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20-04-2023 

A necessidade de revisão do critério de concessão da gratuidade de Justiça à massa falida na persecução de fraude

A concessão do benefício de gratuidade de justiça depende da demonstração pela parte, pessoa natural ou jurídica, da insuficiência para pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, nos termos do que prevê o art. 98 do Código de Processo Civil1.

No âmbito da insolvência empresarial, sedimentou-se na jurisprudência o entendimento de que não se presume a existência de dificuldade financeira em razão da decretação de falência - confirmando, portanto, a exigência legal de comprovação cabal, por parte da massa falida, da incapacidade de arcar com as custas processuais para se beneficiar da gratuidade de justiça.

Com efeito, o fato de se tratar de massa falida não implica na conclusão automática sobre a inexistência de recursos para pagamento destes encargos, uma vez que o critério adotado pela lei 11.101/2005 é estritamente jurídico: o estado de insolvência decorre diretamente da lei, diante da constatação de determinados fatos relacionados à sociedade empresária, listados no art. 94 do referido diploma.

Ainda assim, na prática, é recorrente a concessão automática do benefício para massas falidas, sem que haja uma análise pormenorizada de sua real situação financeira - acabando por configurar uma situação que contraria a própria lógica da garantia fundamental, encorajando o comportamento aventureiro para o ajuizamento de demandas desprovidas de fundamentos jurídicos mínimos que, não onerando a massa falida, acabam, por outro lado, causando prejuízos a terceiros que com ela contendem.

O tema ganha especial relevo se analisado sob a perspectiva da persecução da fraude pelas massas falidas que, não raramente, promovem ações judiciais a fim de obter reparação pelos prejuízos experimentados. O presente ensaio busca refletir sobre a necessidade de revisão do critério - ou ausência dele - utilizado por muitos juízos para a concessão do benefício de gratuidade, questionando se a isenção - quase que automática - do pagamento de custas e verbas sucumbenciais não estaria estimulando disputas judiciais temerárias diante da perspectiva de ganho sem qualquer ônus em contraparte, gerando desproporcional prejuízo aos demandados.

O critério legal para a configuração da insolvência empresarial

Na legislação brasileira, o estado de insolvência empresarial é presumido diante da constatação de determinados fatos relacionados ao empresário ou à sociedade empresária, todos eles indicados no art. 94 da lei 11.101/2005: impontualidade nos pagamentos (art. 94, I) ou a prática de algum dos atos taxativamente listados naquele diploma (art. 94, incisos II e III). Trata-se do denominado critério jurídico para a caracterização da insolvência - que se afasta do critério estritamente financeiro, adotado, por exemplo, no sistema de insolvência civil do Código de Processo Civil.

A diferenciação entre ambos já foi objeto de análise do Superior Tribunal de Justiça,  quando do julgamento do Resp nº 1.433.652/RJ, em caso que o devedor (Lojas Americanas S.A.) buscou evitar a decretação de sua falência sob a justificativa de que teria notória solidez financeira:

DIREITO EMPRESARIAL. FALÊNCIA. IMPONTUALIDADE INJUSTIFICADA. ART.94, INCISO I, DA LEI N. 11.101/2005. INSOLVÊNCIA ECONÔMICA. DEMONSTRAÇÃO. DESNECESSIDADE. PARÂMETRO: INSOLVÊNCIA JURÍDICA. DEPÓSITO ELISIVO. EXTINÇÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. ATALHAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PELO PROCESSO DE FALÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA.

1. Os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito pátrio - insolvência civil e falência -, entre outras diferenças, distanciam-se um do outro no tocante à concepção do que seja estado de insolvência, necessário em ambos. O sistema falimentar, ao contrário da insolvência civil (art. 748 do CPC), não tem alicerce na insolvência econômica.

2. O pressuposto para a instauração de processo de falência é a insolvência jurídica, que é caracterizada a partir de situações objetivamente apontadas pelo ordenamento jurídico. No caso do direito brasileiro, caracteriza a insolvência jurídica, nos termos do art. 94 da Lei n. 11.101/2005, a impontualidade injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e a prática de atos de falência (inciso III).

