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27-01-2018
A controversa recuperação judicial do produtor rural
Por Thiago Soares Gerbasi
Um dos mais relevantes temas jurídicos em debate no agronegócio é a possibilidade de uma pessoa natural que exerce atividade rural (adiante apenas “produtor rural”) obter o deferimento do procedimento de recuperação judicial (Lei 11.101/2005, adiante “LRF”), com o intuito de superar crise econômico-financeira decorrente de tal atividade.
O tema está em voga porque, diante da relevante crise econômica enfrentada pelo país nos últimos anos, não foram poucos os produtores rurais que se viram em dificuldades para arcar com seus compromissos e sob o risco de ter seu vasto patrimônio pessoal reduzido para pagamento dos credores. Nesse contexto, amparados por profissionais da área de reestruturação (turnaround), tais produtores enxergaram a recuperação judicial como a solução de seus problemas.
Estão nessa lista produtores rurais tradicionais e relevantes na região em que atuam, como José Pupin, Nelson e Geraldo Vigolo, Alexandre e Guilherme Augustin e Heinz Kudiess, entre outros.
O modus operandi é sempre o mesmo. O produtor rural cria — mediante registro na Junta Comercial — uma pessoa jurídica com finalidade de exercer a mesma atividade que ele exerce como pessoa natural, tornando-se sócio com responsabilidade ilimitada dela (adiante apenas “PJ produtor”). Dias ou meses após o registro, a PJ produtor requer recuperação judicial, sozinha ou em conjunto com as demais empresas controladas pelo produtor rural. A construção hermenêutica para obter o deferimento também é a mesma:
a recuperação judicial é procedimento positivado em benefício do empresário ou da sociedade empresária, para viabilizar a superação da crise (artigo 1º e 47 da LRF);
o produtor rural seria empresário porque exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção de bens (artigo 966 do Código Civil), que está em crise;
o registro na Junta Comercial seria uma faculdade ao produtor rural (artigo 971 do Código Civil), diferentemente do que ocorreria com as demais atividades (artigo 966 do Código Civil);
a PJ produtor é sociedade empresária que exerce a mesma atividade do produtor rural, sendo uma extensão deste último após o registro;
o requisito de dois anos de exercício da atividade (artigo 48 da LRF) pela PJ produtor seria superado por conta do exercício da atividade pelo produtor rural mediante a existência de Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ (artigo 48, parágrafo 2º da LRF);
logo, na condição de sócio solidário da PJ produtor, o deferimento da recuperação judicial em favor da PJ produtor suspenderá também todas as ações e execuções movidas contra o produtor rural (artigo 6º da LRF), mantendo intacto o vasto patrimônio que ele construiu exercendo atividade rural na condição de pessoa natural.
Em suma, os defensores desse modelo de reestruturação entendem que a recuperação judicial da PJ produtor seria possível porque a atividade empresarial não se constituiria mediante o registro na Junta Comercial, mas, sim, pelo mero exercício da atividade profissional de forma organizada, recorrente e com finalidade lucrativa. Logo, o registro na Junta Comercial seria uma mera faculdade do produtor rural, com natureza declaratória de uma condição pré-existente.
De outro lado, os credores de tais produtores rurais, por óbvio, não se conformam com a sujeição dos créditos à recuperação judicial, cujos planos comumente estabelecem deságios estrondosos (maiores que 50%), prazos de pagamento extremamente alongados (mais de 10 anos) e remuneração sobre o capital que não corresponde ao praticado em mercado (de 1% a 3% ao ano). Os credores defendem que:
no Código Comercial de 1850 (artigo 4º), ninguém poderia ser comerciante sem o registro (antes matrícula) na Junta Comercial (antes Tribunais de Comércio). A finalidade de exigir o registro era diferenciar o regime jurídico aplicável àquele indivíduo ou àquela atividade, considerando os benefícios estabelecidos aos comerciantes por aquela legislação (e outras vindouras). Em suma, para fins jurídicos, exercer o comércio (de forma irregular) não era sinônimo de exercer atividade comercial (de forma regular);
o Código Civil de 2002 optou por uma definição ampla de empresário, excluindo expressamente as atividades que não poderiam assim ser qualificadas (artigo 966, parágrafo único), donde decorre que, para o legislador de 2002, os termos empresa e empresário possuem significado idêntico aos termos comerciante e sociedade comercial do Código Comercial de 1850;
logo, a despeito das modificações terminológicas, o Código Civil de 2002 manteve o mesmo regime do Código Comercial de 1850: o indivíduo pode exercer atividade sem o registro na Junta Comercial, sendo, para todos os fins, empresário irregular e não sujeito ao regime jurídico do Direito Comercial/Empresarial ou o indivíduo pode registrar a atividade na Junta Comercial, tornando-se empresário regular e se sujeitando ao regime jurídico do Direito Comercial/Empresarial;
o registro não é mera formalidade que viabilizaria sua natureza declaratória da atividade empresarial, mas, sim, requisito para sua existência, com a finalidade de proteção de terceiros, segurança jurídica e, sobretudo, como expressão da função promocional do Direito. Afinal, num ordenamento promocional — como é o brasileiro —, importam os comportamentos desejáveis, sendo o seu encorajamento medida indireta pela qual o comportamento desejado torna-se mais fácil ou, uma vez realizado, gerador de consequências agradáveis;
nesse contexto, embora o registro seja uma faculdade concedida pelo legislador ao produtor rural, como tudo, trata-se de uma escolha com consequências (artigo 971 do Código Civil). Se ele optar por se registrar, a partir de então estará inserido no regime jurídico empresarial, colhendo os bônus e ônus dessa condição; por outro lado, se ele optar por não se registrar, sua atividade estará sujeita ao regime jurídico geral (civil) até que ocorra o registro, cujos efeitos são ex nunc.
