NOTÍCIAS

27-08-2025
A confusão patrimonial como pressuposto indispensável para a consolidação substancial
A concentração de empresas tem acompanhado a evolução da economia revelando suas vantagens como uma moderna técnica de organização empresarial; mas, tem mostrado também desafios para as sociedades que adotam essas estruturas complexas nos momentos de crises, considerada a necessidade de reorganização conjunta dos grupos econômicos.
Há situações em que não é possível enfrentar economicamente as dificuldades com medidas dirigidas apenas à parte de um grupo, especialmente, se há elevado grau de interdependência entre as sociedades ou as mesmas causas que comprometem o funcionamento de toda a estrutura e que precisam ser enfrentadas de forma concomitante, isso sem falar da economia de recursos proporcionada pelo pedido de reorganização conjunto1.
Nesse contexto, o litisconsórcio ativo no processo de recuperação judicial proporciona efetividade e ganhou destaque pelas alterações trazidas pela lei 14.112/202, que disciplinou a questão da recuperação judicial dos grupos econômicos, o que pode ser visto, ainda que por outras vias, nas leis argentina, francesa e estadunidense3.
A consolidação processual, prevista como uma das formas de recuperação conjunta na legislação brasileira, funciona tão somente como litisconsórcio simples, que proporciona economia processual; dela não resulta corresponsabilidade entre as sociedades que ajuizaram o pedido de recuperação e não há que se falar de unificação dos ativos e passivos das empresas e nem mesmo em destinos comuns às sociedades do grupo.
Já pela consolidação substancial, prevista de forma mais pormenorizada na lei 11.101/05, os ativos e passivos das empresas "serão tratados como se pertencessem a um único devedor" (art.69-K), bem como o plano será unitário para todas as devedoras (art.69-L), de forma que todas as sociedades do grupo que tenham ajuizado a recuperação judicial conjuntamente terão o mesmo destino, quer seja o sucesso ou insucesso da recuperação.
Por essa espécie de consolidação, os efeitos para a vida das componentes grupais serão profundos e extensos, até mesmo em termos de débitos que estão sendo cobrados de codevedores, se estes também estiverem em recuperação judicial na qual fora reconhecida a consolidação substancial.
Nesse sentido, já se decidiu que "o artigo 49, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 permite a continuidade da execução contra devedores solidários, mas essa possibilidade é limitada pelo deferimento da consolidação substancial, que sujeita o patrimônio dos agravados à administração do juízo recuperacional, como, no caso, que houve a recuperação judicial dos executados", a exemplo de produtores rurais4 e de outras empresas do grupo em recuperação.
A consolidação substancial pode trazer efeitos também em termos de requisitos para o deferimento do processamento da recuperação judicial, que de outro modo não teriam, posto já se ter decidido que a "flexibilização do prazo de dois anos é justificada pela consolidação processual e substancial do grupo econômico, que demonstra interdependência e confusão patrimonial entre as empresas", já que a lógica de grupos societários permitiria "considerar o tempo de atividade do grupo como um todo, especialmente em casos de confusão patrimonial, conforme artigos 69-G e 69-J da LREF".5
Por acarretar efeitos de maior relevância, consoante a disciplina traçada pela lei 14.112/20, a medida de unificação deve ser aplicada mediante a constatação de certos requisitos, que são os pressupostos básicos da interconexão de ativos e passivos das empresas do grupo e ocorrência de confusão patrimonial entre as devedoras.
Além desses pressupostos, deve haver também a cumulação de pelo menos dois outros requisitos dentre os referidos na lei, que são: a existência de garantias cruzadas, a relação de controle ou dependência entre as empresas; a identidade parcial ou total no quadro societário e a atuação conjunta no mercado.
Da leitura das disposições da lei, podem surgir algumas dúvidas e a primeira delas seria se não bastaria a interconexão de ativos e passivos das devedoras para o reconhecimento da consolidação substancial, pois, nessa situação, parece que a interdependência das sociedades poria em evidência que o destino comum das sociedades já estaria selado.
Contudo, a interconexão de ativos e passivos, como por exemplo a contitularidade de relações contratuais, a copropriedade, a locação ou o arrendamento de bens de uma sociedade a outra do mesmo grupo ou de qualquer outra relação comercial, embora possa mostrar a relação umbilical da atividade desenvolvida pelo grupo, não deve projetar efeitos em termos de extensão da responsabilidade patrimonial das sociedades grupais, se estas relações se dão em padrões comutativos e dentro dos termos da lei.