3. Com efeito, para o propósito buscado no presente recurso - que é a extinção do feito sem resolução de mérito -, é de todo irrelevante a argumentação da recorrente, no sentido de ser uma das maiores empresas do ramo e de ter notória solidez financeira. Há uma presunção legal de insolvência que beneficia o credor, cabendo ao devedor elidir tal presunção no curso da ação, e não ao credor fazer prova do estado de insolvência, que é caracterizado ex lege. (...) (grifamos).

Na sistemática da lei 11.101/2005, é possível até mesmo imaginar uma situação em que haja a "quebra jurídica" sem que haja a "quebra financeira", e vice-versa. É o caso, por exemplo, do devedor que simula a transferência de seu principal estabelecimento com o objetivo de prejudicar um determinado credor: na hipótese, o art. 94, III, 'd' daquele diploma autoriza a decretação da falência, ainda que o devedor comprove que seu ativo é superior ao seu passivo. Em sentido diverso, o passivo de uma sociedade empresária pode ser infinitamente superior ao seu ativo, sem que isso leve à decretação de sua quebra, caso não se verifique a prática de quaisquer dos atos listados no art. 94 da lei 11.101/2005.

Tem-se, portanto, que a insolvência como pressuposto para a decretação da falência não pode ser entendida em sua acepção exclusivamente financeira, ou seja, como um estado patrimonial de insuficiência de bens para a quitação das obrigações contraídas.

A errônea presunção da massa falida como beneficiária da justiça gratuita

Nesse contexto, tem-se que a simples condição de falida não é e nem deveria ser premissa suficiente a autorizar a concessão do benefício processual sem a necessária análise da situação econômico-financeira da falência no caso concreto.

Isto porque considerando o já mencionado critério estritamente jurídico para a decretação da falência,  deve-se reconhecer que apesar da existência de um sem-número de hipóteses em que massas falidas realmente não possuem caixa suficiente a honrar sequer as despesas ordinárias para sua manutenção, deparamo-nos com situações diversas em que a falida, gerida por seu Administrador Judicial, apresenta regular receita financeira e está apta a arcar com os gastos hodiernamente impostos para o acesso ao Judiciário.

Em outras palavras: a condição de falida não lhe atribui automaticamente a condição de deficitária, isto é, a massa não está impossibilitada, em todo e qualquer caso, a dispender do mínimo necessário a fazer frente às suas despesas, dentre as quais, as custas e verbas sucumbenciais a que eventualmente seja responsabilizada ao pagamento, como demandante ou demandada.

Ao revés, o objetivo da falência é exatamente a liquidação dos ativos do devedor, viabilizando tanto a sua realocação na cadeia produtiva, bem como a obtenção do máximo de recursos para o atendimento, em rateio e observadas as preferências legais, de todos os credores reunidos perante o juízo falimentar - sendo perfeitamente possível, portanto, que o ativo liquidado supere o passivo concursal. Tanto é assim que a própria lei contempla a possibilidade de a massa falida lograr êxito em promover o pagamento da totalidade de seu passivo, garantindo a obtenção, por conseguinte, da extinção de suas obrigações por sentença (art. 158, inciso I da lei 11.101/20052).

Assim é que se afigura perfeitamente concebível que uma massa falida seja detentora de recursos suficientes para, notadamente, arcar com as custas e verbas sucumbenciais de um processo judicial e, assim, a importância da desconstrução do pensamento automatizado de que toda massa falida é imune ao princípio da sucumbência e, portanto, beneficiária da gratuidade de justiça.

Da necessária revisão do critério de concessão da gratuidade de justiça à massa falida na persecução de fraude

A questão da gratuidade de justiça toma especial relevo no que diz respeito à persecução de fraudes eventualmente praticadas contra a massa falida.

O sistema legislativo delineado na lei 11.101/2005, no âmbito do procedimento falimentar, autoriza a persecução de fraudes e a revisão de determinados atos praticados antes da decretação da falência e durante o período suspeito, como se depreende dos arts. 813 (extensão dos efeitos da falência a sócios de sociedades cuja responsabilidade é ilimitada), 824 (responsabilização dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores) e 82-A5 e desconsideração da personalidade jurídica), e arts. 129 e 1306 (ineficácia e da revogação de atos praticados antes da falência).

Todos os mecanismos legais postos à disposição da massa falida propiciam, é certo, chance de reparação e ressarcimento pelos prejuízos eventualmente experimentados a partir de expedientes fraudulentos direcionados contra o agente econômico falido, quando ainda ativo.

