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20-10-2023 

A Fazenda Pública nos procedimentos falimentares

Em análise da evolução histórico jurídica das legislações falimentares vigentes em nosso país, observa-se a preocupação do legislador moderno em permitir uma atuação mais efetiva e mais próxima da Fazenda Pública nos procedimentos de insolvência empresarial.

O sistema de insolvência lapidado pela Lei n° 11.101/2005 (LREF) prevê uma intensa colaboração entre os participantes, em um esquema de freios e contrapesos que abrange também o Ministério Público e o Administrador Judicial[1].

Nessa perspectiva, à luz das alterações na LREF ocasionadas pela Lei n° 14.112/2020, os entes Fazendários também passaram a ocupar um importante papel para estimular o dinamismo nos procedimentos, auxiliando na (I) correta organização do passivo fiscal e, consequentemente, promulgação mais célere de um Quadro Geral de Credores que inclua os créditos públicos; bem como (II) a efetividade do princípio da preservação da empresa, que deve ser analisado em conjunto com outros princípios que regem o sistema da LREF, como o princípio de que se devem recuperar as sociedades e empresários recuperáveis e o princípio da retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis[2].

  • Os Incidentes de Classificação de Crédito Público

A legislação falimentar estabelece a prerrogativa de escolher entre dois caminhos para ver satisfeitos os seus débitos tributários na falência, nos termos do art. 187, caput do Código Tributário Nacional: (a) ação de execução fiscal e a penhora no rosto dos autos do processo de falência ou (b) ingresso no Juízo Falimentar. Porém, definindo uma das vias, materializa-se a renúncia com relação à outra, uma vez que a legislação falimentar não admite a garantia dúplice[3].

Inobstante a não submissão obrigatória do ente Fazendário à verificação de crédito, necessário pontuar a sua submissão ao concurso material da falência, posto que o procedimento falimentar estabelece uma ordem legal de preferências específicas para o pagamento dos créditos (vide artigos 83 e 84 da LREF).

Justamente em virtude da submissão material, o art. 7º-A da LREF, inserido pela Lei nº 14.112/2020, prevê a instauração de incidente de classificação de crédito público para cada uma das Fazendas Públicas credoras, sem qualquer prejuízo da possibilidade do pedido de restituição em dinheiro (art. 86) e da compensação de crédito (art. 122).

A partir da sua instauração, a Fazenda Pública tem o prazo de 30 dias para apresentar a relação completa de seus créditos inscritos em dívida ativa, acompanhada dos cálculos, da classificação e das informações sobre a situação atual (art. 7º-A, caput).

O procedimento assegura o contraditório aos agentes processuais (falido; demais credores e administrador judicial), possibilitando o prazo para objeções exclusivamente voltadas aos cálculos e classificação do crédito (art. 7º-A, § 3º, I), o que será sucedido de eventual prazo para réplica do ente Fazendário (art. 7º-A, § 3º, II).

Em suma, em caso de divergência, os créditos serão reservados até o julgamento definitivo (art. 7º-A, § 3º, III). Por outro lado, caso não haja discordância, os créditos serão imediatamente incluídos no Quadro Geral de Credores, conforme suas respectivas classificações na ordem de preferência.

Dessarte, os incidentes devem ser considerados como uma via alternativa, que auxiliam na correta identificação do passivo tributário de uma Massa Falida, mas não excludente do prosseguimento da execução fiscal, o que continuaria a tramitar regularmente[4].

  • O Pedido de Falência pelo Credor Público

De forma taxativa, qualquer credor pode (art. 97, inciso IV), desde que o devedor seja apto a se enquadrar no regime jurídico abrangido pela LREF (art. 2º), requerer sua falência, uma vez cumpridos os requisitos do art. 94 da LREF.

