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18-08-2021
A nova recuperação judicial do produtor rural
A controvérsia gerada pelos pedidos de recuperação judicial por produtores rurais pessoas naturais não é novidade aos agentes econômicos que compõem as cadeias agroindustriais. O setor, que atualmente conta com um sistema de financiamento em que o mercado privado assumiu papel de destaque, passou a vivenciar controvérsias que se iniciaram com recuperações judiciais como a de J. Pupin, o que gerou desequilíbrio na matriz de crédito, ante a insegurança jurídica fomentada por embates doutrinários e decisões divergentes do Poder Judiciário.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que o registro do produtor rural como empresário é desnecessário para que a regularidade do exercício da atividade rural de forma organizada seja comprovada pelo biênio fixado pela lei falimentar (REsp 1.800.032 e REsp 1.811.953).
Contudo, ao longo da evolução jurisprudencial da controvérsia, tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.229, de 2005, que acabou por ser composto por extensa - e em diversos pontos preocupante - reforma legislativa (Lei nº 14.112, de 2020).
Dentre as emendas legislativas que integraram a reforma, a de nº 11, de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB/RS), após discussões entre importantes entidades do setor e formação de um grupo técnico, foi responsável por propor alterações que repercutem na recuperação judicial da atividade de produção rural.
Referida emenda contou com previsões que não se inseriram no contexto geral da reforma da lei falimentar. A razão se deve ao fato de que, ao longo de 2019, a Subsecretária de Política Agrícola e Negócios Agroambientais do Ministério da Economia mediou encontros entre associações, confederações e organizações representativas de produtores rurais e financiadores do agronegócio no Brasil, com o objetivo de discutir a problemática da recuperação judicial do produtor rural e buscar um caminho legislativo com o intuito de fomentar segurança jurídica e previsibilidade às relações negociais do setor.
Nesse ínterim, como dito, o STJ definiu o leading case sobre o tema, o que indicou a possibilidade de se inserir no PL tão somente alterações pontuais, em busca do reequilíbrio da matriz de crédito do setor; referidas propostas compuseram a “Emenda Alceu”, dentre elas, as que disciplinam os requisitos à legitimação do pedido de recuperação judicial pelo produtor rural pessoa natural.
As mudanças legislativas em questão, em linha com os posicionamentos do STJ, ratificam a possibilidade de requerimento de recuperação judicial pelo produtor rural pessoa natural, desde que presentes os requisitos necessários à comprovação do biênio de exercício regular da atividade, quais sejam, a apresentação tempestiva de (i) Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou registro contábil que venha a substitui-lo; (ii) Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF); e (iii) balanço patrimonial.
A razão para o estabelecimento de rol taxativo que determina a apresentação concomitante da referida documentação contábil entregue tempestivamente aos órgãos fiscais se dá ante a intensa informalidade que vige as atividades desempenhadas pelos produtores rurais, que atuam preponderantemente como pessoas físicas ante os benefícios correlatos, em especial a simplicidade de atuação no âmbito contábil, bem como o fato de que o sistema tributário brasileiro se apresenta mais favorável aos contribuintes pessoas físicas.
Diante dessa realidade, a proposta legislativa, não obstante anuir à possibilidade de acesso do produtor rural ao regime de insolvência empresarial, fixa requisitos instrumentais em prol da manutenção, pelo produtor, de documentação que respeite minimamente os padrões contábeis vigentes, de modo que o pleiteante possua, ao menos, dois anos de entrega regular de escrita fiscal contábil.
Nesse ponto, não obstante as propostas legislativas instituírem rigor contábil inédito ao produtor rural, trata-se do estabelecimento de um ônus que objetiva incutir transparência principalmente à análise de crédito a ser realizada pelos financiadores do setor, de modo a possibilitar uma avaliação efetiva de receitas, bens, despesas, custos e dívidas, cujas informações também serão relevantes à sujeição dos créditos ao concurso de credores, visto que a emenda também determina que somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural e que estejam discriminados na documentação contábil apresentada.
As alterações em tela representam, vale dizer, regras que atingiram o consenso entre os agentes econômicos do setor que, em lúcida visão que supera o pobre maniqueísmo de interesses econômicos imediatos, mira o estabelecimento de regras claras à possibilidade de acesso pelo produtor rural ao instituto da recuperação judicial, o que, além de louvável, é de suma importância ao desenvolvimento econômico do agronegócio.
Nos poucos meses de vigência da reforma, contudo, já é possível notar decisões que relativizam os novos requisitos, o que, espera-se, não se multiplique, em prol dos fundamentos que levaram à reforma legislativa, que devem ser preservados em novos precedentes jurisprudenciais, de modo a gerar transparência ao mercado em relação à matriz de crédito e às fontes de financiamento privado da atividade, com o fito de promover um melhor ambiente de negócios, segurança jurídica e menores custos de transação ao próprio produtor rural.
Fonte: Valor Econômico