Estender-se a responsabilidade de uma sociedade a outra do grupo, nessa hipótese, acarretaria o prejuízo dos credores daquelas sociedades que têm mais ativos para fazer frente aos seus passivos ou, por outras palavras, diminuir-se-ia a probabilidade de recebimento desses credores, sem que houvesse fundamento justificável.
Some-se, ainda, que poder-se-ia estar fechando os horizontes da recuperação para sociedades do grupo que se acham em melhores condições de solvência, o que faz concluir que não deve a simples interconexão de ativos ser causa suficiente para o deferimento da consolidação substancial, se tais relações se dão nos termos da lei. Pense-se que as devedoras podem ter interconexão de ativos com outras empresas fora do grupo e nem por isso deveriam ser aquelas incluídas no processo de recuperação judicial.
Torna-se evidente que a confusão entre passivos e ativos dos devedores, de forma que não seja possível identificar sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo e de recursos (art.69-J), parece ser o pressuposto indispensável à consolidação substancial.
Nesse contexto, reconheceu o STJ que a "consolidação substancial de ativos e passivos de sociedades integrantes de um grupo empresarial pressupõe que haja confusão patrimonial e de gestão e dependência entre elas..." bem como que, "...segundo entendimento doutrinário, a consolidação substancial poderá ser obrigatória sempre que for constatada disfunção societária, apurada a partir de quando for verificada confusão patrimonial entre sociedades integrantes do grupo de fato ou de direito".6
Apesar de o art. 69-J da lei 11.101/05 se referir apenas à confusão patrimonial, o que envolve elementos internos das empresas do grupo, a confusão de esferas entre as sociedades devedoras, como aquela que se refere à imagem que a pessoa jurídica projeta perante terceiros, também deve possibilitar a extensão de responsabilidade via consolidação substancial em certas situações, dependendo do contexto geral do endividamento do grupo, pois, afinal, quem negocia com uma sociedade pode ser levado a crer, em determinadas hipóteses, que está contratando com outra empresa do mesmo grupo, o que costuma ser uma realidade, principalmente, quando se está diante de relações de consumo no varejo.
Além da intercomunicação e da confusão patrimonial entre ativos ou passivos das sociedades, para que seja admitida a consolidação substancial, dispõe o art.69-J da lei 11.101/05 que deve haver também a cumulação de dois outros requisitos dentre os elencados, que são: a existência de garantias cruzadas; a relação de controle ou dependência entre as empresas; a identidade parcial ou total no quadro societário e a atuação conjunta no mercado7.
Não obstante a disposição referida, parece inócua a exigência cumulativa de dois outros dos requisitos referidos, porque, em sede de execuções singulares, já seria possível se estender a responsabilidade patrimonial de uma sociedade à outra do mesmo grupo na ocorrência de confusão patrimonial. Em termos de um processo que abrange todos os créditos concursais do devedor, é pertinente que se perquira, diante do caso concreto, se a confusão patrimonial comprometeu ou não a solvabilidade das empresas ou as condições de reerguimento das sociedades do grupo.
Mas, e nos casos em que existam garantias cruzadas entre as devedoras que possam comprometer a solvabilidade das sociedades8, já não estaria estendida a responsabilidade patrimonial entre as sociedades? Essa situação não tornaria desnecessária a previsão legal que exige a constatação de confusão patrimonial para o reconhecimento da consolidação substancial?
Por outras palavras, as garantias cruzadas e a confusão patrimonial não levariam às mesmas consequências em termos de responsabilidade patrimonial?
Ocorre, contudo, que a existência de garantias cruzadas leva à responsabilidade patrimonial por obrigações específicas e não sobre todas as obrigações sujeitas ao concurso, como na hipótese de confusão patrimonial.
E, mesmo se o grau de endividamento decorrente das garantias cruzadas comprometer a atuação das sociedades do grupo, ainda assim, não deve ser considerado de forma isolada como fundamento suficiente para o deferimento da consolidação substancial. Tome-se em conta que nem todas as sociedades de um grupo podem apresentar a mesma solvabilidade, o que prejudicaria os credores daquelas sociedades que apresentam mais ativos em relação aos passivos, isso sem falar nas melhores possibilidades de captação de recursos que teriam umas sociedades em relação às outras, seja por meio de investimentos ou por empréstimos, o que aconselharia não se arrastar todas as sociedades para um único destino.
