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13-06-2023 

A recuperação judicial (e extrajudicial) de clubes de futebol no Brasil

A indubitável importância sociocultural dos clubes de futebol no Brasil garantiu-lhes, por décadas, um tratamento menos rigoroso por parte do Estado, no que diz respeito às suas dívidas, que se materializa por meio de vantajosos programas de refinanciamento tributário.

Com a finalidade de auxiliar os clubes de futebol profissional a se tornarem solventes, mais bem estruturados e não mais dependentes da benevolência estatal, a Lei da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) dispõe de duas medidas para equacionar os passivos dessas entidades.

Primeiro, a Lei da SAF garante expressamente a 1) legitimidade dos clubes, ainda que constituídos como associações civis sem fins lucrativos, para requererem  o uso dos instrumentos de recuperação previstos da LRF. Impende destacar que, apesar da existência de precedentes que garantiam a supracitada legitimidade às associações civis que exercessem atividade econômica, tal previsão garante maior segurança jurídica aos clubes de futebol.

Já em relação à segunda medida prevista na Lei, está o 2) RCE, que, em apertada síntese, trata-se da organização de filas de credores trabalhistas e cíveis para que possam ser pagos ao longo de determinado período.

Porém, algumas decisões judiciais têm furado a blindagem proporcionada às SAFs que aderiram ao RCE, as responsabilizando diretamente por dívidas anteriores à sua constituição, o que torna o instituto como elevado grau de imprevisibilidade e insegurança jurídica. Tais decisões ensejaram, por exemplo, recentes críticas de John Textor, investidor do Botafogo SAF [1].

Assim, é crescente o número de clubes brasileiros que buscam socorro na LRF e seus instrumentos de recuperação. Para que tais ferramentas sejam bem aplicadas, deve-se compreender melhor suas finalidades, benefícios e riscos, assim como a forma como são abordadas pelos regulamentos das entidades de administração do esporte, mais precisamente a Fifa, órgão máximo de regulação da modalidade no mundo.

De início, há de se compreender os motivos que levam a criação de um sistema legal de insolvência.

Uma atividade econômica gera diversos benefícios à sociedade como um todo, gerando novos postos de trabalho, a criação de novos bens e serviços, e a circulação de riquezas. Para que esses benefícios sejam protegidos, visando o bem-estar comum, o país dispõe de um sistema legal de insolvência previsto pela referida Lei 11.101/2005 , a Lei de Recuperação e Falência brasileira.

A LRF sistematiza meios de recuperação de agentes econômicos que, embora mantenham sua viabilidade econômica, enfrentam graves crises econômico-financeiras, a quais não conseguem superar tão somente a partir das estruturas de mercado, como por exemplo através da captação de novos recursos no mercado, obtenção de empréstimo bancário, dentre outras.

Assim, A LRF apresenta os institutos da recuperação judicial (RJ) e da recuperação extrajudicial (REJ).

Basicamente, a RJ consiste numa negociação coletiva entre o devedor e seus credores, cujo resultado se materializa num Plano de Recuperação Judicial (PRJ ou Plano), o qual contém as novas condições e formas de pagamento aos credores. Tal Plano será objeto de escrutínio e deliberação dos credores, sob a supervisão de um Administrador Judicial, que atua em auxílio a Juízo Falimentar, e, após sua aprovação e homologação, a recuperação judicial tem início.

Para que essa negociação tenha início, é necessário que o devedor requeira em Juízo, o deferimento do processamento da RJ. No caso da REJ, toda a fase de negociação coletiva é realizada sem a necessidade do desse requerimento, bastando que o Plano seja homologado pelo Juiz, após sua aprovação.

Ao analisarmos os benefícios de se recorrer aos instrumentos previstos pela LRF, podemos destacar, de antemão, um maior grau de segurança jurídica em relação ao RCE. Em vigor há quase 20 anos, tendo passado por recentes alterações, com o objetivo de adaptá-la aos avanços jurisprudenciais, a LRF goza de certa previsibilidade que o RCE ainda não apresenta, muito em razão de seu pouco tempo de vigência.

Ademais, ressalta-se o chamado "stay period", que é o período de 180 dias após o deferimento do processamento da recuperação judicial, no qual ficam suspensas todas as formas de constrição do patrimônio do devedor, garantindo, assim, maior fôlego ao agente econômico. Notadamente, as constantes penhoras sofridas pelos clubes inviabilizam a manutenção de suas operações cotidianas.

Esse período, que pode ser prorrogado por uma vez, permite ao clube a tranquilidade necessária para se organizar e focar todos seus recursos na elaboração do PRJ a ser apresentado aos seus credores, sem ter de dividir a atenção e seus recursos com estratégias de defesas em diferentes execuções judiciais. 

