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23-04-2024 

Juiz não pode afastar a lei sem declarar inconstitucionalidade?

O artigo 82-A, § único, da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência — LRF) determina que a “desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do artigo 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos artigos 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do artigo 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020).

A literatura jurídica [1] e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em regra, seguem a textualidade do artigo 82-A da LRF [2] e entendem que o Juízo falimentar é o competente para julgar tal incidente se este foi iniciado após a entrada em vigor do § único do artigo 82-A da LRF.

Não obstante isso, a 1ª instância e a 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), no processo nº 0183000-41.2005.5.02.02, afastaram a aplicação do artigo 82-A, § único, da LRF, por entenderem que a competência para julgar tal incidente de desconsideração da personalidade jurídica é da Justiça Laboral.

Isso porque “a Justiça do Trabalho possui competência para o prosseguimento da execução contra os sócios, haja vista que os atos de constrição não recairão sobre os bens da empresa falida ou em recuperação judicial.

Com efeito, o direcionamento da execução em face dos sócios da empresa executada, atingindo patrimônio que não integre aquele pertencente à empresa falida ou em recuperação judicial, não viola a Lei nº 11.101/2005, tampouco implica exercício indevido de atribuições do Juízo Falimentar”. (trecho do acórdão).

Diante disso, foi manejada a Reclamação nº 67.060 Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria coube ao ministro André Mendonça, que, em 5 de abril de 2024, julgou, monocraticamente, procedente o pedido formulado na reclamação por violação ao Enunciado 10 da Súmula Vinculante do STF.

O ministro André Mendonça, contudo, entendeu que, com base no artigo 161 do Regimento Interno do STF, “o relator poderá julgar a reclamação quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do tribunal, o que se apresenta na espécie” (trecho da decisão do ministro Mendonça). Além disso, afirmou:

(…)

Apesar de não haver expresso reconhecimento de inconstitucionalidade do supracitado dispositivo legal, o Tribunal reclamado afastou a sua incidência no caso concreto, ensejando completo esvaziamento do conteúdo da norma, a eliminar suas hipóteses de incidência, sem que tenha sido observado o previsto no art. 97 da CRFB, o que implica violação ao enunciado nº 10 da Súmula Vinculante.

Com efeito, o dispositivo de lei afastado pela Justiça do Trabalho não prevê exceção em função de o patrimônio não pertencer à empresa falida. Aliás, resta implícito no conteúdo da norma que os bens estejam em nome dos sócios, pois, do contrário, caso os bens fossem originariamente da empresa, não careceria a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. Observo que a leitura conjunta do aludido dispositivo com o art. 50 do Código Civil reforça essa interpretação. (…)

Assim, concluo que os fundamentos adotados na decisão reclamada violam o enunciado nº 10 da Súmula Vinculante do STF. Nesse sentido, confira-se o seguinte excerto da decisão proferida pelo eminente Ministro Roberto Barroso na Rcl nº 16.903/PE, j. 22/11/2017, p. 28/11/2017. (…)

Naturalmente, o afastamento dissimulado de lei, sem expressa declaração de inconstitucionalidade, frustra a teleologia do art. 97 da Constituição. (…)

Isso não significa que os órgãos fracionários estejam proibidos de interpretar a legislação ordinária, com ou sem referência à Constituição. A aplicação do direito pressupõe a definição do seu sentido e alcance. Essa é a atividade cotidiana dos Tribunais e de seus órgãos fracionários. O que não se admite é o afastamento do ato normativo sem observância da cláusula de reserva de plenário. A diferença entre essas duas hipóteses nem sempre será clara, mas há uma zona de certeza positiva quanto à incidência do art. 97 da Constituição: se o Tribunal de origem esvaziar a lei ou o ato normativo – i.e., se não restar qualquer espaço para sua aplicação –, não haverá dúvida de que ocorreu afastamento, não simples interpretação.