Dessa maneira, para o deferimento da consolidação substancial, desponta o pressuposto da confusão patrimonial entre as diversas sociedades de um grupo econômico, desde que comprometa a continuidade da atividade empresarial sem as medidas almejadas com a recuperação judicial9, situação que, se presente, conforme já entendeu o STJ, pode até levar à atuação de ofício do magistrado para fazer integrar outras entidades do grupo que não pleitearam a recuperação judicial10.
Caso não estejam presentes os pressupostos da consolidação substancial obrigatória, pode ainda ser proposta pelas devedoras aos seus credores como uma das medidas voltadas à reorganização do grupo, o que levaria à forma voluntária de consolidação11, o que talvez seja uma solução interessante para o reerguimento e reorganização de um grupo econômico, como medida condizente com a preservação das empresas, se não comprometer a justiça da solução frente aos credores no caso concreto e se os credores de cada uma das sociedades, votando separadamente, tenham aceitado essa proposta.
Fala-se em votação dos credores de cada uma das sociedades de forma separada, porque certamente os credores das sociedades mais endividadas poderiam sobrepor a sua vontade diante dos credores das sociedades com passivos menos expressivos, que acabariam com o poder de voto diluído.
Desta maneira, afora a situação em que a consolidação substancial decorre da aprovação pelos credores das sociedades integrantes do grupo, resta evidente que, dentre os pressupostos previstos na lei, a confusão patrimonial é a condição sine qua non para o reconhecimento da consolidação substancial de um grupo de empresas, quer seja pela extensão e profundidade das consequências trazidas com o seu reconhecimento para as próprias empresas em recuperação judicial, como também para os seus credores.
_____________________
1 No dizer de Maria Helena Diniz "Ao permitir que a recuperação judicial possa ser postulada conjuntamente por um grupo econômico sob controle societário comum, em consolidação processual ou consolidação material, a Lei 14.112/2020, reduzindo os custos e dando celeridade ao processo, permite que a recuperação se dê de forma sustentável, dentro da perspectiva econômica e social. O compromisso com a celeridade resta evidente ainda quando a Lei 14.112/2020 determina que a tramitação da recuperação judicial, assim como nos casos de recuperação extrajudicial e falência, terá prioridade sobre todos os atos judiciais, a exceção do habeas corpus e outras prioridades estabelecidas em leis especiais" (Cf. OS IMPACTOS DA LEI 14.112/2020 NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL, Revista Argumentum, p. 803-834, Set.-Dez. 2022, p. 830)
2 Como observa a doutrina: "Fato é que não parece lógico ignorar que a disciplina da crise empresarial, inclusive no regime da recuperação (judicial ou extrajudicial), influencia o comportamento dos agentes econômicos e das demais partes interessadas na atividade empresarial. Do contrário fosse, não haveria razões, ao que tudo indica, para a reforma implementada pela Lei n° 14.112/2020. Até porque, como destacado, o legislador reformista pautou-se, em grande medida, nos impactos da lei falimentar no sistema de economia do mercado e na coletividade" (cf. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção e GODRI, João Paulo Atilio. "Axiomas da lei de recuperação judicial e falências: entre a preservação da empresa e a tutela do crédito", in Revista Brasileira de Direito Empresarial | e-ISSN: 2526-0235 | XXIX Congresso Nacional | v. 8 | n. 2 |p. 47 - 64 | Jul/Dez. 2022).
3 No entanto, na jurisprudência norte-americana, onde a teoria da desconsideração da personalidade jurídica começou a ser aplicada primeiramente, as soluções têm sido casuístas, com notável influência da equity e de sua preocupação com a justiça do caso singular, restringindo a discussão nos processos de reorganização em sua maior parte à consolidação substancial voluntária, enquanto a consolidação substancial obrigatória vem sendo aplicada aos casos de liquidação (cf. WIDEN, William H. Report to the American Bankruptcy Institute: prevalence of substantive consolidation in large public company bankruptcies from 2000 to 2005. American Bankruptcy Institute Law Review, v. 16, 2008, p. 1-6).
