Ir para o Conteúdo da página Ir para o Menu da página

Como você avalia a
experiência em nosso site?

x
Avaliacao

Ruim

Ótima

Whatsapp

NOTÍCIAS

Sem Foto

13-11-2025 

'Concordatização' da recuperação judicial angustia credores, asfixia devedores e engessa magistrados

A reforma da Lei 11.101/2005, promovida em 2020, foi anunciada como um passo decisivo para modernizar o sistema de insolvência brasileiro. Pretendia-se aproximá-lo dos padrões internacionais, estabilizar o sistema de insolvência, aprimorar o financiamento na crise e tornar o processo mais eficiente.

Cinco anos depois, contudo, o que vemos é um cenário mais complexo e, paradoxalmente, mais frágil. Observa-se que a recuperação judicial se distanciou de seu propósito original e vem apresentando traços nítidos de um fenômeno que vem sendo tratado como uma “concordatização da RJ”, tornando o procedimento cada vez mais fragmentado, litigioso e incapaz de coordenar credores e devedores em torno de uma mesa única.

Com efeito, não se olvida que o modelo brasileiro de reestruturação empresarial apresenta méritos inquestionáveis, como o financiamento DIP, a consolidação de práticas negociais modernas, tratando-os como pontos de evolução institucional. Reconhecer esses avanços é indispensável para uma crítica honesta do sistema. Ainda assim, é precisamente a partir desse reconhecimento que se torna possível enfrentar seus aspectos disfuncionais, que são o foco deste trabalho.

Embora silenciosos, os efeitos decorrentes da reforma legislativa são evidentes: O procedimento fragmentou-se, perdeu abrangência, multiplicou exceções, intensificou o contencioso e aprofundou inseguranças de todos os lados, conduzindo o processo recuperacional a um estágio em que todos os agentes sofrem – credores, empresas e até mesmo o próprio Poder Judiciário.

Ao dividir a análise em duas lentes — a dos credores e a das empresas —, percebe-se que o problema não reside na má-fé dos atores, mas na arquitetura deficiente do sistema, construída por um conjunto de normas que, em vez de favorecer a reorganização, a dinamitaram por dentro.

A ótica dos credores: entre o privilégio aparente e o prejuízo real

À primeira vista, poder-se-ia imaginar que a multiplicação de créditos não sujeitos à recuperação judicial, especialmente após a reforma, representaria um ambiente favorável para os credores. Afinal, quem está fora da RJ teoricamente se protege da mesa de negociação e mantém acesso à execução individual.

Esse raciocínio é deveras sedutor, porém completamente equivocado.

A natureza econômica do direito da insolvência é coletiva. Quando parcelas significativas do passivo abandonam a esfera de coordenação, o que se cria é uma dinâmica de corrida desordenada aos ativos. Credores fiduciários, detentores de CPR, arrendadores, instituições financeiras estruturadas em operações de securitização, financiadores com garantias firmadas via mercado de capitais, todos disputam pequenos bolsões de liquidez enquanto o negócio ainda respira.

Cada execução individual, cada medida de retirada de bem essencial, cada penhora incidental, enfraquece a operação e reduz o valor global disponível para todos, inclusive para quem executa.

É o clássico “jogo dos comuns”: todos querem preservar individualmente seu crédito; o resultado coletivo é destruição de valor.

A extraconcursalidade excessiva, portanto, não protege credores; ela os descoordena.

Não é raro ouvir que determinados credores — especialmente os fiduciários — estariam protegidos das ineficiências da recuperação judicial. Afinal, o crédito garantido por alienação fiduciária não se submete aos efeitos da RJ; sua execução não depende da assembleia; sua prioridade é “absoluta”.

É tentador concluir, portanto, que esses credores habitam “uma zona de conforto” fora da crise. Contudo, nada poderia estar mais distante da realidade.

Os credores fiduciários que financiam bens móveis de capital, especialmente máquinas agrícolas, colheitadeiras, tratores, implementos essenciais ao produtor rural ou a indústrias intensivas em ativos de produção, vivem a angústia de um sistema que não lhes oferece previsibilidade mínima.

A teoria é simples: se o crédito é extraconcursal, o bem pode ser retomado; se o bem é essencial, a retomada pode ser temporariamente obstada; e se o stay period está vigente, a discussão se desloca para a essencialidade. A prática é um labirinto.

O credor não sabe se poderá consolidar a propriedade, porque:

  • a essencialidade é avaliada caso a caso, sujeita a interpretações amplas;
  • stay period tornou-se campo de batalha, com contagens distintas e decisões contraditórias;
  • a própria categoria “bem de capital” se expandiu na jurisprudência;
  • a recuperação judicial pode durar anos, com sucessivas medidas cautelares impedindo a retomada.