Por fim, destaco inexistir na decisão reclamada referência à eventual declaração de inconstitucionalidade do aludido dispositivo legal, em observância ao art. 97 da CRFB, ainda que em processo diverso, por Órgão Especial ou Plenário da respectiva Corte. Registro, nessa linha de raciocínio, que o ato reclamado somente faz referência ao entendimento predominante da própria 5ª Turma do TRT2 e um destaque a precedente da 8ª Turma do TST. (trecho da decisão do Min. André Mendonça)

A resposta correta ao caso foi a dada pelo ministro André Mendonça na Reclamação nº 67.060, porém o presente artigo quer debater se, legitimamente, a única hipótese de afastamento da lei pelo Juízo é a declaração de inconstitucionalidade, como posto no voto do ministro André Mendonça, seguindo voto do ministro Luis Roberto Barroso na Reclamação nº 16.903.

A resposta será conferida com lastro na matriz teórica criada por Lenio Streck denominada Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), [3] construída para resolver problemas concretos do direito brasileiro, sendo também possível aplicá-la ao direito estrangeiro, a fim de responder duas perguntas: “para que e para quem o Direito tem servido? Para que(m) serve o Direito?”, tendo por “fio condutor, o ‘método’ fenomenológico-hermenêutico a partir de Heidegger, como hermenêutica universal” e como pensamento constitutivo da CHD a “hermenêutica da intersubjetividade“. [4]

Noutros termos, a CHD articula Warat, “Gadamer, Stein, Heidegger e Dworkin na construção de uma matriz teórica brasileira, voltada para problemas do Brasil”, [5] a fim de buscar uma resposta adequada à Constituição (RAC), tendo por fundamento que “decidir, no direito, é decidir por princípio”. [6]

Não há espaço neste texto para explicitarmos os pressupostos da CHD, como já fizemos antes, [7] e, dentro da miríade de temas abarcados pela CHD, restringiremos àqueles que interessam ao presente texto: as três perguntas fundamentais “que compõem uma criteriologia decisória que visa a filtrar e impedir decisões de caráter ativista” [8] e as seis hipóteses de legítimo afastamento da lei por quem decide um caso concreto.

As três perguntas fundamentais são: 1 — se está diante de um direito fundamental exigível? Em a resposta sendo sim, a segunda pergunta é: se o pedido for atendido poderá também ser procedente em todos os casos semelhantes (decisão universalizável)? Sendo a resposta sim, chegamos à terceira pergunta: “se, para atender àquele Direito, está-se ou não fazendo uma transferência ilegal ou inconstitucional de recursos, ferindo a igualdade e a isonomia”. [9]

Se a resposta a uma das duas primeiras perguntas for negativa, a decisão é ativista. Se a resposta as duas primeiras perguntas for sim e a resposta à terceira pergunta for sim, a decisão é ativista. Desse modo, uma decisão não ativista (aquela prejudicial à democracia, pois quem decide o faz com base na sua própria vontade [10]) tem de ter como resposta ‘sim’ às duas primeiras perguntas e não à última pergunta, [11] pois configurar-se-á a judicialização da política, perfeitamente necessária na democracia atual. [12] O ministro Gilmar Mendes, no Recurso Extraordinário nº 888.815, utilizou as três perguntas para fundamentar a decisão pela inconstitucionalidade do homeschooling.

Nessa linha, quem decide somente pode deixar de aplicar uma lei ou artigo(s) da lei se:

a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado; b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes; c) quando aplicar a interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à Constituição; d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido; e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo. f) quando – e isso é absolutamente corriqueiro e comum – for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos. Claro que isso somente tem sentido fora de qualquer pamprincipiologismo. É ´por meio da aplicação principiológica que será possível a não aplicação da regra a determinado caso (a aplicação principiológica sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e o princípio só existe a partir de uma regra – pensemos, por exemplo, na regra do furto, que é “suspensa” em casos de “insignificância”). Tal circunstância, por óbvio, acarretará um compromisso da comunidade jurídica, na medida em que, a partir de uma exceção, casos similares exigirão – mas exigirão mesmo – aplicação similar, graças à integridade e à coerência. Trata-se de entender os princípios em seu caráter deontológico e não meramente teleológico. Como um regra só existe – no sentido da applicatio hermenêutica – a partir de um princípio que lhe densifica o conteúdo, a regra só persiste, naquele caso concreto, se não estiver incompatível com um ou mais princípios. A regra permanece vigente e válida; só deixa de ser aplicada naquele caso concreto. Se a regra é, em definitivo, inconstitucional, então se aplica a hipótese 1. Por outro lado, há que ser claro que um princípio só adquire existência hermenêutica por intermédio de uma regra. Logo, é dessa diferença ontológica (ontologische Differenz) que se extrai o sentido para a resolução do caso concreto. [13]