4 Cf. AI. : 2341991-09.2024.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. ACHILE ALESINA, v.u. j. 18.11.2024.
5 Cf. AI 2304033-86.2024.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. CARLOS ALBERTO DE SALLES, v.u. j. 14.05.2025. Mas, já se decidiu de modo contrário: "Tese de julgamento: Cada empresa integrante de um grupo econômico que postula recuperação judicial deve comprovar individualmente o cumprimento do requisito temporal de dois anos de atividade regular, conforme art. 48 da Lei nº 11.101/2005, mesmo se tratar-se de holding não operacional." (Cf. AI n. 1.0000.24.329757-9/0040, Comarca de Uberaba, TJMG, 21ª Câmara Cível Especializada, rel. Des. Marcelo Rodrigues, v.u. j. 05/02/2025).
6 STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 2001535 - SP (2021/0270763-5) RELATOR: MINISTRO HUMBERTO MARTINS. R.P/ACÓRDÃO: MINISTRA NANCY ANDRIGHI. TERCEIRA, por maioria. J. 27.08.2024.
7 Nesse sentido já se decidiu: Os requisitos do art. 69-J da Lei 11.101/2005 foram devidamente atendidos, tendo em vista que a direção do grupo é exercida de forma unificada, com planejamento e políticas empresariais centralizadas, sob a coordenação das empresas ODB E&C e OEC. Restou demonstrado também que há garantias cruzadas quanto ao principal passivo do grupo, decorrente dos "bonds". Além disso, constatou-se o compartilhamento de recursos financeiros, sendo certo que os fluxos de caixa se dão de forma integrada entre as sociedades do grupo, em regime de "caixa único" civil (Cf. AI. ° 2341207-32.2024.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. SÉRGIO SHIMURA, por maioria, j. 24.07.2025).
8 Como observa André Vasconcelos Roque: "Ainda, a mera existência de garantias cruzadas entre as sociedades do grupo (por exemplo, prestação de fianças ou avais por algumas sociedades em obrigações contraídas por outras), por si só, é comum a muitos grupos e não conduz à consolidação substancial 13 , mas pode ser evidência de confusão patrimonial se forem numerosas e assumirem expressiva relevância em relação ao passivo de todo o grupo, a ponto de conduzir à conclusão de que o destino da recuperação judicial de todas as sociedades será inevitavelmente o mesmo (cf. Consolidação processual e substancial na recuperação judicial: o que é isso? Coluna Insolvência in Foco, Migalhas. 29 de julho de 2025).
9 Já se decidiu: "No caso em análise, não estão presentes os requisitos previstos no art.69-J, já transcrito, em especial no que concerne a "confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos". Trata-se de requisito sine qua non de qualquer consolidação dessa modalidade." (Cf. AI nº 0028932- 61.2021.8.19.0000, Comarca da Capital, TJRJ, 6ª Câmara Cível, rel. DES. INÊS DA TRINDADE CHAVES DE MELO, v.u. j. 07/07/2025)
10 No julgamento do REsp 2.001.535 - SP, a 3ª turma do STJ reconheceu a possibilidade de o juiz determinar de ofício a consolidação substancial de ativos e passivos de empresas integrantes de um grupo econômico, reafirmando o que já havia reconhecido o TJSP no 2170879-45.2019.8.26.0000). E também: "O entendimento do STJ aponta no sentido de que, em situações excepcionais, o Juiz está autorizado a determinar a inclusão de litisconsorte necessário no polo ativo da ação, sob pena de extinção do processo".
Contudo, em sentido contrário, já se decidiu: "2. CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL OBRIGATÓRIA. Impossibilidade. Art. 69-J da Lei nº 11.101/2005. Medida excepcional. As devedoras não são obrigadas a formular tal pedido. Litisconsórcio ativo facultativo. Descabida a inclusão de outras sociedades no polo ativo pelo credor. Doutrina e jurisprudência." (Cf. AI. ° 2284413-88.2024.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. J.B. PAULA LIMA, v.u., j. 09.04.2025).
11 Nesse sentido, já se decidiu: ""RECUPERAÇÃO JUDICIAL - Consolidação substancial Ausência de autonomia, cumulada aos requisitos previstos no art. 69-J, da Lei 11.101/05, não configurada Necessidade de arcabouço probatório robusto - Embora não haja a obrigatoriedade legal, resta sensata a submissão da aprovação à Assembleia Geral de Credores, em decorrência da ausência de elementos suficientes que configurem a consolidação substancial no presente momento. - Recurso parcialmente provido." (Cf. AI. ° 2115244-40.2023.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. J. B. FRANCO DE GODOI, v.u., j. 07.08.2023).
Fonte: Migalhas.