Nesse sentido, o que deveria ser uma blindagem do credor converte-se em um limbo jurídico. O fiduciário não consegue executar, não recebe, não sabe se poderá recuperar o bem e, não bastasse, ainda vê o ativo se depreciar enquanto alimenta custas e recursos.

Cria-se um paradoxo cruel: O credor fiduciário, mesmo legalmente protegido, é um dos maiores prejudicados pela instabilidade do sistema. E isso acontece porque, ao ampliar indiscriminadamente as ilhas de extraconcursalidade, a legislação não entregou a contrapartida institucional indispensável, qual seja um stay period eficiente, claro, previsível e limitado no tempo. Em outras palavras, o credor fiduciário ficou “fora da RJ”, mas preso às suas incertezas.

A consequência direta é a precificação punitiva do crédito. Diante de um sistema que não consegue estabilizar a crise, o mercado eleva spreads, encurta prazos, exige garantias robustas e foge do crédito produtivo. É assim que empresas solventes, mas alavancadas, já começam sua jornada pagando mais caro apenas porque o ambiente jurisdicional brasileiro é instável.

O credor não sofre apenas no momento da crise — sofre antes dela. A instabilidade institucional é precificada ex ante, e essa conta acaba recaindo sobre todos.

Além disso, a litigiosidade do stay period contribui para o ambiente de incerteza. A lei determinou um prazo de 180 dias, prorrogável uma única vez. Porém, na prática, as disputas sobre contagem, sobre ocorrência de culpa da recuperanda (ou ausência dela), sobre suspensão por eventos supervenientes e sobre medidas individuais fazem com que o stay deixe de ser instrumento de estabilização e se converta em objeto de constante hostilidade.

Consequentemente, longe de encontrar previsibilidade, o credor encontra uma guerra processual cujo corolário é dramático: quanto mais exceções o sistema cria, mais todo o sistema perde. A promessa de proteção individual se converte em prejuízo coletivo.

A ótica das empresas: um processo que não coordena, não estabiliza e não reorganiza

Se para os credores o sistema atual produz insegurança, para as empresas em crise ele cria verdadeira asfixia.

O objetivo da recuperação judicial é permitir que empresas viáveis superem um episódio de iliquidez, reorganizem seus passivos, preservem empregos e maximizem o valor econômico-social da atividade, sempre primando pelo princípio da preservação da empresa.

Mas, para que isso aconteça, é indispensável que haja um único campo de jogo, com todos os agentes sentados à mesa sob as mesmas regras. A empresa em crise não consegue se reestruturar se parte relevante de seu endividamento atua fora do processo recuperacional, executando, constrangendo e sangrando sua liquidez enquanto ela tenta renegociar com os demais.

Esse é o primeiro grande estrangulamento: a não sujeição asfixia a empresa exatamente no momento em que ela mais necessita de oxigênio. E aqui se revela o paradoxo estrutural da reforma: ao ampliar a blindagem de certas classes de credores, a lei enfraqueceu a capacidade de reorganização da própria recuperanda.

O produtor rural que ingressa em recuperação — e que depende de máquinas financiadas — é um exemplo contundente. Se o credor fiduciário inicia ou prossegue a execução, o produtor perde o ativo essencial para plantar; se o juiz impede a retomada, o credor se desorganiza; se ambos litigam, o processo trava. E o que deveria ser o ambiente de reconstrução da atividade se transforma em um cerco onde a empresa tenta sobreviver enquanto litiga, negocia, produz e se defende simultaneamente.

A recuperação judicial brasileira não entrega o que promete. Ao invés de oferecer um período de estabilização, uma mesa negocial ampla, previsibilidade, tratamento uniforme dos credores relevantes e coordenação entre as partes, o que efetivamente entrega é subjetividade na análise da essencialidade, fragmentação de classes, insegurança sobre o alcance e duração do stay period, execuções paralelas e um ambiente que premia a litigância de desgaste.

Tais fatos tornam a comparação com o Chapter 11 do US Code praticamente inevitável.

Isso porque o devedor que ingressa no sistema norte-americano encontra automatic stay pleno, que se ativa por força de lei e vigora sem a fragmentação brasileira. Todos os credores relevantes ficam sujeitos ao processo, salvo exceções mínimas. A empresa, portanto, opera sob regras claras e previsíveis, podendo negociar com racionalidade.

