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21-07-2025 

A recuperação judicial e a restituição do produto do crime

Os conceitos de restituição integral do produto do crime, propriedade e dívida, se tornaram especialmente relevantes nos casos em que o autor da demanda recuperacional constitui obrigação de devolução fundada na formação ilícita de fluxo de caixa, mediante prática de delitos criminais diversos.

ra, segundo princípios básicos do direito, tal pretensão é impossível, pois o produto do crime sob posse ilícita jamais se converte em propriedade do ofensor, devendo ser integralmente restituída ao ofendido, seu único e legítimo proprietário. Da sua origem ilícita, não pode derivar fruição, gozo, direito a uso ou disponibilidade, justamente porquanto não é conversível em propriedade. Aliás, a conversão da posse do produto de ilícito penal constitui o tipo do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro.

Disso se conclui, se o ofensor não é proprietário, que não pode inserir o ofendido com delito penal em ação de recuperação judicial para restituir o produto do delito mediante concurso de credores.

Para se ter dimensão de quão absurda seria tal legitimação, basta radicalizar as hipóteses, como por exemplo, autorizar uma recuperanda que houve para si veículos de credor mediante grave violência, arrolar a vítima do roubo para submetê-lo a receber, não mais os veículos subtraídos, mas um direito crédito a eles correspondentes. Ou então, admitir que determinado devedor, que houve para si milhões de uma instituição financeira, desviados com uso de hackers e softwares de espionagem, arrolar a vítima como mera credora, para que submetida ao concurso geral, aprove ou recuse um plano de credores, em que será paga mediante parcelamento e deságio.

Cotidianamente, todavia, diversos são os devedores em ações de recuperação judicial que arrolam dívidas comuns misturadas a créditos devidos em função da tomada delitiva de fluxo de caixa mediante a prática de delitos diversos, tais como a emissão de duplicatas simuladas, falsificação de documento privado, apropriação indébita, defraudação ao credor por meio de alteração do domicílio bancário em contas garantidas, fraude a credor agravada pela manipulação de balanços contábeis e documentos representativos da saúde econômica real da empresa, lavagem de dinheiro, crimes contra a ordem tributária dentre outros.

E o pior é que, a despeito da pretensão se revelar evidentemente descabida e injurídica, não deixa de ser curioso o direito se mostre incapaz de impedir a prática, permitindo que tais delitos prevaleçam impunes, e as vítimas sejam tratadas como meros credores de dívidas civis. E não surpreende, como decorrência, que o conhecimento dessa falha incentive a prática, cada vez mais confiante nas numerosas fragilidades normativas e culturais do direito brasileiro.

Essa é uma reflexão importante, pois em 9 de fevereiro de 2025, ano em que se publica o presente estudo, a Lei de Recuperação Judicial completou 20 anos de existência, sem que haja, a nosso juízo crítico, razão para maiores celebrações. Não se questiona da sua funcionalidade e inegável importância, mas por prestar-se à malversação, oportunismos e desserviços como este que se aponta.

Desnecessário dizer da gravidade deletéria que esta tolerância indevida promove à economia. E o quanto, em última análise, essa realidade conduz a práticas reativas antieconômicas, na medida em que forçam credores a precificar seu prejuízo e transferi-lo a terceiros. Não se trata, portanto, de mera questiúncula retórica, nem elucubrações sem importância, muito menos sutilezas do pensar, filosóficas ou descoladas da realidade. Trata-se, isso sim, de uma realidade diária e rotineira, vivenciada nas práticas processuais, que está a produzir impactos diretos da mais significativa importância na economia, tudo por conta da falha geral do sistema, do governo e do direito.

Sofisma evidente

Em grande parte, nossas críticas ao direito como coautor dessa realidade, se voltam à “cegueira” que a teleologia grandiloquente e não litigiosa da recuperação judicial tem promovido, por força dos nobres princípios da preservação de empregos e atividade econômica. Preceitos de tal sorte revestidos de luminosidade superior e imponente, que a todos parece impedir ver os oportunismos nefastos que em seu nome são praticados. Cegueira que a todos impede criticar as patologias óbvias, como o fato de que a própria legislação de recuperação cria mecanismos que incentivam sua violação, já que proíbe processá-los enquanto a ação recuperacional estiver em curso (artigo 180 da Lei 11.101/05).

De uma legislação que alega proteger a atividade econômica de uma crise, todavia, que se recusa peremptoriamente em analisar e identificar judicialmente. Ora, como recuperar algo se não se sabe exatamente o que causou a crise? E bem assim, o processo que impõe pesados ônus coletivos, e que deveria ter cariz financeiro e contábil, passa a latere de tais elementos.