Dentre as possibilidades de requer-se a decretação da falência esposados pelo art. 94 tem-se, em síntese, quando (i) o devedor deixa de adimplir com obrigação líquida de título protestado em valor superior a 40 (quarenta) salários-mínimos, (ii) o executado, por qualquer quantia, não paga, não deposita e não nomeia bens a penhora, ou ainda, (iii) o devedor pratique atos simulacros a fim de liquefazer seus bens ou deixe de cumprir com as obrigações do plano de recuperação judicial.

Nestes termos, tem-se que, ao menos em teoria, por se tratar de credor, o ente fazendário poderia requerer em quaisquer das referidas hipóteses requerer a falência do devedor. No entanto, hoje a Fazenda Pública detém uma série de regalias que a coloca em vantagem em relação aos demais credores, como por exemplo, e em especial, a possibilidade de prosseguimento com suas execuções, ainda que no dito stay period[5] (art. 7º-B).

Assim, vale ressaltar o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)[6] o qual enfrentou diretamente a matéria das possibilidades de pedido de falência pelo ente fazendário. No julgado em questão, tratava-se de pedido de falência proveniente de execução frustrada (art. 94, inc. II), em que o juízo de origem havia indeferido o pedido de falência intentado pela Fazenda Pública.

No entanto, em segundo grau, o TJSP acabou por prover o apelo da União para regular prosseguimento do pedido de falência, entendendo, substancialmente que, ajuizada a competente execução fiscal, mas não havendo pagamento voluntário, nem sendo localizados bens suficientes para satisfazer a dívida, e exaurindo-se os meios à disposição da fazenda, não se mostra razoável tolher do ente fazendário a possibilidade de postular a falência do devedor.

Ademais, apesar de não tratar-se diretamente do objeto da demanda, o TJSP ainda se pronunciou acerca do pedido de falência nos termos do art. 94, inc. I da LREF, oportunidade em que dispôs ser incabível o pedido apenas com base em título protestado, uma vez que neste caso então, haveria outro meio hábil à Fazenda Pública satisfazer seu crédito (execuções fiscais).

Por fim, pontua-se também que nos termos do artigo 73, inc. V e VI da LREF o Credor Público pode requerer a convolação da recuperação judicial em falência quando observar-se o descumprimento com parcelamento tributário oportunizado pela própria legislação ou ainda identificado o esvaziamento patrimonial da empresa recuperanda.

Conclusão

Desta maneira, o que se pode extrair dos avanços trazidos pela legislação falimentar, em especial com o advento da Lei nº 14.112/2020, é que a Fazenda Pública vem sendo trazida cada vez mais próxima ao procedimento de insolvência, assim, por consequência, mostrar-se-ia contraditório não oportunizá-la iguais ferramentas a que outros credores podem-se utilizar, contudo, merecendo parcimônia a outros privilégios os quais já são agraciados.

*Dedierre Gonçalves Silva é coordenador do núcleo de Direito Privado do Instituto de Estudos Avançados em Direito (IEAD) e advogado atuante na área de insolvência empresarial junto ao escritório Aluízio Ramos Advogados. 

*Leticia Marina S. Moura é advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP. 

[1] Fazenda Pública na recuperação judicial e falência. Célio do Prado Guimarães Filho… [et al.]; coordenação Daniele de Lucena Zanforlin Coutinho… [et al.] – 1ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022.

[2] TJ-SP – AI: 20436677020218260000 SP 2043667-70.2021.8.26.0000, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 30/06/2021, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 01/07/2021.

[3] STJ – AgInt no REsp: 1887837 SP 2020/0195349-1, Data de Julgamento: 23/06/2022, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/06/2022.

[4] TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico] – 1ª Ed. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[5] O stay period corresponde ao período de 180 (cento e oitenta) dias, podendo ser prorrogado por igual período, em que as execuções em face da empresa em recuperação judicial devem se manter suspensas (art. 6º, inc. I e § 4º da LREF).

[6] TJ-SP – AP: 1001975-61.2019.8.26.0491 SP 2020.0000539930, Relator: Alexandre Lazzarini, Data de Julgamento: 16/07/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 31/07/2020.

 

Fonte: Rota Jurídica.

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