Nesse sentido, o benefício da gratuidade de justiça surge como importante aliado no ajuizamento de ações judiciais que visam, em última análise e em benefício do concurso de credores, o reingresso de ativos à massa que fora esvaziada economicamente e, portanto, não detém capacidade financeira para fazer frente às despesas processuais impostas a todo demandante.

Todavia, o deferimento irrestrito do benefício nestes casos, sem que seja realizada uma análise prévia e séria do real estado financeiro da falida, cria um cenário perigoso: sem qualquer receio de consequências negativas à massa falida ou a eles próprios - eis que blindada a devedora do pagamento de verbas sucumbenciais -, a concessão da gratuidade de justiça sem uma análise pormenorizada da situação financeira da devedora pode encorajar condutas temerárias por parte dos Administradores Judiciais que, intentando toda sorte de demanda judicial sob a justificativa da necessidade de perseguir ressarcimento em favor dos credores da massa falida, iniciem uma busca desenfreada por recursos em litígios sem fundamento jurídico, gerando, na prática, um ônus tremendo ao demandado, que se vê praticamente forçado a realizar um acordo para encerrar o litígio, por uma suposta fraude, a qual não cometeu.

O fato de que o Administrador Judicial é frequentemente remunerado com um percentual dos ativos arrecadados e alienados, na forma do art. 25, §1º da lei 11.101/2005, cria ainda mais um incentivo para a situação descrita; necessário é o contrapeso advindo do risco do insucesso da demanda.

O interesse dos credores é também apontado, muitas das vezes, como a justificativa maior da imperiosa concessão de justiça gratuita sob o argumento falseado de que todos os recursos disponíveis são destinados à satisfação do passivo concursal e que qualquer dispêndio expressivo poderia vir a ser irremediável para consecução desse objetivo.

Trata-se de falsa premissa calcada no intuito, ainda que legítimo, de maximizar o ativo arrecadado em favor da massa subjetiva, mas que, se desassociada de uma pesquisa criteriosa da situação financeira efetiva da falida, estimula pretensões vazias que, além de não gerarem qualquer perspectiva de ganho, prejudicam terceiros que precisam mover toda a sorte de esforços para refutá-las, com dispêndio financeiro, reputacional e desgaste pessoal imensuráveis.

O fato de ser possível a imputação de sucumbência à massa falida, gerando consequências negativas sobre seu patrimônio, não pode justificar a concessão da gratuidade de justiça. Tal benesse só deve ser concedida caso comprovada a impossibilidade absoluta de pagamento das custas judiciais, como exige precisamente o mencionado art. 98 do CPC.

Admitir este raciocínio significaria conceder à devedora uma "carta branca", autorizando-a a simplesmente a não mais quitar quaisquer de seus débitos, sob o argumento genérico de que tais recursos poderiam, ainda que hipoteticamente, ser vertidos em benefício da coletividade de credores.

Decerto que a escolha racional da massa falida em intentar ações judiciais deve envolver avaliação ponderada das possíveis consequências econômicas justamente para desestimular o ingresso no Judiciário a qualquer custo. A condenação em sucumbência e honorários é medida que se impõe, e, caso gerem prejuízo à massa (e, consequentemente, à coletividade de credores), notória será a responsabilidade do Administrador Judicial, que deverá ser buscada nas vias próprias.

Os Tribunais seguem o mesmo caminho

A jurisprudência combate o raciocínio automatizado de deferimento da justiça gratuita com base em suposta hipossuficiência presumida da massa falida, sem análise da situação real do caso concreto e respectiva comprovação nos autos, ainda que se trate de ação intentada pela massa na busca de ressarcimento pelas fraudes eventualmente contra ela cometidas.

O Superior Tribunal de Justiça já definiu que a hipossuficiência da massa falida não é presumida, sendo certo que o benefício da gratuidade só deve ser concedido àquela se comprovado que dele necessita. Assim verifica-se em julgado da sua Terceira Turma, que a condição de falida, por si só, não é suficiente para a concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita, prevista na lei 1.060/50. A Relatora Ministra Nancy Andrighi consignou, na ocasião, precedente da 1ª Seção do Tribunal, segundo o qual não é possível presumir a hipossuficiência da massa falida (EREsp 855.020)7.