Impende destacar que tal benefício também pode ser obtido em sede de REJ, a partir de uma tutela cautelar antecedente que antecipe os efeitos da recuperação judicial, enquanto o clube providencia a apresentação do Plano de Recuperação Extrajudicial.

Para além do "stay period", a LRF apresenta dispositivos que criam um ambiente mais favorável à negociação, inexistentes em negociações ocorridas fora do escopo da Lei.

Isso se dá, por exemplo, devido à existência de quóruns de aprovação do Plano de Recuperação Judicial. Nos termos da LRF, a aprovação do PRJ será definida pela por voto da maioria, de acordo com cada classe de credores. Ou seja, ainda que alguns credores discordem dos termos apresentados no Plano, ou, ainda, que não estejam presentes à assembleia geral de credores, é admissível que eles sejam submetidos às novas formas e condições de pagamentos previstas pelo Plano, no caso de aprovação assemblear.

Ante tal cenário, o credor se vê numa situação em que é praticamente compelido a negociar, o que representa mais um benefício da recuperação judicial, uma vez que o clube que tenha de suportar diversas negociações individuais enfrentará muito mais dificuldade em renegociar suas dívidas.

Em comparação ao RCE, a RJ e a REJ também se destacam na questão supracitada. Isto pois, a Lei da SAF garante a possibilidade de que o clube negocie um plano de pagamento com seus credores. Todavia, a Lei, apesar de indicar que tal negociação deva ser coletiva, não indica um quórum mínimo de aprovação para que o plano seja aceito. Assim, surge uma elevada imprevisibilidade e a possibilidade de que seja exigido um quórum de 100%, o que tornaria qualquer plano praticamente inviável de ser aprovado.

Por fim, tem-se, ainda, que mesmo com a não obtenção do quórum mínimo legal para a aprovação do plano de recuperação judicial, é possível que o juiz conceda a RJ, caso estejam demonstradas algumas condições previstas pela Lei. Trata-se do denominado "Cram Down".

Entretanto, existem riscos que devem ser mensurados, como por exemplo a convolação em falência. A LRF apresenta algumas situações nas quais a recuperação judicial pode ser "convertida" numa falência, como por exemplo, o descumprimento do Plano de Recuperação Judicial por parte do devedor.

No caso de uma REJ, é possível que a falência seja requerida nos autos do processo.

De certo que a falência de um tradicional clube de futebol representaria uma situação inédita no país, com um grau de imprevisibilidade imensurável. Isso se porque o ordenamento jurídico pátrio, nem as normas esportivas nacionais, regulam os casos de falência dos clubes, como ocorre na Itália, por exemplo. Naquele país, até os procedimentos de refundação de um clube de futebol são previstos.

Além disso, há as chamadas "dívidas esportivas" sujeitas a sanções por parte da Fifa. Um clube que esteja em recuperação judicial deve realizar o pagamento dos créditos sujeitos aos efeitos da RJ nos termos previstos pelo Plano, sob pena de incorrerem nos crimes falimentares previstos na LRF, como por exemplo a fraude a credores, previsto no seu artigo 168 e/ou no crime de favorecimento de credores, previsto no artigo 172.

Ou seja, o clube fica legalmente impedido de realizar os pagamentos sujeitos aos efeitos da RJ de forma diferente ao previsto pelo Plano, aprovado pelos credores e homologado em Juízo.

Isso não impede, todavia, a aplicação de punição, por parte da Fifa, aos clubes que tenham dívidas esportivas, como por exemplo, dívidas relacionadas à transação de atletas, uma vez que a entidade não está submetida ao ordenamento jurídico brasileiro, mas, sim, ao ordenamento suíço.

Tal situação não apresenta, ainda, uma solução aparente. Uma mudança na legislação concedendo natureza extraconcursal aos credores da "família do futebol" parece pouco provável, assim como, já há precedentes da Fifa não reconhecendo as normas locais de insolvência como argumento de defesa dos clubes.

Uma possível solução é a convencer os credores de aprovarem, no Plano de Recuperação Judicial, condições especiais de pagamento a tais credores, respeitando, evidentemente, os dispositivos legais e as classes de credores.

Assim, tem-se que os instrumentos de recuperação previstos na Lei de Recuperação e Falência brasileira podem ser muito úteis aos clubes, contendo, porém, riscos que devem ser analisados e mensurados, sendo certo que não se tratam se soluções mágicas, mas de procedimentos que requerem muito esforço a todos os envolvidos e que devem ser utilizados com responsabilidade.

 

[1] Disponível em < https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/botafogo/noticia/2023/01/john-textor-diz-que-botafogo-nao-pagara-mais-o-rce-e-dispara-contra-lei-da-saf-esta-quebrada.ghtml>. Acesso em 26 de fevereiro de 2023.

 

Fonte: Conjur.

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