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23-04-2024
Cessão fiduciária de recebíveis à luz da preservação da empresa em recuperação
1. Insuscetibilidade do crédito fiduciário à execução concursal
A ressalva é expressa e vem contida no §3º, do artigo 49, da Lei de Recuperação e Falência (LRF): “Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis (…) seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial”.
Na hipótese, não incide a novação da obrigação, de modo que a execução do contrato deverá ocorrer na forma pactuada anteriormente, não podendo o bem ser retirados do devedor, uma vez que constituem a garantia de terceiro (credor).
Preliminarmente, a cessão fiduciária é espécie da qual o negócio fiduciário é gênero. É o negócio jurídico pelo qual o cedente transfere ao cessionário a titularidade de direitos ou títulos de crédito em face de terceiro, com a finalidade de garantir a satisfação de uma dívida [1].
Em termos de legislação aplicável, tem-se a Lei nº 9.514/1997, no artigo 17, inciso II, que instituiu a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, e a Lei nº 10.931/2004, que dispõe sobre a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito.
Em se tratando da cessão fiduciária de recebíveis, o credor deverá apropriar-se de eventual garantia na forma pactuada no instrumento celebrado. Dessa disposição advém a expressão “trava bancária” (“trava”), utilizada para designar o tratamento emprestado pelo sistema recuperacional à essa modalidade de crédito [2].
A exclusão dos referidos créditos pode vir a esvaziar o instituto da recuperação judicial à medida em que agentes econômicos tendem a optar por essa modalidade e não submeter seus créditos ao concurso, desde que perfectibilizado o negócio fiduciário antes do requerimento judicial de recuperação. Em consequência disso, parcela reduzida do passivo da recuperanda estaria sujeita à renegociação.
A Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais do Tribunal de Justiça do de São Paulo firmou, de forma pioneira, entendimento, atualmente sumulado, que exclui os créditos decorrentes de cessão fiduciária de recebíveis dos efeitos da recuperação judicial [3]. Da lavra do desembargador Romeu Ricupero [4], o acórdão cristalizou entendimento assim consolidado na Súmula 59 do Tribunal Bandeirante: “Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária”.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, reafirmou o entendimento calcado na interpretação já adotada (extensiva) para que a alienação fiduciária de coisa móvel e a cessão fiduciária de créditos recebíveis se equivalham, em remissão à iterativa jurisprudência da corte. Nesse sentido, em outubro de 2023, no julgamento dos recursos AgInt no AREsp nº 2.032.341/SP e nº 1.942.555/RJ, as 3ª e 4ª Turmas decidiram pela reforma dos acórdãos locais que liberaram garantias de cessão fiduciária de créditos em procedimentos recuperacionais.
É inafastável, portanto, seja pela legislação em vigor, seja pelo entendimento da Corte Superior, que todos os recebíveis cedidos até a data do pedido de recuperação pertencem à instituição financeira credora e não podem ser liberados em favor do devedor, para formação de capital de giro e garantir a continuidade das atividades, por exemplo, ressalvados os recebíveis contemplados por operações levadas a efeito após a data do pedido de recuperação, sob pena de violação do princípio par conditio creditorum [5].
2. O princípio da preservação da empresa viável
Historicamente falando, a preservação da empresa representa a continuação à realização da atividade, em seu conjunto, cumprindo a função social independentemente do modelo societário adotado. Partindo da interpretação deôntica dos artigos 2º c/c 48 da LRF tem-se que o devedor em crise econômico-financeira é empresário distinto das classes mencionadas no artigo 2º, exerce regularmente a atividade empresária há mais de dois anos e atende aos demais requisitos previstos no artigo 48, sendo a ele franqueada a possibilidade de requerer em juízo a recuperação de seus negócios com vistas a preservar empregos, meios produtivos, interesse dos credores, função social e estímulo à atividade empresarial [6].
É difícil equilibrar o fiel da balança entre o interesse do credor, ao qual a LRF atribuiu protagonismo, e a necessidade da preservação da empresa e a quebra da trava, de seu turno, tem o condão de afastar parcial ou totalmente os direitos dos credores fiduciários, o que suscita questionamentos e causa hesitações.