Em suma, os que negam a possibilidade de se conceder recuperação judicial à PJ produtor entendem que a atividade empresarial somente se constituiria com o registro na Junta Comercial, que possui, portanto, natureza constitutiva e efeitos ex nunc.
Portanto, o imbróglio pode ser resumido pela resposta a um simples questionamento: qual a natureza jurídica do registro na Junta Comercial para fins de qualificação da natureza da atividade exercida pelo produtor rural?
Diversos tribunais pátrios têm enfrentado tal questão, mas referendam qual posição?
Em artigo publicado no site Consultor Jurídico em 26/1/2016, intitulado Recuperação judicial de produtor rural é bom método para reestruturação, Aletheia Cristina Biancolini D’Ambrosio afirmou que “há alguns entendimentos isolados, mas a jurisprudência tem se firmado no sentido de que não há necessidade do registro da atividade empresária exercida pelo produtor rural perante a Junta Comercial” [1].
No entanto, a jurisprudência tem caminhado no sentido justamente oposto. O STJ, por exemplo, concluiu que o deferimento da recuperação judicial requer a comprovação documental da qualidade de empresário e do exercício da atividade por dois anos, mediante a juntada de “certidão de inscrição na Junta Comercial”[2].
O voto do ministro Sidnei Beneti, relator para o acórdão do REsp 1.193.115/MT, reafirma a essencialidade do registro e observância do prazo, que não são "meros formalismos", mas, sim, expressões da função promocional do Direito:
“O documento substancial comprobatório é exigência legal justificada. O processo de recuperação judicial necessita da formalização documental imediata, pois, caso contrário, estaria franqueado caminho para o ajuizamento sob menor cuidado preparatório, de modo a, nos casos de real configuração da situação de empresário, nele, no processo, vir a enxertar-se fase de comprovação dessa qualidade, com base em dilação probatória, juntada de documentos, perícias e eventualmente prova testemunhal, ensejando recursos e protelações.
Além disso, estaria aberta larga porta para tentativa de inserção, no regime de recuperação judicial, de situações fáticas de negócios nutridos da mais absoluta falta de formalidade comercial, com as notórias consequências do agir à margem da lei”.
O ministro Paulo de Tarso Sanseverino concordou:
“(...) A minha preocupação é com a formação de um precedente acerca dessa matéria, que inovaria substancialmente em relação ao quadro atual do Direito Brasileiro. O STJ tem como característica ser um 'tribunal de precedentes'. No momento em que admitíssemos a recuperação judicial de agricultores não inscritos, não registrados, abriríamos um precedente, realmente, enorme, em um País em que a agricultura tem um peso significativo na nossa economia. Deve-se estimular o registro e a regularização das empresas agrárias pelos agricultores brasileiros, como, aliás, é permitido no Código Civil de 2002, de modo, inclusive, a tornar mais profissional essa atividade fundamental para a economia brasileira (...)”.
Em pesquisa feita na jurisprudência de STJ, TJ-SP, TJ-MT, TJ-RS e TJ-MS[3], dos 41 casos julgados, em apenas nove (21,95%) a recuperação judicial da PJ produtor foi mantida. No STJ, dos 11 casos julgados, apenas dois (18,18%) tiveram a recuperação judicial mantida.
Na estatística atual, a negativa à recuperação judicial também compõe a maioria dos julgados no TJ-SP (64,3%), no TJ-MT (83,33%), no TJ-RS (100%) e no TJ-MS (100%). Ou seja, a maior parte da jurisprudência se posiciona contra a recuperação judicial da PJ produtor.