Em outro julgado relevante, o STJ já afirmou expressamente a submissão da massa falida ao princípio da sucumbência, concluindo não ser "presumível a existência de dificuldade financeira da empresa em face de sua insolvabilidade pela decretação da falência para justificar a concessão dos benefícios da justiça gratuita", razão pela qual "a massa falida, quando demandante ou demandada, sujeita-se ao princípio da sucumbência (Precedentes: REsp 148.296/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, Segunda Turma, DJ 07.12.1998; REsp 8.353/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, DJ 17.05.1993; STF - RE 95.146/RS, Rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ 03.05.1985) Agravo regimental desprovido" (AgRg no Ag 1292537/MG, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 05.08.2010, DJ 18.08.2010).

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo se depara frequentemente com o tema. Em recente decisão envolvendo cumprimento de sentença promovido por massa falida requerente da gratuidade de justiça, o juízo de primeiro grau fundamentou que a massa vinha obtendo sucesso em várias demandas judiciais, o que tornava possível o suporte aos encargos decorrentes das despesas do processo. O E. Tribunal manteve o indeferimento do benefício ressaltando que "o fato da empresa encontra-se (sic) no estado de massa falida, não lhe conferia direito automático ao benefício da justiça gratuita, que continuava dependendo de adequada comprovação de hipossuficiência financeira"8.

Em outra oportunidade, ainda que adotando posição intermediária, conferindo a oportunidade de diferimento do recolhimento do preparo recursal ao final, o mesmo E. Tribunal ressaltou que o "estado de insolvência não induz de forma automática a concessão integral dos benefícios da Assistência Judiciária, sendo certo que a parte tem o ônus de demonstrar a vulnerabilidade econômica para arcar com os ônus processuais"9.

A Justiça Especializada do Trabalho, por sua vez, já teve oportunidade de rechaçar a tese de insuficiência financeira pelo simples decreto de falência, ressaltando-se, na oportunidade, que a quebra não significa que a devedora se encontra em estado de miserabilidade jurídica10. Nesse sentido, garantiu-se a incidência do verbete sumular nº 86 do Tribunal Superior do Trabalho11, assegurando-se ampla defesa ao permitir que a massa falida devedora interpusesse recurso sem recolher as custas processuais e realizar o depósito recursal, em virtude de seus bens se encontrarem indisponíveis. A isenção total do recolhimento de custas, no entanto, foi negada diante da ausência de comprovação de direito ao benefício.

Resta claro, portanto, que a jurisprudência é pacífica no sentido de que é necessária uma análise criteriosa sobre a incapacidade financeira da massa falida para a obtenção do benefício da gratuidade de justiça - o que se coaduna também com a segurança jurídica conferida pelo princípio da sucumbência, que, como exposto, é um importante instrumento de contenção contra demandas aventureiras e desprovidas de fundamento jurídico, frequentemente constatadas nos casos de persecução contra supostas fraudes cometidas contra massas falidas.

Conclusão

Nesse contexto, não se desconsidera a imprescindibilidade que o benefício da gratuidade de justiça pode representar às falências, sobretudo, àquelas marcadas por práticas fraudulentas que, em muitos casos, determinaram a quebra ou agravaram a condição de crise em que já se encontrava o empresário (individual ou sociedade empresária) antes do seu decreto, o que pode vir a se estender durante a execução concursal diante da ausência ou insuficiência de recursos. Em casos tais, a concessão da justiça gratuita faz-se necessária, real e justa.

A experiência permite-nos concluir, no entanto, que o exame dos pressupostos para o deferimento da benesse processual não deve vir desassociado de uma análise pormenorizada do caso concreto, tampouco, tomado pela conclusão açodada da tese de insuficiência financeira pela simples condição de falida das massas litigantes. Deve ser incentivada, ademais, solução intermediária, diferindo o recolhimento das verbas sucumbenciais, em caso de insucesso da demanda, ao final. Raciocínio diferente incita comportamentos que, descompromissados com o resultado da demanda, invoquem toda sorte de fundamentos em ações aventureiras que desafiam a segurança jurídica e o devido processo legal, impondo pesado e desproporcional ônus à uma das partes.

Fonte: Migalhas.

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