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10-08-2023
Ato cooperativo, sua sujeição à RJ e equiparação à operação de mercado
A Lei de Recuperação Judicial e Falência de empresas, em seu artigo 2º, II, traz em seu texto normativo a seguinte proposição: "Artigo 2º Esta Lei não se aplica a: II – instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores".
Mais à frente do diploma especial de soerguimento, o artigo 6º, §13º, na primeira parte do excerto legal, diz: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971 [...]". O trecho negritado, é exatamente o que será discutido neste artigo. Dito isto, indaga-se: o que são atos cooperativos?
Pois bem. A Lei nº 5.764/1971, que define a política nacional de cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, além de estar referenciado no parágrafo 13º do artigo 6º, traz e estipula no artigo 79, caput e parágrafo único, o que seria um ato cooperativo.
O artigo 79 assim preleciona: "Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais".
Pela leitura do caput do referido dispositivo, tem-se o entendimento de que os atos cooperativos são aqueles realizados entre as cooperativas e seus cooperados (leia-se associados) para a consecução dos objetivos sociais.
Vinculado a este texto normativo, está o parágrafo único, que assim dispõe: "O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria".
Buscando elucidar os conceitos dos termos traduzidos acima, é necessário imergir na criação da Lei que definiu e estatuiu a Política Nacional de Cooperativismo. No projeto de Lei que criou a legislação cooperativista, assim ficou evidenciado pelos Legisladores na exposição de motivos nº 45 de 1º de abril de 1971 — de lavra do Ministério da Agricultura [1]: "Excelentíssimo Senhor Presidente da República: Temos a honra de submeter a Vossa Excelência o incluso projeto de Leu que "define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das Sociedades Cooperativas e dá outras providências". [...] Dadas as características "sui-generis" das cooperativas, que são sociedades civis, não sujeitas à falência e sem objetivo de lucro divergindo seus atos da atividade puramente comercial, foi definido o 'ato cooperativo', caracterizando perfeitamente as relações entre as entidades entre si e seus associados [...]".
Do excerto mencionado, retirado do site da Câmara dos Deputados, percebe-se que as cooperativas, qualquer delas (crédito, agrícola etc.), em virtude do texto convertido em lei não as distinguir, são sociedades civis, sem objetivo de lucro e que, essencialmente por isso, as tornam distintas no mercado, uma vez que não realizam atividade puramente comercial, mas, sim, um ato cooperativo caracterizando/justificando a relação privilegiada entre cooperativa e cooperado, que a Lei do Cooperativismo buscou proporcionar.
Anteriormente a Lei nº 5.764/1971, a Lei nº 4.595/1964 que dispunha sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, tratou sobre os fornecimentos de crédito, distinguindo de imediato a cooperativa de crédito das instituições financeiras. O artigo 25 da referida norma, não por coincidência, tratou propositadamente, de diferenciar a forma de constituição das cooperativas em relação as demais instituições financeiras.
Ainda, o artigo 40 da mesma norma de 1964, colacionou que as cooperativas de crédito poderiam, sim, fornecer crédito aos seus cooperados, o que evidenciava que a concessão de crédito pelas cooperativas tratava-se de um ato cooperado, pois não era permitido a realização de crédito financeiro com terceiros não cooperados. Muito diferente das demais instituições financeiras, que por sua vez, não ficam restritas a fornecer créditos somente aos seus clientes.
Percebe-se, que desde os primórdios legislativos, a cooperativa de crédito tem tratamento e regime jurídico diferenciado das instituições financeiras. Em 2009 foi promulgada a Lei Complementar nº 130, de 17 de abril de 2009, que revogou e alterou significativamente alguns dispositivos normativos da Lei nº 4.595/1964. Mas, mesmo assim, nada foi inovado no sentido de afirmar que a cooperativa de crédito não realizava atos cooperados ou se equiparavam as demais instituições financeiras, visto que seu regime jurídico permaneceu inalterado.
Colaborando com esse entendimento, o segundo artigo da LC nº 130, quando criada, reafirmou aquilo que as Leis anteriores já delimitavam, ou seja, a cooperativa de crédito fica vinculada a fornecer créditos aos seus cooperados, não podendo entabular negócio creditício com terceiros não associados, sob pena de incorrer em ato não cooperado.
Neste mote, é intrínseco ponderar que, em que pese as cooperativas serem reguladas pelo Sistema Financeiro Nacional, isso não as equipara as demais instituições financeiras, como por exemplo os bancos. Ser regulado pelo SFN não enseja uma desconfiguração automática do ato cooperado. Trata-se de apenas um sistema regulador, mas que nada interfere, sobremaneira, no regime jurídico social da cooperativa, pois, ululantemente, tem estatuto social próprio que define as finalidades sociais a serem alcançadas.