Não surpreende, portanto, que por desconhecer a causa da crise, nenhum relevo jurídico tenha a capacidade do plano econômico de superá-lo! Ou então como ocorre com o mal compreendido princípio da proteção de empregos: um evidente sofisma, no final das contas, já que não são contabilizados os empregos suprimidos dos credores que nunca receberão seus pagamentos em detrimento dos empregos da empresa que pede socorro. Funcionalidades mal resolvidas fundadas na incorreta ideia de que a jurisdição é mera garantidora da legalidade do processo recuperacional, em que a função judicial é quase cartorária, limitada, quando muito, à verificação da presença de documentos, cumprindo aos credores o papel de questionar a adequação das ações preservativas e protetivas.

Uma evidente herança da legislação superada das concordatas a respeito do papel judicial, que a toda vista segue onipresente. Na prática, somente devedor, este sim, consciente do produto cultural sob seu controle, tira proveito e vantagem da massiva omissão e desinteresse judicial, fazendo acertos com alguns poucos credores, o necessário ao controle total da votação com base no que melhor lhe aprouver.

E o que é mais grave, essas patologias ainda se abastecem na cultura beatificante do devedor, que em alguns casos mais graves, chega a normalizar a prática de crimes e delitos, conquanto atinjam o mercado financeiro e de capitais.

O Direito, no entanto, não se presta a legitimar crimes, e muito menos a lei de recuperação judicial não poderia, jamais, se prestar a tal papel. Aliás, considere que em nenhuma hipótese a vítima de um delito penal praticado por uma empresa em situação de crise deva ser tratada como credor comum, submetida ao rito recuperacional, é constatação da mais rasa ontologia geral do Direito à realidade prática.

E que, em nenhuma hipótese, se admita a alegação de que a defesa de empregos e a preservação da atividade econômica, seriam valores e princípios de tal sorte relevantes, que práticas comerciais delitivas tais como a emissão de duplicatas simuladas, apropriação indébita, falsificação de documentos, falsidade ideológica, além de crimes contra a ordem tributária e falimentares, fraude a credores qualificada pela manipulação de documentos contábeis, por serem crimes não violentos, devem ter a reprovação relativizada em sede de ação recuperacional.

Isso porquanto não cabe à interpretação judicial relativizar a reprovação social do regime penal imposta pelo legislador, sendo por tudo quando é mais sagrado ao direito, absolutamente inadmissível substituir a “obrigação de restituir integralmente o produto do crime” pela conversão do delito em “dívida civil”.

Além do que, seria desonesto afirmar que a obrigação de reparar o dano penal em nada diverge da obrigação de pagar fundada em negócios jurídicos, porquanto em ambos há direito de crédito e credores, e se a primeira obrigação se constitui em dívida, logo, o ofendido é semanticamente também um credor — e lugar de credor é o concurso de credores!

Como se sabe, a defesa da conversão do delito e vítima em mero credor de divida civil, se ampara em torções e malabarismos retóricos, semânticos, sofismas e tecnicalidades dogmáticas. Mas o fato é que todas elas, sem exceção, padecem diante do óbvio: se o único fundamento jurídico para declarar que o arrolamento da vítima de delito penal na recuperação judicial são alegações semânticas, travas normativas e dogmáticas, então teremos que admitir que é o Direito quem prestigia o criminoso com a legítima expectativa de ter apoio judicial para obter para si o fruto do delito, na medida em que a interpretação da lei favorece a devolução do produto do crime via regime civil e processual da ação de recuperação de crédito.

Quão triste seria constatar que o direito é causa da sua própria violação.

Em primeiro lugar, para afastar a dogmática, é importante constatar que a natureza penal da formação da obrigação de restituição impediria a competência do juízo recuperacional, porquanto o recurso financeiro na posse do ofensor não se constitui em direito de propriedade.

Ora, se o patrimônio é de terceiro, ainda que esteja na posse do ofensor, tem incidência disposição da Súmula 480 do STJ, que encerrou anos de debate sobre limites da lei de recuperação, delimitando o entendimento de que o juízo recuperacional não tem competência para decidir sobre bens de terceiro:

“O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa”.

Carecendo de competência para tratar de patrimônio de terceiro, é dever do magistrado excluir o débito do concurso de credores. Tal entendimento permitiria à vítima reavê-lo mediante arresto e a busca e apreensão pelo juízo penal, inexistindo aqui conflito de competência perante outro magistrado e o responsável do universal.

Aliás, vale lembrar que o pedido de restauração da propriedade tem raiz constitucional, previsto o artigo 5º, XLVI.