Não é por acaso que companhias aéreas brasileiras — Latam e GOL, por exemplo — preferiram o sistema americano ao brasileiro, ao perceberem que o sistema brasileiro não foi capaz de produzir os efeitos esperados, a exemplo do que ocorreu com a Avianca.

Não é que o Chapter 11 seja “melhor”. O que se percebe é que ele funciona como sistema, enquanto a RJ brasileira funciona como concessão fragmentada, acarretando um fenômeno da fuga institucional: empresas globais, e agora nacionais, migram para ambientes que oferecem aquilo que o sistema brasileiro não consegue entregar: coordenação, previsibilidade e abrangência.

O Judiciário como agente engessado: entre o dever de decidir e a insuficiência das regras

Para além das implicações aos credores e às empresas devedoras, é comum — e muitas vezes injusto — imputar ao Poder Judiciário a responsabilidade pelas distorções da recuperação judicial.

Critica-se o magistrado que indeferiu a retomada do bem essencial; critica-se o que prorrogou o stay; critica-se o que deixou de prorrogá-lo; critica-se o que reconheceu sujeição; critica-se o que afastou a sujeição; critica-se o que interpretou extensivamente; critica-se o que aplicou literalidade estrita.

No entanto, é preciso observar que os magistrados também são vítimas de um sistema legislativo insuficiente, contraditório e fragmentado. Isso porque a Lei 14.112/2020 ampliou exceções sem oferecer critérios objetivos para lidar com elas. Criou prioridades absolutas sem estabelecer mecanismos de compatibilização. Estabeleceu prazos rígidos, mas permitiu exceções por culpa (ou ausência de) da recuperanda. Instituiu a categoria dos bens de capital essenciais, mas não delimitou parâmetros técnicos claros para sua aferição. Incluiu mecanismos avançados de financiamento DIP, mas não ofereceu garantias sistêmicas que reduzissem o risco do credor.

Nesse sentido, o magistrado atua permanentemente em um campo minado. Se decide pela essencialidade do bem, viola a extraconcursalidade do crédito. Se decide pela retomada imediata, inviabiliza a operação empresarial. Se não prorroga o stay period, condena a RJ à desintegração. Se prorroga, o faz em confronto com a literalidade da lei.

É um sistema que cobra perfeição do Judiciário, mas lhe entrega um arsenal normativo insuficiente, contraditório e desalinhado com a lógica econômica da insolvência. E o resultado não é apenas insegurança jurídica: é o desgaste institucional causado por uma legislação que não oferece ao juiz os instrumentos necessários para reduzir assimetrias, coordenar credores e estabilizar o processo.

Um sistema que aprisiona todos: credores, devedores e juízes

A partir dessa visão integrada, percebe-se que a “concordatização” da recuperação judicial não prejudica apenas credores ou apenas empresas. Ela prejudica todos, inclusive o próprio Estado-juiz.

Os credores enfrentam insegurança jurídica, dispersão de execuções, perda de recuperação global, aumento do risco e, portanto, do custo do crédito. Por sua vez, as empresas enfrentam impossibilidade de estabilizar a crise, sangria de ativos essenciais, litigiosidade permanente e ausência de mesa de negociação coletiva e efetiva.

O que se tem hoje é um sistema que funciona como terra de ninguém: credores privilegiados correm sozinhos, mas encontram carcaças; credores sujeitos ficam presos em longas negociações esvaziadas; empresas tentam reorganizar-se num ambiente que não lhes oferece estabilidade mínima. E, paralelamente, o magistrado sofre porque não tem estrutura normativa adequada.

Não há vencedores. Há apenas um mecanismo que deixa a desejar no que diz respeito ao cumprimento do seu objetivo econômico, qual seja coordenar a crise empresarial de maneira eficiente.

Conclusão

O custo da “concordatização” é pago por todos, tornando necessário reconstruir a racionalidade econômica antes que o sistema colapse.

Com efeito, não é possível reformar o sistema de reestruturação de empresas apenas por meio de incrementos pontuais. É preciso reconstruir sua lógica fundamental trazendo todos os credores relevantes para a mesa, com exceções mínimas; instituindo um automatic stay estável, plenamente eficaz e limitado no tempo; criando regras claras sobre essencialidade e compatibilização com garantias fiduciárias; e reduzindo a subjetividade que aprisiona o magistrado.

O sistema brasileiro não precisa ser mais complexo, precisa ser mais racional. Enquanto não se enfrentar essa realidade, continuaremos presos a um modelo que não preserva empresas, não protege credores e não provê segurança jurídica aos juízes.

 

Fonte: Conjur.

Perguntas e respostas

Sem Foto