do lojista

O pedido de recuperação judicial das Americanas trouxe à tona assunto de grande relevância para o setor de shopping centers: o despejo do lojista em recuperação judicial. A empresa suscitou conflito de competência no STJ (Superior Tribunal de Justiça), em face dos juízos da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, responsável pelo processamento da recuperação judicial, e da 5ª Vara Cível de Vitória (ES), onde tramita demanda de despejo cumulada com cobrança, relacionada a contrato de locação em um centro de compras.

O juízo carioca determinou que não fossem emitidas ordens de despejo contra a empresa, relativas a débitos anteriores ao pedido de recuperação judicial. Por outro lado, o juízo capixaba, apesar de reconhecer a concursalidade do débito objeto do pedido, determinou a expedição de ordem de despejo das Americanas, ressaltando a prevalência do direito de propriedade do locatário de poder rescindir o contrato; decisão mantida no TJ-ES (Tribunal de Justiça do Espírito Santo).

Restou, assim, caracterizado o conflito de competência, resolvido de maneira brilhante pelo ministro Raul Araújo, em decisão monocrática, proferida em 30 de março de 2023, na qual declarou competente o juízo da 5ª Vara Cível de Vitória, para o pleno conhecimento, processamento e julgamento da demanda de despejo, mantendo-se a ordem de desocupação do imóvel.

O brilhantismo da decisão do ministro Raul Araújo, todavia, não decorre de qualquer novidade doutrinária ou inovação jurisprudencial. Tampouco se celebra a determinação de ordem de despejo que pode resultar no encerramento de contratos de trabalho. A decisão merece destaque, pois busca preservar entendimento há muito consolidado na Segunda Seção do STJ, corroborando para a segurança jurídica do mercado varejista, que possui grande relevo no comércio nacional e que tanto sofreu ao longo da pandemia da Covid-19.

O entendimento quanto à possibilidade de despejo do lojista em recuperação judicial advém de dois leading cases, de 2014, ambos da Segunda Seção e de relatoria do ministro Raul Araújo: os Conflitos de Competência nºs 122.440/SP e 123.116/SP. Naquelas oportunidades, a 2ª Seção entendeu que, em ação de despejo movida pelo proprietário locador, a retomada da posse direta do imóvel locado à sociedade empresária em recuperação judicial não se submete à competência do juízo universal da recuperação judicial, tendo em vista a exceção prevista no artigo 49, §3º da Lei de Falências e Recuperação Judicial, Lei 11.101/2005.

Em linhas gerais, interpreta-se o referido dispositivo legal no sentido de que o crédito dos credores proprietários "não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais", inclusive quando estejam os proprietários na posição de arrendador, promitente vendedor, credor fiduciário, dentre outras.

Apesar de haver críticas da doutrina quanto a tal interpretação, é certo que a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de que a exclusão do crédito do credor proprietário da recuperação judicial "é perfeitamente legítima, na medida em que não haveria hierarquia dentro do texto da Lei nº 11.101/2005 e, por isso, a norma seria perfeitamente aplicável" [1].

A recente decisão do ministro Raul Araújo, por sua vez, demonstra justamente a consolidação desse entendimento, sendo, por isso, louvável.

O ministro apresenta outros precedentes da 2ª Seção, de relatoria de seis dos nove atuais integrantes, julgados entre 2015 a 2023, que reafirmam a tese de que, apesar do objetivo principal do processo de recuperação judicial ser a preservação a empresa, "não se pode afastar a garantia ao direito de propriedade em toda a sua plenitude daquele que, durante a vigência do contrato de locação, respeitou todas as condições e termos pactuados", conforme consignado pelo ministro João Otávio Noronha, no julgamento do CC nº 133.612/AL.

Ressalte-se que a decisão do ministro Raul Araújo cita precedente da ministra Nancy Andrighi, de 2017, que reafirma a tese quanto à possibilidade do despejo, apesar da ministra ter restado vencida no julgamento de um dos leading cases, o CC 123.116/SP, quando declarou a competência do juízo recuperacional em circunstância semelhante, envolvendo contrato de locação. A referência a tal precedente pelo ministro Raul Araújo apenas reforça a consolidação do entendimento na Corte e a relevância da recente decisão, proferida em processo de grande relevância no cenário nacional.

Registre-se que o consolidado entendimento da Corte Superior encontra respaldo na ideia de que o Poder Judiciário deve exercer um papel de supervisão no processo de recuperação, ao qual não cabe recuperar a empresa, mas tão somente zelar pelas condições legalmente estabelecidas no plano de recuperação judicial, aplicando-se a legislação vigente [2].