O princípio ora em comento conta com a mensuração, pelo credor e do juízo, da viabilidade econômica da empresa e da recuperabilidade do devedor, bem como a avaliação do ganho da preservação da atividade empresarial viável sob a condução do devedor em comparação ao valor dos ativos na liquidação falimentar, algo que envolve apreciação subjetiva dos agentes e discussão sobre o melhor método a ser empregado, o que exige tempo e permite variação [7].
À guisa de exemplo da repercussão da controvérsia, para os adeptos da teoria distributiva, o processo de insolvência não se restringe ao interesse do credor, em última instância, funciona como política pública, e deveria proteger toda a coletividade que poderia ser afetada pela interrupção da atividade empresária. Aos que entendem que o sistema de insolvência se restringe à maior satisfação exclusiva dos credores, busca-se a maximização do valor dos ativos do devedor, na proteção dos interesses de todos os envolvidos com o desenvolvimento da atividade empresarial [8]. No entanto, é tarefa do operador do direito tentar acomodar os interesses envolvidos, é o que se verá a seguir.
3. Conciliação entre o direito de propriedade e a eficácia do procedimento recuperacional
Do ponto de vista prático, e no silêncio da legislação, a conciliação de interesses exige a identificação do meio-termo, e.g., se não fossem suspensas as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas eliminada a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante o stay period, todos os direitos relativos à propriedade seriam, após a elaboração e aprovação do plano, devolvidos ao seu titular. Essa foi uma das conclusões do Parecer nº 534/2004.
O senador Ramez Tebet, na ocasião, havia concluído o referido parecer pela necessária conciliação entre o direito de propriedade e a proteção mínima necessária à eficácia do processo de recuperação judicial: “(…) cabe tratar de questão semelhante: a previsão, na recuperação judicial, da continuação das ações e execuções para recebimento de créditos garantidos por penhor sobre créditos(…) trata-se de conflito de interesses entre credores e entre credores e devedores, embora não esteja em jogo o direito de propriedade, mas a efetividade da garantia real” [9].
Já que não se sujeitam à recuperação judicial, por força do artigo 49, §3º, da LRF, naturalmente o plano aprovado deverá prever o pagamento desses credores em condições satisfatórias, sob pena de estes exercerem o direito de retirada dos bens e inviabilizarem a empresa. A inspiração para essa solução decorre do disposto no artigo 170 da Constituição, que tutela, como princípios da ordem econômica, o direito de propriedade e a sua função social.
São esses os parâmetros mais claros para resolução da questão insculpidos na própria Constituição Federal, no artigo 170. Dalí se extraem diversos princípios que orientam a ordem econômica. Contudo, parece ser possível destacar três que se sobrepõem, quais sejam, a valorização do trabalho humano, a livre-iniciativa e a busca da justiça social. E medidas que têm por objetivo a justiça social podem não precisam (nem devem) ser totalmente incompatíveis com a livre-iniciativa, e vice-versa.
No caso, não parece haver uma alternativa senão dar prevalência ao princípio mais diretamente afetado pela medida específica em análise [10]. Nesse ponto reside a difícil tarefa do Poder Judiciário em identificar, sobretudo com o advento da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), quando a quebra da trava poderá esvaziar a garantia fiduciária.
4. Considerações finais e análise propositiva
Tecidas essas considerações, fato é que a resposta à indagação se o titular de cessão fiduciária de crédito está enquadrado no conceito de “titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis”, para não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, é sim.
O STJ conferiu a interpretação que reputou mais coerente com o instituto da propriedade fiduciária, de modo que, estando distanciado referido instituto jurídico dos interesses dos sujeitos envolvidos na recuperação — haja vista estar o bem alienado vinculado especificamente ao crédito garantido —, seria irrelevante a identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o objeto da garantia ou com a própria sociedade recuperanda, mantida, assim, a restrição do artigo 49, §3º, da LRF [11].
Reconhecido o brilhantismo de todos os entendimentos expostos adrede – pela manutenção da trava –, filia-se à equiparação da cessão fiduciária dos recebíveis à figura prevista pelo artigo 1.431, do Código Civil – “constitui-se o penhor pela transferência efetiva da posse que, em garantia do débito ao credor ou a quem o represente, faz o devedor, ou alguém por ele, de uma coisa móvel, suscetível de alienação”. O penhor é direito real, acessório, que se perfectibiliza com a tradição do bem. O credor, por seu turno, figura como depositário do objeto empenhado, que, no caso de não ser paga a dívida, é legitimado a excutir o penhor.