Seguindo esse entendimento, no ano de 2022, foi promulgada a Lei Complementar nº 196, e em texto publicado no site do Senado [2], registrou-se, novamente, que: "O SNCC é composto por cooperativas de crédito, que são instituições financeiras formadas pela associação de pessoas para prestar serviços financeiros exclusivamente aos seus associados. Estes, por sua vez, agem como donos e como usuários ao mesmo tempo: participam da gestão da cooperativa e usufruem de seus produtos e serviços (como conta corrente, aplicações financeiras, cartões de crédito, empréstimos e financiamentos)".
Após essa análise das legislações no decorrer dos tempos, passa-se para o contexto factual do artigo 6º, 13º da Lei nº 11.101/2005, inserido pela Lei nº 14.112/2020 conjuntamente com o artigo 79 da Lei Cooperativista, que têm gerado divergências de entendimentos.
Com efeito, dos textos normativos elencados acima, não se presencia dualidade de interpretação jurídica, pois ambos os artigos são muito claros ao dispor o que é um ato cooperativo e sua não submissão ao regime concursal do processo de soerguimento.
O que começou a gerar a divergência nos tribunais foi a disposição do parágrafo único do artigo 79 e aqueles trechos grifados e indicados no começo desta narrativa, quais sejam: "para a consecução dos objetivos sociais" e "não implica operação de mercado".
Dito isto, é inolvidável que, estando previsto no estatuto social da cooperativa que um dos objetos é o fornecimento de crédito aos seus cooperados, certamente se respeitará o artigo 79 e, portanto, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial.
O parágrafo único do artigo 79, em razão de sua forma mal redigida, trouxe consigo uma interpretação complexa, mas que não se pode desconfigurar a sua real essência. O respectivo texto, diz assim: "O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria".
Essa redação do legislador, permitiu o início, ainda que embrionário, de uma discussão sobre a palavra implicar. Alguns entendem que o ato cooperativo não pode ser uma operação de mercado. Outros entendem que por ser o ato cooperativo algo genérico (pois a lei não especificou/taxou), mas que realizado somente entre cooperativa e cooperados, não se equipararia a uma operação de mercado, justamente em razão do regime jurídico de mútuo envolvendo as partes.
A segunda linha de pensamento, me parece ser a mais adequada, uma vez que o verbo implicar, tem sentido de "ter como consequência", ou seja, o ato cooperativo seja fornecimento de crédito, insumos e entre outros, ele jamais será uma operação de mercado, por mais que possa ser semelhante aos atos praticados por outrem.
Nesse sentido, o ilustre desembargador Ricardo Negrão assim ponderou ao proferir o seu voto no Recurso de Agravo de Instrumento nº 2235693-61.2022.8.26.0000: "Ademais, a interpretação atenta do parágrafo único, do artigo 79, da Lei nº 5.764/71 permite concluir que o verbo implicar possui o sentido de 'ter como consequência' ou 'acarretar', de forma a apenas determinar que a prática de ato cooperativo nos termos do caput não constitui operação de mercado. Desse modo, não há como acolher o entendimento contrário, sustentado pelas Agravantes, de que o dispositivo legal exclui as operações de mercado do conceito de 'ato cooperativo'".
Corolário disto, a interpretação não pode ser outra, tendo em vista que a lei não diz expressamente que o ato cooperativo não pode ser uma operação de mercado. A lei diz exatamente ao contrário, que o ato cooperativo (fornecimento de crédito, empréstimos, financiamentos etc.) por sua natureza jurídica não será uma operação de mercado nas mesmas condições que as demais instituições financeiras. Ora, se está previsto que a finalidade social da cooperativa é conceder crédito aos seus cooperados, o fim social foi cumprido e, portanto, trata-se de inconteste ato cooperado.
Esse imbróglio de que o ato cooperado não pode ser uma operação de mercado teve seu nascedouro no fato de alguns entenderem que os juros da cooperativa, os sistemas de amortização e correções monetárias, são características que visam o lucro da operação, equiparando-se as demais instituições financeiras, que tem por finalidade o lucro. Neste ponto, elucidando de forma didática, em acórdão da lavra do excelentíssimo ministro Luís Felipe Salomão no REsp 1141219/MG, em que é exposto o entendimento do C. STJ sobre a matéria, o Superior Tribunal de Justiça assim entendeu e pacificou:
"[..] 5.4. A cooperativa de crédito não persegue o lucro, havendo rateio de sobras e perdas, conforme previsão no estatuto social, levando em conta a proporcionalidade da expressão econômica das operações dos associados, tendo por característica operarem com encargos e tarifas menores, caracterizando os juros uma das formas pela qual a entidade arrecada contribuições de seus associados e pela qual lhes propicia vantagem comparativa aos custos de mercado. Essas circunstâncias, todavia, não desnaturam as peculiaridades inerentes à qualidade intrínseca originária dos atos praticados entre a sociedade cooperativa e os membros do seu quadro social, os chamados atos cooperativos. [...] É fácil, assim, vislumbrar que em decorrência dessa peculiaridade, quando a cooperativa de crédito recebe juros e tarifas, estas remunerações são a forma circunstancial escolhida pela entidade para arrecadar as contribuições dos associados de que tratam o artigo 3º e o inciso IV do artigo 21, da Lei de Cooperativista, daí que o estatuto social deverá consignar a forma de devolução do excesso das contribuições suportadas pelos associados, as chamadas sobras, resultando, sem sombra de dúvidas, o retorno do quantum pago a maior em juros em tarifas à cooperativa de crédito, pelas operações ocorridas durante o exercício. [...]O bom senso, no caso, indica o não-sacrifício do associado, somado à preservação dos meios circulantes e solidez financeira da cooperativa de crédito, isto é, o financiamento de sua continuidade pelos próprios associados. É elementar que a cooperativa de crédito deve contribuir com o associado para obtenção de vantagens na concorrência de mercado, isto é, os custos favorecidos das atividades do associado devem dar-lhe facilidades para oferta de seus serviços ou produtos, pois foi para este objetivo que as pessoas se uniram em cooperação, para fins econômicos, de proveito de todos. [...] Lembremos que todas as atividades da cooperativa em prol do seu quadro social contêm inegavelmente expressão econômica. [...] Assim, diversamente do que ocorre nas sociedades mercantis, que distribuem resultados na proporção do capital integralizado pelos sócios, nas cooperativas a distribuição dos resultados leva em consideração as operações e serviços com expressão econômica ao parametrar a proporcionalidade para repartição de sobras, perdas ou prejuízos. [...]"