Tem-se, ainda, como fundamento ao entendimento da Corte Superior a exceção prevista no artigo 6º, §1º da Lei 11.101/05, quanto à possibilidade de prosseguimento de demanda ilíquidas contra a empresa em recuperação judicial, mesmo durante o stay period, bem como no direito constitucional à propriedade, previsto no caput do artigo 5º da Constituição de 1988.

Compreende-se a ação de despejo como demanda ilíquida, pois a ordem de despejo não se confunde com eventual execução de valores devidos pelo locatário relativos a aluguéis e consectários, esses, sim, submetidos ao juízo da recuperação judicial, quando decorrentes da ocupação do imóvel anterior ao pedido de recuperação judicial.

Assim, vê-se que, apesar de a discussão gravitar entre o direito de propriedade do locador e o direito à preservação da empresa do locatário em recuperação judicial, ambos de substancial relevância no ordenamento jurídico nacional, a jurisprudência do STJ se consolidou, há quase uma década, no sentido da não submissão da ação de despejo à competência do juízo da recuperação judicial, o que apenas contribui para a segurança jurídica do mercado nacional varejista, imobiliário e de shopping centers.

Cabe relembrar que o contrato de locação em shopping center conta com inúmeras particularidades que o tornam uma espécie sui generis do tradicional contrato de locação, sem, contudo, perder sua natureza locatícia. O senso de coletividade é uma característica marcante desse tipo de contratos, que costumam prever o pagamento de aluguéis percentuais calculados sobre o faturamento das lojas, criando-se um forte vínculo econômico entre o empreendedor-locador e os lojistas-locatários, de modo que o sucesso individual de cada loja reflete de forma positiva no empreendimento como um todo e vice-versa.

Por outro lado, o mesmo vale para eventuais falhas no desempenho individual dos lojistas que podem influenciar diretamente nos resultados econômicos do todo e na imagem do empreendimento, sobretudo quando se estiver tratando de locatários de imóveis relevantes no empreendimento como acontece com as chamadas lojas satélites.

A possibilidade de despejar o lojista inadimplente, ainda que em recuperação judicial, confere ao empreendedor maior confiança para celebrar negócios futuros e facilita sua organização orçamentária.

A ação de despejo, portanto, é uma ferramenta processual de extrema relevância para os empreendedores de shopping center que possibilita a imediata e adequada retomada do imóvel, principal preocupação do empreendedor quando há um lojista inadimplente, eis que, uma vez restituída a posse, cessará o prejuízo decorrente da ocupação sem a devida contraprestação, possibilitando a locação do espaço a eventual novo lojista adimplente.

Além do prejuízo financeiro suportado pelo empreendedor pela ocupação desprovida de pagamento, a manutenção do lojista em recuperação judicial pode ser também prejudicial à coletividade do empreendimento, sobretudo em seu aspecto reputacional. A permanência prolongada da loja sabidamente em recuperação judicial torna evidente a instabilidade do negócio e a perda, ainda que parcial, de faturamento do shopping, o que pode repelir eventuais investidores.

Ademais, no tocante ao princípio da preservação da empresa, destaca-se que, assim como a empresa em recuperação judicial, o empreendedor de shopping center também representa uma fonte produtora de bens e serviços, que gera renda e emprego a nível local e regional, dada a proporção dos empreendimentos. Serve, ainda, como um foco de potencialização de novos negócios, por meio da abertura de novas lojas, oferta de novos serviços, realização de eventos com a contratação de empresas prestadoras de serviços, dentre outras atividades realizadas por um shopping center.

Por isso, ainda que se possa argumentar pela preservação da atividade do lojista em recuperação judicial, é inegável que a sua inadimplência influencia na organização financeira do empreendimento como um todo e pode representar obstáculo para a concretização de projetos que beneficiariam todo o conglomerado comercial, e não apenas a uma loja individualmente, como acontece com a manutenção forçada da locação sem a devida contraprestação, especialmente quando se estiver diante de empresas com dívidas que ultrapassam as dezenas de bilhões de reais como, infelizmente, é o caso das Americanas.

Celebre-se, assim, a decisão proferida pelo ministro Raul Araújo, no Conflito de Competência nº 196.038/RJ, por sua relevância para o setor de shopping centers, bem como por contribuir para a uniformização da jurisprudência pátria e para sua manutenção estável, íntegra e coerente, conforme previsto pelo artigo 926 do Código de Processo Civil, conferindo maior segurança jurídica ao ambiente de negócios do país.

 

[1] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação de empresas. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 45.

[2] TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: falência e recuperação de empresas. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

 

Fonte: Conjur.

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