Vale destacar o conteúdo decisório do TJ-MT, um dos mais relevantes estados na produção agropecuária nacional e que, consequentemente, enfrentou a maior parte dos complexos pedidos de recuperação judicial. Nas palavras da desembargadora Cleuci Terezinha Chagas Pereira da Silva, “se abrirmos uma frestinha da janela é extremamente temerário, porque os contratos devem ser elaborados diante de uma realidade e essa realidade deve permanecer durante o cumprimento dos contratos. As empresas não podem firmar contratos com pessoas físicas e, no dia seguinte, elas se transformam em pessoas jurídicas e entram com pedido de recuperação”[4].
De fato, ponderando os argumentos de ambos os lados, a posição da jurisprudência majoritária é a que nos parece acertada. Ou seja, a natureza do registro na Junta Comercial é constitutiva para atividade empresarial e a sujeição às normas de Direito Comercial/Empresarial, como a LRF.
Seguindo o modelo italiano, o Código Civil de 2002 quebrou a concepção de que a exploração rural não teria caráter comercial e, portanto, estaria excluída da atividade empresarial, possibilitando a inclusão do agricultor na qualificação de empresário[5].
No entanto, o legislador de 2002 manteve as mesmas restrições tradicionalmente impostas para que a atividade se tornasse efetivamente empresarial. Por isso, o artigo 971 previu que o produtor rural, mesmo preenchendo os requisitos do artigo 966, somente seria equiparado a empresário a partir do momento em que realizasse o registro na Junta Comercial.
O Enunciado 202 da III Jornada de Direito Civil realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal diferenciou o regime jurídico a que se sujeitam os produtores rurais, utilizando o registro como critério de distinção: “O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção”.
Cassio Cavalli e Luiz Roberto Ayoub são assertivos no sentido de que “o registro do produtor rural possui natureza constitutiva, conforme assentou o Enunciado 202 do Conselho de Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil (...)”[6], de modo que, nas palavras de Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, “o enquadramento da atividade rural fica condicionada a escolha do empresário, podendo ele optar pelo regime do Direito Civil (empresário civil ou sociedade civil não empresária) ou do Direito Comercial, adotando uma das formas próprias (NCC, arts. 971 e 984)”[7].
Para Rachel Stajzn, o registro não é mero formalismo e sua exigência se justifica pelo aspecto promocional do Direito, não devendo ser analisado apenas pela perspectiva do produtor rural, mas, sobretudo, pela ótica de terceiros que com ele interagem. Por isso, para a autora, a intenção do legislador com o artigo 48 da LRF foi estimular ao registro da atividade rural e vedar oportunismo dos agentes econômicos:
O prazo de dois anos de regular exercício da atividade, que se demonstra mediante a apresentação de certidão do Registro Público de Empresa, tem como função evitar oportunismos, isto é, a obtenção de vantagem ou benefício por quem, aventurando-se e assumindo riscos, exerça atividade econômica sem, para tanto, estar devidamente matriculado, na forma do previsto no Código Civil para qualquer empresário, pessoa natural ou jurídica. Pode-se presumir que o prazo mínimo quanto ao exercício regular da atividade tenha que ver com análise empírica da realidade. (...)”[8].
Por tudo isso, entendemos que, em benefício da boa-fé, da segurança jurídica e da não surpresa, a jurisprudência majoritária tem caminhado na direção correta. Contudo, é inegável que a ausência de pacificação do tema ainda gera insegurança, restringindo e, infelizmente, encarecendo o crédito no setor, o que, em última análise, prejudica os produtores rurais, inclusive aqueles que conseguiram, com competência e boa gestão, sobreviver à crise.
A expectativa e esperança do setor é que, em breve, o STJ se posicione de forma definitiva para negar a recuperação judicial da PJ produtor, orientando, definitivamente, o julgamento dos tribunais estaduais e suas comarcas sobre o tema.
[1] https://www.conjur.com.br/2017-nov-26/aletheia-dambrosio-judicial-produtor-rural-boa-opcao
[2] STJ, REsp 1.193.115/MT, rel. ministra Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, julgado em 20/8/2013, DJe 7/10/2013.
[3] Pesquisa utilizando os seguintes argumentos: “recuperação judicial produtor rural registro”; “recuperação judicial produtor rural inscrição”; “recuperação judicial empresário rural registro”; e “recuperação judicial empresário rural inscrição”.
[4] Ag 0100923-66.2014.8.11.0000, 3ª Câmara de Direito Privado, TJ-MT.
[5] W. Bulgarelli, A teoria jurídica da empresa: análise jurídica da empresarialidade. Tese (Titularidade), Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 1984, pp. 428-429.
[6] AYOUB, Luiz Roberto. CAVALLI, Cassio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas, ed. Forense. Rio de Janeiro, p. 32/33.
[7] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 2ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 208.
[8] Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coordenadores Francisco Sátiro de Souza Júnior e Antônio Sérgio A. de Moraes itombo, 2ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 224-225
Fonte: Consultor Jurídico