Esse fasto remete à competência do juízo penal para determinar a restituição do patrimônio, que poderia ser solicitada na forma cautelar, consoante artigo 127 do Código Penal, quando autoriza a vítima a representar ao magistrado pedido de preservação do produto do crime, quando imóvel:

Caminho mais amplo, a envolver o perdimento de valores, aliás, também se abre em havendo notícia de lavagem de dinheiro, que invariavelmente é o caso nos processos de recuperação judicial, conforme autoriza o artigo 4º da Lei 9.613/98.

O pedido cautelar poderia ser requerido, inclusive, pela vítima, consoante se extrai do disposto do artigo 156, I do Código Penal, quando autoriza a realização de provas de ofício, mesmo antes da denúncia, nos casos considerados urgentes e relevantes, observada a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

São medidas necessárias à identificação precisa da localização do produto do bem, especialmente em tempos de incentivo normativo à blindagem patrimonial visa constituição de holdings societárias.

Por certo, no entanto, que o argumento da competência será refutado via tecnicidades dogmáticas não previstas para o enfrentamento do caso, e a jurisdição penal provavelmente seria afastada. É plausível se alegue, por exemplo, que os delitos de emissão de duplicata simulada, falsificação de documento privado, defraudação de credores, dentre outros seriam, em verdade, meros defeitos de erro, dolo e fim ilícito do negócio jurídico, pelo menos até que sentença penal transitada em julgada os declarasse nulos.

Nessa linha, a obrigação de dar não seria restitutória integral, nem penal, mas aquela própria do regime civil dos negócios jurídicos, sob a competência do juízo recuperacional, afastada a aplicação da súmula 480 do STJ, e a competência do juízo penal para intervir em prol à proteção do bem.

O argumento não se sustenta, todavia.

Sem repetir que os fins ilegítimos invalidam qualquer medida processual, aqui representado no fato de que a competência seria usada para permitir a consumação do propósito delitivo (ganho financeiro ilícito) via processo, o defeito essencial dos negócios jurídicos também é reprovado pelo legislador, são ponto de legitimar diversos atores a solicitar sua exclusão, como declara de expressamente o artigo 19, LREF.

O resultado obtido acaba por ser o mesmo, a despeito do caminho trilhado ser a declaração da incompetência, ou a exclusão via ação ordinária própria.

Dir-se-ia, no entanto, ser inegável que a exclusão do crédito, em qualquer dos casos, depende de um ato judicial decisório, condenação transitada em julgado, seja ele a ação penal, seja a demanda do artigo 19 da Lei 11.101/05, que, aliás, prevê a ação. O argumento não é desprezível, ao menos tecnicamente, embora a finalidade moralmente o seja.

Refuta-se a alegação, todavia, pois se é necessária a condenação criminal prévia para a exclusão do crédito, chegar-se-ia na absurda situação de que, quando a prática do ilícito envolver delitos da própria ação de recuperação judicial (artigo 168, fraude a credor, por exemplo), tal condenação jamais poderia ocorrer, justamente porque a própria lei somente autoriza seu processamento após a homologação judicial do plano (artigo 180).

Uma evidente aporia normativa: a lei exigir um requisito que proíbe ocorra.

Aliás, diga-se o mesmo da alegação de que a temática de crime não seria sequer matéria de discussão do defeito do negócio, porque havido antes do protocolo da ação de recuperação judicial, uma vez que a redação dos artigos de lei claramente descreve os injustos como aqueles praticados antes ou após o deferimento do seu processamento.

Depois, a tese da exigência do título executivo judicial penal transitado em julgado, partindo da análise sistemática da lei de recuperação judicial, é descabida, como mostram as redações do artigo 51-A, §6º; artigo 64, III, artigo 187, §2º, todos da Lei 11.101/05.

Conclusão

É preciso admitirmos que o problema da restituição das dívidas penais via ação de recuperação judicial não tem sido enfrentado, sobretudo em virtude obstáculos que podem muito bem ser qualificados como “falhas de governo”.

Para além dos embates dogmáticos acima mencionados, não se pode esquecer outros obstáculos enfrentados pelos credores, já que os esforços do estado estão voltados a paralisar toda e qualquer hostilidade processual (stay period), consideração que tende a colocar o aparato institucional, Ministério Público, administração judicial, juízo singular e muitos credores, em linha contributiva e colaborativa ao andamento da ação de recuperação judicial, zona de desconforto diante de eventual resistência, fundada ou não, na alegação de fraude.

Por tudo quanto dito, ao completar 20 anos, a legislação recuperacional deixa um legado de estranha “normalização” das práticas de crime, permitindo se confundam com a ideia de “justiça”, o que sugere haver muito tema a deliberar a respeito da sua finalidade, seu uso e seu futuro.

 

Fonte: Conjur.

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