A partir das três perguntas fundamentais e das seis hipóteses, poder-se-á efetivar cinco princípios [14] que conformam o adequado, constitucionalmente e infraconstitucionalmente, decidir judicativo, admitindo-se que quem decida um caso concreto afaste a aplicação da lei ou de artigo(s) de lei, que pode não ser aplicada se, ao menos uma, das seis hipóteses se apresentar, não se restringindo, portanto, à declaração de inconstitucionalidade, como aludido nas mencionadas decisões do STF.

 

[1] Mamede, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro – Falência e Recuperação de Empresas. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 41; Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 656; Barros Neto, Geraldo Fonseca de. Reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência – Comentada e Comparada. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 146-147; Tomazette, Marlon. Curso de direito empresarial – falência e recuperação de empresas. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 615.

[2] STJ – CC 203.826. Rel.ª Min.ª Maria Isabel Gallotti. DJe de 05.04.2024.

[3] Sobre o tema veja STRECK, Lenio Luiz (Org.). Um tributo a hermenêutica e(m) crise, de Lenio Streck 25 anos depois. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.

[4] Resgatando as promessas hermenêuticas e discutindo as possibilidades de superação do jus solipsismo à guisa de posfácio. In: STRECK, Lenio Luiz (Org.). Um tributo a hermenêutica e(m) crise, de Lenio Streck 25 anos depois. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 237-247, p. 237 e 241.

[5] STRECK, Lenio, 2023, p. 237 e 241. Bernsts, Luísa Giuliani. O ofício do professor e sua repercussão no modo-de-ser antropofágico da crítica hermenêutica do direito. In: STRECK, Lenio Luiz (Org.). Um tributo a hermenêutica e(m) crise, de Lenio Streck 25 anos depois. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 126-133.

[6] STRECK, Lenio, 2023, p. 237 e 241.

[7] FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Interpretação do direito privado: o direito civil constitucional prospectivo em diálogo com a crítica hermenêutica do direito. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de. (Orgs.). Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 309-329.

[8] Streck, Lenio. Perguntas fundamentais. In: STRECK, Lenio. Dicionário Senso Incomum: mapeando as perplexidades do Direito. São Paulo: Editora Dialética, 2023a, p. 179.

[9] Streck, Lenio, 2023a, p. 179.

[10] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[11] NEVES, Isadora Ferreira. Ativismo judicial e judicialização da política – três perguntas fundamentais para uma distinção. São Paulo: Juspodivm, 2023.

[12] STRECK, Lenio, 2023, a, p. 179.

[13] STRECK, Lenio. Verdade e consenso. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2017, edição eletrônica, item 5.2.8.

[14] Os cinco princípios são: 1 – preservar a autonomia do Direito; 2 – controle hermenêutico da interpretação constitucional; 3 – efetivo respeito à integridade e à coerência (CPC, art. 926); 4 – dever fundamental de justificação das decisões (Constituição de 1988, art. 93, IX; CPC, art. 489, § 1º); 5 – direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. STRECK, Lenio. 2017, item 5.2.8. e serão esmiuçados em outro momento pelas limitações editoriais deste texto. Sobre autonomia do Direito veja: MORBACH, Gilberto. Autonomia do direito e teoria da decisão: a CHD de Streck. Revista Eletrônica Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-set-07/autonomia-direito-teoria-decisao-chd-streck/ Acesso em 10abr2024.

 

Fonte: Conjur.

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