Comumente, o penhor de direitos e títulos de crédito abrange ações negociadas em bolsa de valores ou no mercado futuro, títulos nominativos da dívida pública, títulos de crédito em geral, créditos garantidos por outro penhor, entre outros. No caso do título de crédito, não é oferecido em garantia o instrumento material, mas sim o direito que ele representa, no entanto, a hipótese aventada é restrita aos bens móveis [12].
Assim, seria possível aplicar ao caso concreto a regra diversa daquela do §3º. Uma vez equiparados os institutos, seria atraída a aplicação do §5º, do artigo 49: “Tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial”.
A ressalva que se faz nesse ponto é a de que somente haverá determinação sobre se o plano de recuperação modificou ou não as características do contrato de mútuo, garantido na forma do artigo 49, § 5º, após a aprovação do plano em assembleia geral de credores e da respectiva homologação, não bastando a aprovação do plano em assembleia, impõe-se que haja a concessão da recuperação judicial, já que o plano pode, eventualmente, não ser objetado, e, assim, ficar isento do escrutínio assemblear [13].
A referendar esse entendimento, há o posicionamento de abalizada doutrina, e.g., Fábio Ulhoa Coelho e Melhim Namem Chalhub, no sentido de que não poderiam tais créditos ser excluídos da abrangência da recuperação judicial, principalmente, porque a propriedade do bem dado em garantia continua a ser do devedor e, como tal, deve ser utilizado para pagamento dos credores constantes no plano de recuperação judicial [14].
Essa alternativa tem potencial de acomodar o interesse de agentes econômicos, na qualidade de credores, no interesse de quem (também) é orientado o processo de recuperação judicial, e, em reverência ao princípio da viabilidade da empresa, flexibilizar a trava a bem da preservação da atividade empresária.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Cessão Fiduciária de Títulos Creditórios e a Recuperação Judicial do Devedor Cedente. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Magister. vol.37. jul./ago. 2010.
[2] AYOUB, Luiz R. A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9788530991357, p. 65. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530991357/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[3]PEREIRA CALÇAS, Manoel de Queiroz; SILVA, Ruth Maria Junqueira de Andrade Pereira e. Da cessão fiduciária de crédito na recuperação judicial: análise da jurisprudência. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 16, nº 39, p. 9-19, Janeiro-Março/2015, p. 14-15. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/CadernosJuridicos/37de%2001.pdf?d=636688261614679211 . Acesso em: 14 abr. 2024.
[4] TJSP, AI nº 4567215820108260000, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Rel. Des. Romeu Ricupero, julgado em 17/05/2011.
[5] TJSP; Agravo de Instrumento 2047748-33.2019.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jandira – 1ª Vara; Data do Julgamento: 24/09/2019.
[6] NEGRÃO, Ricardo. Preservação da empresa. Editora Saraiva, 2019. E-book. ISBN 9788553615568, p. 31; 35. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553615568/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[7] CEREZETTI, Sheila Cristina Neder. A recuperação judicial de sociedade por ações: o princípio da preservação da empresa na Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 382.
[8] SACRAMONE, Marcelo B. Recuperação judicial: dos objetivos ao procedimento, incentivos regulatórios do sistema de insolvência brasileiro. Editora Saraiva, 2024. E-book. ISBN 9786553629387, p. 17. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553629387/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[9] BRASIL. Senado Federal. Lei de Recuperação de Empresas. Lei nº 11.101, de 2005. Brasília, 2005, p. 38. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=580933. Acesso em: 14 abr. 2024.
[10] FILHO, Calixto S. Direito Concorrencial. Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559640836, p. 192. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559640836/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[11] STJ – REsp: 1938706 SP 2020/0312022-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 14/09/2021, T3 – 3ª TURMA, Data de Publicação: DJe 16/09/2021.
[12] GONÇALVES, Carlos R. Direito civil brasileiro: direito das coisas. v.5. Editora Saraiva, 2024. E-book. ISBN 9788553622405, p. 251. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788553622405/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[13] AYOUB, Luiz R. A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9788530991357, p. 68. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530991357/. Acesso em: 14 abr. 2024.
[14] VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; CHAGAS, Neide Adriana das. As controvérsias relacionadas à trava bancária, no âmbito da recuperação judicial. Revista Eletrônica do Curso de Direito – PUC Minas Serro – n. 13 – Jan./Julho 2016, p. 26.
Fonte: Conjur.