Portanto, tem-se que, não é porque a cooperativa realizou operação financeira, que ela perfaz operação de mercado e se sujeitam a recuperação judicial. Até porque, as cooperativas de crédito são constituídas exatamente para isso, conceder crédito aos cooperados e, portanto, toda vez que entabulam um contrato de cédula de crédito bancário, financiamentos, empréstimos e afins, praticam com seus cooperados, atos cooperativos nos exatos termos do artigo 79 da Lei nº 5.764/1971.
Seguindo este entendimento, apesar de ainda carecer de mais decisões colegiadas, os Tribunais Pátrios, vêm proferindo decisões favoráveis a extraconcursionalidade do montante realizado pelas cooperativas de crédito, quando se trata de fornecimento de valores para o desenvolvimento da atividade do cooperado (TJ-SP — AI: 22356936120228260000 — TJ-SP; Agravo de Instrumento 2013438-59.2023.8.26.0000 — TJ-MT — N.U 1022094-73.2022.8.11.0000, TJ-RS - AI: 50330461620228217000).
Ainda, a Receita Federal [3] no ano de 2020, antes mesmo da alteração advinha da Lei nº 14.112/2020, disponibilizou na íntegra o que seriam atos cooperativos e o que não seriam atos cooperativos. Dentre os atos cooperativos elencados temos as prestações de serviços financeiros: "5) prover, por meio da mutualidade, a prestação de serviços financeiros a seus associados, sendo-lhes assegurado o acesso aos instrumentos do mercado financeiro, no caso das sociedades cooperativas de crédito".
A Constituição e as legislações especificas trouxeram a proteção e privilégios as cooperativas, visando dar segurança jurídica e estimular o cooperativismo. Permitir essa equiparação jurídica dos bancos com as cooperativas, seria, no fim, dizer que ambos são instituições bancárias e submetidas ao mesmo regime, contrariando todas as normas positivadas, a Constituição Federal e a finalidade social.
Por fim, pode-se concluir que as cooperativas quando viabilizam crédito aos seus cooperados, estando esse objetivo previsto em seu estatuto social, trata-se de inconteste ato cooperativo, uma vez que a lei não taxou e, tampouco, vedou a prática de fornecimento de crédito de ser um ato cooperado.
Bibliografia:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
(TJ-SP - AI: 22356936120228260000 SP 2235693-61.2022.8.26.0000, relator: Ricardo Negrão, Data de Julgamento: 17/02/2023, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 17/02/2023).
(TJSP; Agravo de Instrumento 2013438-59.2023.8.26.0000; relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Penápolis — 4ª Vara; Data do Julgamento: 05/04/2023; Data de Registro: 05/04/2023).
(N.U 1022094-73.2022.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, MARILSEN ANDRADE ADDARIO, Segunda Câmara de Direito Privado, Julgado em 01/02/2023, publicado no DJE 09/02/2023).
(TJ-RS - AI: 50330461620228217000 SANTA ROSA, relator: Niwton Carpes da Silva, Data de Julgamento: 30/06/2022, Sexta Câmara Cível, Data de Publicação: 04/07/2022).
(STJ; REsp 1141219/MG; relator (a): ministro Luis Felipe Salomão; Órgão Julgador: Quarta Turma; Data do Julgamento: 03/04/2014; Data de Publicação: 12/05/2014).
[1] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5764-16-dezembro-1971-357788-exposicaodemotivos-149585-pl.html
[2] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/13/projeto-que-reformula-sistema-nacional-de-credito-cooperativo-e-aprovado-em-definitivo;
[3] https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/orientacao-tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/ecf/perguntas-e-respostas-pessoa-juridica-2020-arquivos/capitulo-xvii-sociedades-cooperativas-2020.pdf
Fonte: Conjur.